Essa semana, mais uma vez, o Brasil deu ao mundo, exemplos emblemáticos de racismo estrutural, com atos praticados contra cidadãos e ao que está estabelecido na nossa Constituição.
A afronta ao texto constitucional está ficando cada vez mais comum por aqui e não há guardiões suficientes para estabelecer uma volta à normalidade. O racismo estrutural não é uma realidade só dos brasileiros – está disseminado em outros países americanos e na Europa – e tem como marca, os privilégios de um grupo étnico sobre os outros, principalmente, se os outros, tiverem a pele preta ou vermelha.
Quando presenciamos uma atitude racista de um individuo contra o outro, muitas vezes nos calamos, ou acobertamos tal ato, com a justificativa do véu da ignorância. Podemos pensar que, devido as falhas no processo de construção da educação e da cidadania, estamos fadados a presenciar aqui e ali, certas manifestações individuais de racismo, intolerância e outras beligerâncias, que estão cada vez mais repetitivas no nosso dia a dia. E o certo, diante dessas situações, que podem nos embaraçar é quebrar o silêncio e expor o indivíduo racista à sua ignorância ou estupidez. Calando-o ou isolando-o.
A reação à morte de George Floyd, nos Estados Unidos é um exemplo que não pode ser esquecido por nenhum cidadão. Pois, não é de hoje, que assistimos calados, à execução de homens e mulheres- pretos, índios, latinos e de outras etnias e, nesse silêncio, contribuímos com nossa omissão para o crescimento da intolerância, do racismo e de toda sorte de preconceitos.
Os atentados contra o entregador Matheus Fernandes, no Rio de Janeiro, Mateus Pires, em Valinhos e da mãe, que perdeu a guarda da filha, em Araçatuba, no interior de São Paulo demonstram que o etnocentrismo está enraizado em nosso país.
Matheus Fernandes foi ameaçado e agredido por dois homens quando tentava comprar um relógio de presente para o pai num shopping no Rio de Janeiro. Imagens gravadas pelos clientes, mostram dois homens, possivelmente policiais à paisana, encurralando Matheus na escadaria do shopping sob a acusação de roubo.
Já o outro Mateus, agora em Valinhos, também foi filmado sendo escorraçado por um homem branco por causa de um atraso na entrega de um produto. Mateus foi xingado e humilhado pelo individuo, que fazia gestos e mostrava que a sua condição de homem de pele branca, o fazia superior. O atentado só ganhou repercussão, quando a mãe de Mateus publicou o vídeo na rede social. O agressor, o contabilista Mateus Abreu Almeida Prado Couto, de acordo com os pais, é doente mental.
Uma mãe de Araçatuba, perdeu a guarda de uma filha adolescente, depois que a menina passou por um ritual de batismo no Candomblé. A avó, que é evangélica, denunciou a mãe ao Conselho Tutelar, que acatou as denuncias por maus-tratos e abuso sexual. E mesmo com o depoimento da adolescente favorável à mãe, a justiça, numa decisão, claramente preconceituosa, tirou a guarda dela.
Nos três casos é possível perceber claramente o rastro do racismo e da intolerância. Dois crimes que vivem em simbiose.
O caso de Valinhos é um exemplo de racismo orgânico, pois nos revela uma dinâmica comportamental que está atrelada ao preconceito, à discriminação de indivíduo para individuo. Não deixa de ser crime e passível de punição.
Mas, os outros dois casos, nos mostram o racismo sistêmico que está na estrutura de formação da sociedade e referendado pelo próprio Estado. Nesse caso, temos um problema ainda mais grave.
A Constituição brasileira configura como crime, qualquer que seja a motivação da discriminação, pois na sua acepção está o princípio da igualdade entre todos os cidadãos, independente de sua condição econômica, étnica, sexual e social. A Constituição Federal de 1988 determina, no Art. 3, inciso XLI, que “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; e no Art. 5º, inciso XLI, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Inconstitucionalissimamente. A cada dia, o povo brasileiro, – aqueles que querem obviamente –, precisa aprender o significado do maior palavrão da língua portuguesa. As instâncias da justiça – da mais rasa à suprema – tem nos dado motivos para que aprendamos o significado e empunhemos a nossa Constituição, de onde advém o termo.
São 27 letras, onde vogais e consoantes se repetem nos oferecendo mais que uma sopa de letrinhas, mas um vocábulo forte que numa democracia madura jamais deveria ser desconhecido dos seus cidadãos. É um texto promulgado com um sistema de regras rígidas e minuciosas sobre condutas de indivíduos, e, principalmente do Estado.
Quando policiais, Conselhos Tutelares, juizes e outros atores que fazem parte da organização Estado, ferem as diretrizes constitucionais, as organizações civis precisam partir para o enfrentamento, sob o risco do silêncio, transformar governos eleitos democraticamente em ditaduras ideológicas.
A livre manifestação do pensamento, inspirada nos princípios da revolução francesa de liberdade, igualdade e fraternidade foi talvez a maior contribuição dos constituintes de 1988.
Para muitos de nós, o racismo, a intolerância são apenas vocábulos, semântica, – agora, para quem é vítima de um julgamento, pela sua condição étnica, religiosa, econômica ou social, dentro do que foi estabelecido para manter a esperança da igualdade, as letras que servem de arcabouço para o direito e, consequentemente para a justiça, são as nossas únicas armas.
E é sempre bom lembrar que a Lei Caó está viva. E com ela, o racismo se tornou crime inafiançável e imprescritível com penas de reclusão de até 5 anos. Só nos resta cumpri-la.