Por Renata Souza¹/Ururau

 

Vivemos em uma sociedade que se acostumou a ver pessoas negras em posições de subalternidade e lugares de pobreza. Herança de um passado escravocrata que não proporcionou a integração do negro na sociedade, trazendo consequências até os nossos dias. A presença de pessoas negras em posição de poder ainda é uma novidade, mesmo sendo o Brasil um país com a maior população negra fora da África.

Durante muitos anos o discurso válido foi o discurso do branco. Nós, negros, sempre fomos retratados como objeto de estudos, como exóticos, desprovidos de capacidade de falar ou de produzirmos conhecimento válido. A academia, do alto da sua erudição e branquidade, sempre usou os negros e suas narrativas para ilustrar teses e dissertações. Mas, como disse a Caroline Sodré, “nunca escutou dessas pessoas negras o que realmente ela quer dizer e o que ela realmente quer que seja escrito”.

Só que os tempos mudaram! Hoje, graças ao movimento negro, o movimento feminista negro, as políticas de ações afirmativas, o acesso de pessoas negras na academia, em posições de poder, em cargos eletivos, dentre outras ações, proporcionaram a ruptura com a ideia da história única, isto é, com as narrativas hegemônicas sobre a suposta inferioridade dos negros. Ações que foram essenciais para a construção de uma nova história, contada e escrita por negros. Movimento que tem gerado incomodo e desconforto naqueles que historicamente dominaram a produção de conhecimento e o protagonismo discursivo.

Podemos pegar a polêmica inaugurada na semana passada pela antropóloga Lilia Schwarcz em um artigo para a folha de São Paulo, para ilustrar esse incomodo que a ascensão e o protagonismo de pessoas negras causam. Isto é, como a construção de uma narrativa negra feita em primeira pessoa, é motivo de estranhamento e como a síndrome do colonizador ainda é viva e forte em um grupo que se acha detentor da produção de saber e do discurso oficial. A análise do novo álbum da cantora afro americana Beyoncé, “Black is King”, feito pela antropóloga em questão, evidenciaram esse incomodo.

Um filme feito por pessoas negras e com negros e negras em posição de destaque, em carros de luxo, com roupas caras e festas em que os mesmos eram os convidados e não serviçais. Pretos sendo retratados com dignidade e sem os velhos estigmas da miséria, uma história onde os mesmos eram reis e rainhas, na qual a cultura Africana é retratada de forma bela. Um filme que traz uma expressão estética, cultural e social conhecida como afro futurismo, que projeta o negro no futuro, misturando as estéticas tecnológicas aos elementos da cultura Africana.

Não que a Beyoncé e seu trabalho não possam ser criticados, mas uma mulher branca querer decidir como uma mulher negra vai narrar a sua negritude e contar a sua história é indicio de que o branco ainda se colocam como porta-voz da razão. Dizer que a Bey “errou ao glamorizar a negritude com estampa de oncinha” é querer reduzir a grandiosidade de uma artista experiente. É ignorar a importância política que a Bey promove quando discute feminismo e racismo em suas letras. É não saber a emoção que é ver uma mulher negra em lugares que disseram que não poderíamos ir. É não saber da revolução simbólica que é ver um filme com o elenco majoritariamente negro fazendo “coisas normais”, isto é, sem ser o bandido ou sofrendo.

Assim como os amigos da Lilia Schwarcz ficaram tristes ao vê-la ter que se retratar com a “pressão” feita pelas redes sociais em resposta ao seu artigo. Eu e várias outras mulheres e homens negros ficamos igualmente tristes ao ver que em pleno século XXI, as nossas posições políticas e insatisfações com atitudes racistas e reducionistas serem vistas como algo menor ou vazio. De sermos acusados de promover o silenciamento. Até quando vão querer desqualificar as nossas dores? Até quando vão querer nos acusar por querermos respeito?

Será que ainda vai demorar para que a branquitude entenda que não se trata de “ politização da tietagem”. Não se trata de “não mexer com a nossa ídola”. Trata-se de respeito com a nossa capacidade de falarmos por nos mesmos. Trata-se de entender que não vamos mais aceitar o silenciamento que foi regra para nós durante tanto tempo. Enquanto um preto, que ascende socialmente ou quer ser protagonista de sua narrativa, for taxado como metido ou desqualificado por estar em uma posição de poder, vamos fazer pressão e exigir respeito.


¹Renata Souza, professora de Sociologia da Educação Básica, doutoranda em Sociologia Política- UENF, pesquisadora do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito da UENF e criadora do @sociologia_napratica

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