DANÇA
Inicio pela esquerda, já que sou canhota, para alçar o voo da escrita de minha amiga Thereza Rocha na coluna anterior de Pressenza. Pé esquerdo à frente (na contramão dos supersticiosos), braço direito avança e foi. Assim seguimos sem esforço mesmo que pouco conscientes de nossos passos. Trata-se da marcha em sua ordenação natural dada pela contra lateralidade de braços e pernas. Pode-se pensar também no passo como uma qualidade de queda e recuperação. Não somente à dança, a noção de queda na caminhada também é assunto caro à filosofia. Logo, quando o pé avança há sempre uma pequena queda que o antecede, como no verso de Laurie Anderson da música Walking and Falling.
Um passo ou dois, 3 e 4. Hoje vou pelo fluxo, caminhando|pensando. Traçarei vagarosamente pela pele fina, a escrita do corpo ao texto, experiência de mediação que me conduz aqui. Para tentar evitar a dimensão mecânica da marcha, introduzo-a pela pele dos pés. Andar devagar, perceber a chegada do calcanhar no chão, o desenrolar da planta do pé, a transferência de peso quase inerente ao corpo em negociação com a resistência e a entrega à gravidade, tendo em vista a queda implícita ao andar. Trata-se de empurrar o chão e também sentir o quanto ele nos empurra, tocar e ser tocado por ele com os poros sempre abertos. Caminhar, ação de todos os dias, comum como tantos outros gestos, no entanto em escassez por tantos motivos nesse momento de isolamento social e confinamento. Caminho juntamente com as mãos, com os olhos e com o pensamento para poder seguir. Para frente ou para trás, de lado para o desconhecido.
Lembrei-me da história contada por meu pai sobre um homem que se dizia amigo do papa e que demonstrava caminhadas e corridas para trás nas barcas entre Rio e Niterói. Sim, ele desenvolveu essa destreza com afinco e se autodenominava campeão mundial em corridas e andadas para trás. Gosto de pensar que tal virtuosismo não se detém somente no gesto deste homem, mas estende-se, sobretudo, ao olhar que ele desenvolveu com os pés, com as costas dos pés. A mestra do movimento Angel Vianna também engendra tal manobra em suas ações cotidianas ao descer escadas de costas. Segundo a dançarina, dessa forma a força da gravidade vai ao encontro das costas, das unidades posteriores do corpo, e tanto possibilita a retração da soberania da frente, quanto ameniza a sobrecarga nas articulações. Pergunto-me então se andar para frente não se relacionaria com a ideia de ir na direção do progresso, da evolução e, portanto, da atitude neoliberal de avanço e produtividade. O homem das barcas não estaria evocando o dilaceramento das forças progressistas? Seria andar para trás um flerte com o retrocesso ou uma volta ao desconhecido?
Costumo com frequência iniciar uma aula de dança caminhando pelo espaço. Por qualidades e direções infinitas, a caminhada vem sensibilizar a tridimensionalidade e nos informar sobre as costas. As paredes da sala emolduram desenhos que se formam e se deformam pelo traçado dos pés em movimento, as passadas lentas e ligeiras, leves e fortuitas, de costas, de frente, de lado, efêmeras. Corpos se cruzam, esbarram, viram pela atenção ao outro, para evitar o outro, ralentam, tropeçam e giram, sem previsão, até que haja uma espécie de harmonização afetiva das latitudes e longitudes imaginárias do espaço. E assim, essa dança nunca se repete, “o caminhar por caminhar”, sem finalidade de partida e de chegada, alerta os olhos que veem e os que são vistos em tramas irreprodutíveis. Andar de costas reacende a opacidade da pele que reveste a nuca, espaço oculto aos olhos de si. Ela, a dança, caminha junto com o deslizar dos olhos e ombros no espaço até que se possa ver o que antes estava nos rumores da pele de dentro, rompendo com a estrutura segmentar e hierárquica do corpo e da forma por si só. Penso que ao dançar|caminhar, experimentamos fisicamente a ambiguidade do avanço e do recuo pela possibilidade de liberação e expansão simultânea das unidades anterior e posterior do corpo.
Por outro lado, o gesto de caminhar também é assunto na filosofia. Em um tratado sobre a caminhada, A Philosophy of Walking, Frédéric Gros relaciona filósofos e seus estilos de pensamento à forma como caminhavam e por ela organizavam suas ideias. Em entrevista, Gros comenta que “Kant era sério e disciplinado, um filósofo que exige provas muito rigorosas com definições estritas. Ele tinha um jeito de andar que consistia em fazer todos os dias a mesma caminhada, na mesma hora. A escrita de Nietzsche, muito mais dispersa, com menos coesão, tem a ver com o fato de que ele procurava com o caminhar, sentimentos de energia e luz. Sua escrita é muito forte e rápida, não tão demonstrativa como a de Kant.”
No contexto histórico da dança, o (gesto de) “caminhar” possui trajetória notável. Da precisão dos passos coordenados nos compassos da música às impulsões improvisadas que coadunam democracia e liberdade, cotidiano e espontaneidade, tal gesto, dentre outros do cotidiano, vêm confrontar a lógica da codificação do movimento dançado. Nos anos 1960, artistas norte americanos se reúnem por uma causa comum que refuta hierarquias estabelecidas pela dança até então, fazendo emergir a problematização acerca do estatuto do movimento enquanto matéria construída e solidificada pelos códigos oriundos das técnicas de dança clássica e moderna. Esse grupo de artistas, advindos em sua maioria da dança, embora fosse também constituído por músicos, artistas plásticos, poetas, cineastas, representa o movimento pós-moderno da dança americana. Batizado de Judson Dance Theater, o núcleo tem surgimento na vanguarda nova-iorquina e proclama o gesto ordinário à condição de dança. Isso caminha junto com a busca por novas expressões e dinâmicas do corpo e da cena ali encontradas e que, por sua vez, anda pari passu com uma série de movimentos sociais, como a luta contra a segregacão racial, protestos feministas, movimento LGBT e tantos outros. A improvisação e a experiência pelo movimento com foco e fim em si mesmos, lhes informa acerca da liberdade, espontaneidade, autenticidade, em formas de organização coletiva. Na peça Satisfyin Lover de 1967 , o dançarino Steve Paxton (figura importante no movimento da Judson Dance Theater) demonstra o fascínio pelo mundo dos pedestres trazendo para a cena pessoas comuns, não bailarinos, sob uma partitura que os guia a andar, parar e, eventualmente, sentar. As tarefas propostas por Paxton decorrem da extração de um universo de possibilidades que vem resgatar o potencial de cada um, para além da dança, trazendo à tona questões como: que corpo é esse que pode dançar? O que é dança? Como a dança pode engendrar movimentos do cotidiano? A caminhada une eu e você, todos nós. Caminhar vai ao encontro do corpo como ele é e se torna, além de tudo, um gesto político que aproxima quem assiste de quem faz a dança, o que vai potencializar um viés democrático por novas formas de elaboração da cena, sobretudo na construção do coletivo.
Sob outra ótica, o filósofo canadense Brian Massumi traz à reflexão a noção de andar como forma de manejar a queda referindo-se ao verso de Laurie Anderson citado logo no começo desse texto e que se desenvolve assim: “Você está andando. E você nem sempre percebe, mas você está sempre caindo”¹. Com base nisso, Massumi reflete sobre restrição e movimento, equilíbrio e desequilíbrio, andar e cair: do passo dado na caminhada à inevitabilidade da queda. Ele afirma que não temos como avançar sem restrição, o desafio se dá pela continência no limite do equilíbrio. Para cada passo, há necessariamente a perda do equilíbrio. Não se trata de escapar da restrição mas de manobrá-la, e isso, ele diz, é semelhante à linguagem.
A cada passo porvir, a queda iminente. O deslocamento dado pelo impulso da caminhada tira a estabilidade de modo que quando o pé sai do chão, o corpo tem a chance de experimentar o desequilíbrio até que o outro pé chegue ao solo. Tirar um dos pés do chão pode ser um enorme desafio. Isso é mais evidente quando há um limite ou uma lesão no corpo. No instante em que transferimos o peso para uma das pernas instaura-se a “pequena queda” (faço referência aqui à pequena dança de Steve Paxton). Assim, o aprendizado de se manter de pé e a destreza da caminhada são, ao mesmo tempo, um desaprendizado da queda. O bebê ao aprender a ficar de pé e andar esgota a experiência da queda, sem medo. Seu centro de gravidade se encontra muito próximo do chão e por isso a passagem da horizontal para a vertical, e vice-versa, se dá de forma que o corpo não restringe quase nada, cedendo às forças da gravidade. O bebê cai e levanta plenamente. Crescemos conquistando habilidades de sustentação e esquecendo a inevitabilidade do movimento de cair. Segundo Massumi: “cada movimento é sentido no potencial de liberdade à medida que se move sob a constante atração gravitacional. Ao navegar pelo mundo, há diferentes atrações, restrições e liberdades que nos fazem avançar e nos impulsionam para a vida” (MASSUMI, 2015, pg. 12). A caminhada suscita desequilíbrio, o corpo pende na direção da gravidade sendo atraído por forças que são por ele desconhecidas, que é a própria vida. Como diz Laurie Anderson: “A cada passo você cai ligeiramente para a frente. E depois se impede de cair. De novo e de novo, você está caindo. E, em seguida, impedindo-se de cair. E é assim que você pode estar andando e caindo ao mesmo tempo”². Pé esquerdo à frente (na contramão dos supersticiosos), braço direito avança e foi.
Fotos: Máquina de dançar por Leonardo Aversa