OLHARES

 

 

“É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia”
(A Linha e o Linho, Gilberto Gil)

 

Acordei com a palavra “elã” na cabeça, palavra essa que nunca utilizei e não tinha muita certeza sobre o significado. Pensei até que fosse um substantivo feminino, por me remeter a “ela”, mas é um substantivo masculino, segundo o dicionário, e significa um movimento súbito, espontâneo, impulso. Movimento esse que percebi mais n’elas, as mulheres, em comunidades e em condomínios em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro, onde minha rede de internet se ‘visibiliza’ mais, já que permaneço em quarentena.

Lembrei de minha Tia Alice, esposa de meu padrinho Clóvis mencionado em outro texto, que era uma costureira de mão cheia. Quando moravam conosco em Sepetiba, perto das datas de aniversários ou celebrações, quando ainda tinha condições de sair de casa (década de 80) ela pegava inúmeros ônibus para Del Castilho, para o polo têxtil da região antes do Shopping que hoje centraliza o comércio local, para comprar tecidos botões e o necessário para produzir as roupas sob medida daquela família de pessoas pretas e grandes. Era um presente que ela fazia no tempo dela, e quando era presente nunca atrasava. Sem contar os consertos em pequenas avarias nas roupas da família, nas saias das Ekédes, e por aí vai. Quase 30 anos após sua passagem para o Orum, imagino que ela seria uma das inúmeras “elas” que tiveram esse “elã” de, independente de pedidos de ministérios, produzir as máscaras de pano para si e para sua gente.

Em abril o amigo e cineasta Davidson Davis Candanda lançou seu filme “Dias de Quarentena”, onde sua irmã Dandara, nome “encaixando como uma luva”, senta-se diante da máquina de costura com tecidos e começa a produzir máscaras para distribuir na região. Olho ao meu lado, minha esposa Valéria adaptando uma camisa de malha, daquelas que não cabem mais em nós, desapegando e ressignificando-a como uma máscara confortável. Falo com minha irmã Christina pelo celular, a cientista mais fodástica que conheci, Engenheira Química e primeira doutora preta em Vigilância Sanitária do país, e ela reaproveitando tecidos para produzir máscaras para a família, e para as cuidadoras do que minha sobrinha Luana apelidou de “asilo”. Minha outra irmã Izabela, a artista da casa, fazendo bonecas que animam o ambiente e estimulam sorrisos por trás das máscaras no rosto dos moradores do nosso “asilo”. Encomendo máscaras com uma amiga, Rogéria, vendedora de tecidos africanos, que migrou suas estampas temporariamente para as máscaras de proteção. Uma acadêmica, Vanusa, enquanto escrevo, costurou e doou 200 máscaras para quem precisa. Só alguns exemplos ao alcance de minhas vistas. E assim nossas redes sociais se inundam d’elas que estão produzindo essas máscaras.

Não só elas tomam a frente de produzir máscaras, e veja bem: não faço uma afirmação de que a costura é lugar de mulher, mas o elã de se mover pelos seus para solucionar as questões comunitárias está dentro de características que entendo a partir das matrizes “amefricanas”, termo de Lélia Gonzales. Cada “ela” é uma liderança “não institucionalizada” que não fica esperando o pastor indicar para onde vão as ovelhas… para defender os seus tem autonomia, e sabem bem o porquê.

Poderia citar inúmeras outras facetas dessas líderes comunitárias, entendendo comunidade não apenas favela ou periferia, mas de maneira ampla. Mas o que me interessa aqui é entender que essas costuras, assim como nossos passos, vem de longe.

Voltando os olhos para Améfrica Ladina, minha memória viaja primeiro no Chile, nas Arpilleras, mulheres que bordam em tecido o cotidiano e a história de sua população, sem abandonar uma visão crítica de seu contexto, eternizando em tecidos a memória de seu povo. Uma tradição que se tornou uma das facetas da poeta e musicista Violeta Parra, que fundou um museu com enorme acervo dessa expressão artística e memorial feita pelas mãos d’elas. E ao mesmo tempo uma arte muito vinculada às pautas socioambientais, onde populações atingidas por crimes ambientais encontram na prática da Arpilharia um ponto de retorno a sua identidade perdida pelas perdas ecossistêmicas locais. E como falar de identidade perdida, e de busca ancestral, sem mencionar as bonecas Abayomi, uma expressão artística de matriz africana, que a partir de costuras e nós em tecidos, ilustram histórias das primeiras mulheres africanas vindas para o continente encoberto pelos europeus? E hoje além de expressão artística, geram renda para essas artesãs/griots.

São muitos panos para as mangas, mas elas vão além. Dão sentido a uma economia que, quando não vem pela eventual venda dessas máscaras personalizadas, vem por um lucro simbólico que estas representam de mais nobre: prevenção coletiva.

Economia, vem de oikonomia, do grego e significa “cuidar do ambiente”, ou “cuidar da casa”. Das casas dessas mulheres diversas, que mesmo ocupando outros espaços no mapa social, tiram do cantinho suas máquinas de costura, ou simplesmente colocam a linha na agulha, e doam seu tempo pelo próximo. Homens também fazem parte deste e de outros momentos específicos desta luta pela vida, que vai em confronto a ânsia genocida do governo.

Em uma sociedade machista, com um representante legítimo do que há de pior desse legado, as micro-políticas são solucionadas e impulsionadas por vozes, olhares e mãos femininas. E algo que alguns chamarão de ancestralidade faz com que a sabedoria existente nas lavadeiras, amas, costureiras, rezadeiras, e tantas outras que um dia já tiveram suas funções subalternizadas, se manifestem em suas e seus herdeiros, e provoquem esse elã de juntar as mãos e costurar esses elos entre eles e elas, pela saúde, e pela vida.

Eles e elas querem viver, não sobreviver.

Eles e elas sim.

Ele não.


Agradeço ao olhar sensível de minha sobrinha e escritora Tayná Arruda.