DANÇA
Vou ingressar pelo amor. Fall in love, expressão em inglês que designa apaixonar-se. Fall, queda. Love, amor. Fall no amor. Cair in love. Cair no amor, desconhecer, perder-se de si no outro, esse chamamento me parece extremamente necessário, mesmo revolucionário, e ainda mais nesses tempos. Um chamado que faz desequilibrar. “Mas então, qual seria a Latitude ou Longitude em que estou?” A pergunta extraída de Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll interroga sua longa e lenta queda pela toca do coelho, e serve-me perfeitamente aqui. Quem cai não vê a própria queda e, portanto, vive, sente, percorre. Um susto. Desconheço. Abro-me. A queda (e o amor) vêm lembrar o perigo no corpo. Para amar é preciso estar disposto para a vertigem. Corta!
É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi, disse Caetano. Não se trata de entender o significado dessas quedas, mas a utopia lenta que elas exercem em nossos corpos. O amor, então, seria uma entrada e não uma saída. Não somente o amor pelo outro, mas o amor pelas matérias da vida, pelo conhecimento, pela língua, pela construção de uma lógica sensível do corpo-pensamento. Corpo, cheiro, toque, linhas do imaginário. Líquidos, arrepios, deslizamentos e rupturas, acrescento. Outros eixos se colocam à superfície, talvez trágicos ou errantes. De certa forma, desde o início da pandemia, estamos nos adaptando a outras formas e dinâmicas de comunicação e relação. A pele tem sido substituída por distintas materialidades que se impõem, superfícies do invisível se revelam entre nossos corpos. As moléculas, as tensões, os acúmulos adaptam suas inéditas formas de expressão às molduras retilíneas das telas luminosas.
Penso no aprendizado do corpo dadas as transformações de nossas relações e sentidos perceptivos em geometrias planas bidimensionais. Trata-se da percepção sobre o surgimento de outras mediações que substituem o roçar de um corpo no outro e vejo, então, explicitamente uma fronteira se pondo à frente da pele que antes roçava por roçar. Logo, emergem topografias no meu imaginário. Para suportar a falta que faz o roçar das peles, o ar que se passa entre nós, me calo. O silêncio não é ausência, mas percepção. Vem uma imagem: Os Amantes, de René Magritte (The Lovers, 1928). A imagem é de um beijo entre um homem e uma mulher, ambos envoltos em um tecido que isola suas cabeças. Apesar de mediados pelo tecido, o encontro estabelece uma entrega soberana que salta na imagem. Será aquela fronteira entre os corpos um abismo intransponível?
A lida com as matérias do sensível em um momento de comunicações efêmeras, dispersivas e distantes me repuxam para a gravidade, e me conectam à escuta da pele. Dotada de toque ininterrupto com o mundo, ar, objetos, superfícies, ela possibilita a troca e relembra a cada instante o corpo como agente e reagente, ativo e receptivo por tocar e ser tocado. Parece-me um grande enigma as direções que se projetam e que, por vezes, inclinam-se em geometrias jamais vistas. Roçar com o outro, sentir cheiros, ver o brilho dos olhos, escutar gotas que saltam despretensiosamente, engolir o ar expirado aleatoriamente. O corpo esteve aqui, aparece ali embora esteja em muitos lugares ao mesmo tempo. Eu vivo a melancolia de presenças passadas.
Como respirar quando o ar se torna rarefeito? A pergunta feita recentemente pela psicanalista Hélia Borges insiste em meu pensamento. Penso no ciclo respiratório, na alternância dada pela inspiração e pela expiração, assim como na falta de uma e de outra, e faço analogia com o circuito político-ético-social no qual estamos inseridos. Trata-se não somente da passagem de ar pelas traqueias e por todo o sistema respiratório mas, também de revelar a suspensão do ar. Em alguns momentos, somos submetidos a uma espécie de apneia coletiva, consequência do medo vigente em nossos corpos à custa de forças ético-políticas sem perspectiva pulmonar proclamadas pela medíocre liderança à qual somos assujeitados ao longo dos últimos 22 meses. Testemunhamos um eixo antidemocrático que retira todos os ares possíveis e torna o espaço público uma máquina rarefeita de agenciamento de forças brutais anti-vida, anti-amor, anti-oxigênio. E são os nossos corpos que refletem a falta de moléculas vibráteis do entorno adoentado. O (des)governo operante em nosso país não teme a falta de ar em nossos espaços de convivência e rejeita com veemência a possibilidade de pensar sobre as noções de cuidado, diferença e, sobretudo, amor, fomentando o ódio, a violência e o apagamento das forças minoritárias. Um sopro de ar, por favor!
Uma bola cor-de-rosa de dois metros de diâmetro com a inscrição da palavra AMOR é atirada ao público. A imagem da bola passando sobre as cabeças, os toques repentinos, a rolagem contínua sobre a terra, o flutuar nas águas da praia, os corpos atiçados, o corde- rosa brilhando na multidão e a inscrição do amor em sua pele relembram a pulsão de um objeto simbólico-circular, simultaneamente de todos e de ninguém. Por um gesto de respiro e queda, o amor converge com peso e ar, sobre e entre todos. A obra/performance da artista carioca Maria Nepomuceno retratada no vídeo Expiro de 2006, simboliza o gesto comum sobre esse objeto, simultaneamente coletivo e singular, a partir de quatro ações públicas com a bola AMOR: a primeira na praia do Leme em 2003, depois no bloco de carnaval Cordão do Bola Preta em 2006, em 2012, na tribo dos índios Huni Kuin no Acre e em Margate na Inglaterra. Em cada uma delas, o gesto performativo no qual o privado referente à simbologia da palavra amor conecta-se diretamente ao arremesso expropriado, “um amor que ninguém consegue segurar” conforme diz a artista. A ação pode durar o tempo de um coletivo desendereçado e lembra mais uma vez sobre toque, receptividade, ar e amor (ao próximo e ao distante). Outro corte!
É que quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi. Refrão ou recomeço, o sopro dessa voz estremece o meu corpo.
Plano 1. As imagens se fundem no delírio que conjuga o beijo diáfano interrompido pelos tecidos à bola AMOR que imanta o espaço fermentado.
Plano 2. Uma realidade outra se transporta como uma pele invisível que perturba o controle de todas as superfícies.
Plano 3. Olho pela janela e vislumbro a restauração de nossas peles como força de resistência ou a chance de reinventar o ar que passa entre nós.
Plano 4. Sem romantismo nem utopia, a evidência de nossos contornos e a rememoração de nossos sentidos perceptivos dirigem-se ao todo, agora.
Ao tratar da dança e do corpo do bailarino, o filósofo português José Gil cunha o termo “espaço do corpo” que ele define como “a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço”. A pele é mote de subversão capaz de remontar|restituir o corpo que esteve aqui, o que aparece ali e o que se apresenta em muitos lugares ao mesmo tempo. Contudo, a pele torna-se ainda mais (des)objeto de atenção e escuta, troca e acolhimento, repulsa, projeção. Mais latente ainda, percebo a potência de nossas peles como mediadoras soberanas das relações, mesmo sob a insurgência das telas. Assim, peles podem tocar sem se tocar, paradoxo que provoca uma espécie de atensão – tensão pela atenção – ao emitirem|receberem a potência da inspiração. Do beijo de Magritte à bola AMOR de Maria Nepomuceno, corpos roçam, expiram, pulsam, repulsam (mediados ou não) e caem no amor.