LIVRO

 

 

A guerra sem heróis

Mais um dia, mais uma batalha. Hoje é dia de ir às ruas. Cortar as unhas do cachorro, ir ao banco, ao mercado e uma espiadela no mar, mesmo que de longe, pois a areia passou a ser território impenetrável. A meteorologia avisou que vai chover e uma frente fria deve trazer ondas com mais de quatro metros. Um espetáculo para quem ama o mar em dias de chuva, como eu.

A ansiedade vai aumentando à medida que se aproxima a aventura de sair, depois de 75 dias confinado. Tomo meu café e acendo um cigarro para colocar as ideias no lugar e traçar minha estratégia e entrar nesse cenário, que eu conheço tanto, mas que nesse momento me parece tão inóspito.

Checo o material de guerra – luvas, máscaras, álcool gel, viseiras de acetato, cartões – tudo pronto, mas a coragem vai diminuindo enquanto vou me aproximando da porta. Saio pelo o hall, me calço com o sapato, que desde o começo da quarentena está do lado de fora da porta e me direciono às escadas. São cinco andares, mas é melhor não arriscar o elevador, nunca se sabe.

Chego a portaria e não consigo identificar o porteiro por trás da máscara, parece que é novo na função e ainda não fui apresentado. Digo bom dia e de longe faço um aceno e sigo o meu roteiro. Não devo perder tempo, a rua me espera. Saio pela portaria e tomo uma bafejada do cano de descarga de um ônibus que para bem em frente ao prédio. Meu corpo tremeu e senti vontade, quase que imediata de voltar e me trancar no apartamento até que tudo isso passe e encontrem uma vacina. Venci o medo e fui em frente. Ruas vazias, novas pichações nas portas das lojas fechadas, um verdadeiro caos visual. Algumas pessoas caminham com carrinhos de compras e máscaras. Todas olham para baixo. Uma senhora caminha com o cachorro, que vai parando em diversos pontos e marcando território. Ela se abaixa para recolher com um saco plástico nas mãos, o cocô do cachorro, que a puxa para frente numa espécie de frenesi de quem acabou de se livrar de um fardo.

Copacabana parece um cenário sujo de um filme e que a qualquer momento alguém vai atirar em mim ou sair de trás de um poste e me contaminar com perdigoto de espirros e tosses. Aperto o passo na cidade que está em pausa. As calçadas estão relativamente limpas, fora algumas máscaras abandonadas pelos cantos. As poucas pessoas que estão na rua, caminham como baratas tontas, assim como eu, tonto e com medo de todos. A chuva desaba do céu e alguns velhinhos do outro lado da rua, apertam o passo, eu continuo caminhando e deixando a chuva me lavar, me descontaminar de tantos dias guardado em casa. Poucos carros trafegam e o cheiro de óleo queimado que despareceu é substituído pelo chorume que escapa dos bueiros e penetra meu nariz através da máscara dupla face que cobre o rosto. Os óculos completamente embaçados embaralham a visão, mas pouco importa, pois muito pouco há para se ver, além do cenário de lojas fechadas e alguns gatos pingados que carregam suas sacolas abarrotadas de mantimentos.

Me pergunto: será o fim de nossa raça? É inevitável que o medo tome conta da mente. Fico ziguezagueando sem saber para onde ir. As tarefas urgentes foram esquecidas. Caminho como um tantã pelas ruas, vou entrando em ruelas que eu desconhecia, avançando para ver se existe um destino, mas nada causa-me fascínio, a não ser dar mais um passo, mais um e outro.

Vou consumindo o tempo e tropeçando nos buracos da calçada vazia. Os olhos estão escondidos sob a névoa que tomou conta dos óculos por causa da respiração ofegante. Estou chorando. Volto apressado para casa.

Entro no prédio e vou direto para as escadas, subo correndo sem tocar em nada. Esbaforido chego a porta, tiro o sapato e antes de tocar a fechadura pego o vidro de álcool em gel e passo nas mãos, na fechadura e nos óculos. Entro e vou deixando as roupas pelo corredor até alcançar o banheiro e me lavar inteiro.

A ilusão de estar limpo, me acalma o peito. Acendo um pito e reflito.

A cabeça é o terreno onde são plantadas as esperanças humanas. Terra fértil, as vezes inóspita, onde nascem demônios e germina a mais pura essência divina. O coração é o filtro que nem sempre consegue digerir o sangue que circula nas veias e artérias no grande mapa hidrográfico do corpo e que muitas vezes se derrama em culpas e na busca de chaves para o grande enigma da vida. Caminhamos na direção da cruz, na esperança de que a dor seja a chave que abrirá o cadeado nos libertando do pecado e nos colocando eternamente sentados à direita do pai celestial, esculpido pela fé e pela manipulação durante dezenas de séculos e concílios.

E no silencio diante desse Deus, tento humanamente, pegar uma outra via, que me levará a outras chaves para a resolução do enigma, pois me recuso colar meus joelhos no solo diante de tão mal construída narrativa desse Deus, que insistem em me oferecer como salvação.

Por isso, eu continuo preferindo a frieza dos poetas, recusando as filosofias baratas e contraditórias à luz de minha alma.

Os poetas, ah! Os poetas. Estão a um passo da descoberta, mas ainda não aprenderam a amar o todo e concentram energia demais em musas, como as mães, as amantes e tantas outras perdições.

As mães, essas musas decrépitas do apego, que gritam que sabem, mas não conseguem abrir os braços dando liberdade as crias para abraçar a própria fé.

Também nessa busca, encontro a imagem do pai, tão pobres, que teimam em pensar que são a própria chave do enigma e seguem pelo mundo a procura de grutas úmidas e frias para se perpetuar nos seus erros de conduta, e na explosão de seu gozo onde se sentem o próprio Deus a se multiplicar. Ainda não aprenderam a distancia que existe entre o crescer e multiplicar, senguem no jogo endurecendo e reproduzindo vidas e discursos. Num eterno vai e vem da ignorância.

A ignorância dos céticos, que buscam a chave na mentira;
dos medrosos, que seguem as ciências,
dos apaixonados, que se buscam na luxuria
dos desesperados, que se perdem até na fé
dos sem fé, que se encontram na solidão
dos intuitivos, que navegam na magia
dos tristes, que perseguem a alegria
dos perdidos que se encantam com a morte.

 

Todos no entanto, fazem da busca, uma guerra onde o eu enfrenta o eu e a vida vai seguindo, se esvaindo, sem que o homem perceba ou decifre a mandala divina; _ amar é preciso.


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.