CRÔNICA
Dia dos Pais e milhões não tiveram ou não possuem esse personagem em suas vidas. Eu tive por um breve período. Ele se foi no início dos anos 90 e não viu parte da revolução digital que impactou minha geração. E-mail, web, redes sociais. Resolvi lhe escrever um e-mail agora, contando tudo que aconteceu desde que partiu. Como seria se meu pai pudesse, hoje, receber minha mensagem eletrônica?
Seria mais ou menos assim:
“Você deve estar pensando – querido? – já que nunca me referi a você de forma carinhosa. Sim, querido. Eu cresci e hoje sei que nossa turbulenta relação também teria amadurecido se você tivesse ficado mais tempo por aqui. Como já percebeu, ela, minha mãe, também se foi. Convivi com dona Arlete por um período bem maior, mas ambos não ficaram – e nem poderia, eu entendo – para sempre. Para sempre nem eu ficarei, não é?
Você sabe que nunca acreditei em nada além do que posso ver, nem quando me levou – a força, devo lembrá-lo – naquela sessão espírita, em que uma mulher nos embebedou de álcool e falou coisas que nunca entendemos. Era um “passe” que também parece não ter adiantado muito, porque seus caminhos sempre foram muito complicados.
Hoje é Dia dos Pais e nenhum de vocês está aqui comigo. Devo confessar que ela também não ligava para nenhuma dessas datas: Natal, Ano Novo, Dia das Mães, aniversário. Muitas vezes, minha mãe ia dormir cedo ou me liberava para que eu fosse me divertir com amigos ou na casa de outras famílias. Eu sei… essa carta é pra você, não é sobre ela, a quem já dediquei muitas linhas e com quem fiquei décadas a mais do que com você. Não seja ciumento! Eu explico.
Você seguiu em mim muito depois que desapareceu naquela noite fria, em 1993. Anos e anos se passaram e sigo com sonhos de que você forjou tudo e vive com outra família em outro lugar. Queria muito que tivesse forjado mesmo porque agora evitaria que eu lhe dissesse o quanto vivemos e o quanto o mundo foi bom com a gente depois daquela noite.
Você tinha razão e ela foi mesmo mais feliz sem você por perto. Até amou outra vez, mas como não teve muita sorte nesse campo, preferiu a solidão. Eu fiquei por perto e até o fim estava lá, segurando sua mão. Naquela noite que se foi, lembrei de você. Ambos se foram – pensei. E me deixaram aqui sozinho.
Sim. Está programado que todos vocês, pais e avós, nos deixem aqui. Eu entendo muito bem, sem dramas, o ciclo da vida. Tentei aproveitar o máximo de todos vocês, no fundo, responsáveis pela minha vida. E mesmo sem saber, você me ensinou muito.
O pouco que sei de futebol aprendi com você. Seu sonho era que eu fosse jogador de futebol. Me lembro. Não fui, mas sei que tinha orgulho de me ver na TV ou em alguma entrevista quando comecei na política, tão novo, não foi?
Eu não sei se onde você está é permitido ver o que acontece por aqui e nem perderia tempo lhe dizendo as centenas de coisas que não viu. Vou me restringir a coisas que você mais gostava: o Flamengo não foi nunca mais campeão do Mundo, inventaram bebidas e comidas sem açúcar, Brizola morreu e não foi presidente, os militares não voltaram ao poder por golpe, como você temia, mas elegeram um deles, totalmente doido. Você estaria nas ruas contra ele, aposto.
Os trens da central possuem na maioria ar condicionado e seu filho não vive mais no Brasil. Ele não é jogador de futebol, mas é feliz. Serve? Ele não é pra ser uma coisa só. É um cidadão do mundo que busca sempre desafios e novos talentos. Seu filho também não se casou e teve uma enxurrada de filhos. Vou parar por aí porque nem tudo você precisa saber. Há uma coisa chamada privacidade, não muito comum na sua época.
Essa carta está sendo escrita por um computador e publicada em uma rede onde milhões de pessoas têm acesso – muito complicado para explicar também. Imagine apenas que o futuro foi marcado por muitas mudanças e que graças a ela, você, sua imagem e sua memória estão hoje entrando na casa e na vida de outras pessoas. Não é lindo? Nem tudo. O mundo vive uma pandemia, tipo gripe espanhola que você me contava. Eu, até agora, sobrevivi. Está difícil, o mundo parou, retrocedeu, quase voltamos a quando você partiu. Parece um bumerangue, foi lá longe e voltou. Ah, seu Adalberto, que tempos confusos por aqui.
Esse é meu presente do Dia dos Pais. Ofereço-lhe o futuro que você não viu chegar.
Acalme sua alma onde ela estiver e se existir. Dizem que a cada dia me pareço mais contigo, estou careca e mais sarcástico. Sim, achei na gaveta aquela pilha de histórias eróticas que você escrevia e, embora não seja meu estilo, reconheço que também isso herdei. O prazer pela escrita e por colocar a minha alegria e minha dor no papel – ou melhor no computador – ah não vou explicar ! Onde você estiver, procure saber. Aí deve ter algo similar. É uma longa história. Em resumo. Feliz Dia dos Pais.
Se minha mãe aparecer por aí perto, cuide dela dessa vez. Ela é aquela jóia que você descrevia em suas cartas de amor que também encontrei. E amor de verdade nunca morre. Se transforma. Como bumerangue, lembra? Vai e volta, nunca sai de nossas mãos.
Abraços, Teu filho. (assinatura digital, nem vou tentar explicar)”.
Revisão: Silvio Barsetti