DANÇA

 

 

A marcha da história conhece várias marchas históricas. Para citar apenas algumas: Marcha das Margaridas (trabalhadoras rurais), realizada a cada quatro anos desde 1983, ano do assassinato de Margarida Maria Alves, uma das primeiras mulheres a exercer cargo de direção sindical no país. Liberation Day da Rua Christopher em Nova Iorque (1970), primeira parada do orgulho LGBT[2] de que se tem registro. Passeata dos Cem Mil (1968), organizada por estudantes e seguida por intelectuais, artistas e políticos de esquerda com franca adesão popular pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro em oposição à violência de Estado. Marchas de Selma a Montgomery (1965) pelo direito civil ao voto, Martin Luther King na vanguarda da multidão que percorreu três vezes os 90 km que separam uma cidade e outra do Alabama. Coluna Prestes (1924-1927) iniciada no contexto militar em resistência de esquerda à oligarquia brasileira, e se tornaria, de fato, um movimento popular ao longo de seus 25.000 km atravessando 13 estados brasileiros.

O que une todas essas marchas presentes neste pequeno percurso histórico retroativo? Elas avançam. Não há como contê-las. São comunidades transitórias de pessoas andando adiante que performam pequenas ou grandes coreografias sociais. Marchar em frente, entretanto, não nos iludamos, nunca foi necessariamente marchar a favor da história. O movimento é dianteiro mas muitas vezes anda na contramão do suposto progresso, outras tantas vai adiante exatamente para contê-lo. Quem foi que disse que a história anda necessariamente para frente?

Curiosamente, desde 2016, a brasileira parece estar andando para trás na direção de 1964. A precisa foto de Laerte Gurgel que abre a coluna é quase um enunciado-performance. Trata-se de uma placa situada em preciso cruzamento (adoro duplos sentidos) da Avenida Brasil (adoro ainda mais) com a rua Atlântica, em São Paulo. É veríssima a localização: coloque no Street view do Google Maps (link para esse acesso no Google Maps), clique na foto, ande um pouco para a esquerda (lógico!), aproxime e lá estará! De tão certeiro, o numerário do quarteirão encrava quase como uma lápide, o movimento anarriê no qual nos encontramos.

É mesmo uma espécie de sensação social, não necessariamente da íntegra do povo brasileiro, nem sei mais o que é isso, porém, ao menos de 44,87% dos eleitores e eleitoras saídos todos perplexos do apocalipse eleitoral de 2018. O processo até o pleito traz, de 2016, intragáveis marcos que me privarei de listar aqui. Não por mera coincidência, data deste mesmo ano a primeira Massa Ré, ação coletiva proposta pelo artista e pesquisador Elilson[3] que vem sendo reperformada e desdobrada desde então. Massa Ré acontece a partir de um esquemático programa performativo: um grupo de brasileiros e brasileiras, cada qual vestindo camiseta branca com as inscrições 2016 (frente) e 1964 (costas), caminha lenta e silenciosamente para trás pelas ruas da cidade com as mãos espalmadas para baixo.

As ações podem ter até 3 horas de duração e ser realizadas em momentos significativos do ano (a primeira, em 1/4/2016, data que não se comemora, dia do Golpe de 1964; a segunda em 7/9, Golpe de 2016 já ensejado “com Supremo com tudo” e Michel Temer empossado presidente). Os pontos de início e término da caminhada são determinados em pontos urbanos históricos estratégicos fazendo consoarem, e por isso mesmo vibrarem, tempo e lugar, chave da performance. Nos trajes, importava evitar as cores vermelho, verde e amarelo de modo a sustentar desde o início até o fim, a inteligente ambiguidade que a ação comporta. “Mas, afinal, o que vocês apoiam? Eu não consigo entender se são contra ou se querem 1964”, gritou um transeunte certa vez. Foram diversas reações de corpo e de fala dos passantes em relação à performance, indo do amistoso ao violento, e para conhecê-las, recomendo a leitura do artigo do próprio Elilson. De todas elas, “Olha! Um tributo a Michael Jackson” chama-me especialmente a atenção.

O gesto das mãos espalmadas à frente do corpo emula mas não imita a reação corporal que temos diante de algo incompreensível, como quem se pergunta “Que porra é essa?!”, ou no bom cearensês que aprendi “Diabéisso?!”. (E não é mesmo isso que estamos nos perguntando desde então?) Elilson responde de dentro de sua dissertação de Mestrado (2018) orientada por Eleonora Fabião: É “como se o gesto, constituinte do e no corpo que anda” de costas “pronunciasse: estou sendo empurrado para trás, mas estou resistindo”.

Sutil jogo de oposição de forças corporais, bem distinto daquele performado por Buster Keaton na famosa sequência de seu filme Steamboat Bill Jr. (link do trecho do filme) quando tenta marchar à frente enfrentando com seu exíguo corpo a força contraproduzida pelo furacão que assola a cidade e faz literalmente o mundo vir abaixo. O enfrentamento é realista se levarmos em conta que o cineasta/intérprete rejeitava trucagens e chegou a gastar 1/3 do orçamento disponível para produzir os efeitos inacreditáveis do furacão, incluindo o aluguel de seis portentosas máquinas eólicas. A extenuante sequência física, em outra chave, também parece pronunciar “estou sendo empurrado para trás, mas estou resistindo”. Ganha ares de coreografia social se lembrarmos que o filme é de 1928, apenas um ano antes do bota-abaixo-geral no/do mundo, preconizado pelo crack da Bolsa de Nova York.

Muda a chave poética, mas a poética muda do corpo continua a nos interessar, agora, em Silent Movie[4] (1976), de Mel Brooks – inteligente e divertida paródia dos filmes silenciosos do início do cinema. Em uma curta porém marcante cena (link do trecho do filme), o exímio mímico Marcel Marceau luta contra um vento supostamente muito forte na tentativa de avançar na direção do telefone que toca. Muito diferente da fisicalidade de Keaton e dos participantes de Massa a Ré, o corpo aqui estabelece com minúcia e precisão a possibilidade que essa modalidade de mímica acessibiliza (há outras), a de nos fazer ver o que lá não está; de ficcionalizar a luta frente a uma força ausente (o vento que balança as cortinas ao meio esquerda do quadro ali está somente como legenda de indução ao jogo que se estabelece). Delicioso jogo a que acedemos sem muita dificuldade e que levará a sequência a encerrar-se com Marceau, notabilizado pela pantomima muda, atendendo ao telefone para tornar-se a única personagem a pronunciar palavra no silent movie de Brooks, um sonoro e retumbante “Non!”.

Importam em todos esses exemplos o nó perceptivo a que o corpo induz, todas as vezes em que ousa contrapor-se à dinâmica alavantú supostamente imperiosa do tempo. Foi o nascimento do cinema, no final do século XIX, que popularizou algo que a literatura suporia conjuntamente e que a dança ocidental abraçaria quase como sendo a própria definição de sua aventura ao longo do século XX: o tempo não é único; o tempo não avança necessariamente; o tempo é uma fabricação; o tempo não é O tempo. A cronologia é uma convenção, historicamente datada e, como tal, atravessada de política. Assim, o tempo pode, só pra começo de conversa, voltar ou mesmo parar. A noção do tempo como fabricação e, a partir dela, a manufatura de várias temporalidades possíveis, compossíveis e impossíveis será responsável por uma expansão inaudita do campo da narrativa nas artes, verdadeira reviravolta, contexto de onde as dramaturgias do corpo e da performance poderão aparecer. E são exatamente elas que nos interessam aqui.

Quem nunca gostou de desafiar a equação tempo/movimento descendo a escada rolante ascendente ou andando para trás na esteira rolante dianteira? Ambas as brincadeiras contrariam a funcionalidade para a qual cada um dos dispendiosos dispositivos tecnológicos foram criados. Resta à lógica do avanço/progresso reinante (ela se precipita no senso mais comum), imputar ao ato do corpo insurgente, a pecha de “perda de tempo”. O que dizer quando é exatamente na suposta perda de tempo que a arte corporal encontra a sua chave de contradispositivo? Inevitável lembrar do hoje lendário Moonwalk, que não sendo de autoria de Michael Jackson foi por ele mundialmente popularizado e, neste movimento, apropriado pela cultura. É o que precisamente nos lembra o transeunte quando comenta a Massa Ré de Elilson.

Para desapegá-la um pouco de MJ, é necessário marcar que a técnica é denominada de slide (literalmente deslizar) em variações a depender da direção do movimento: backslide; frontslide; leftslide; rightslide. Das quatro, para os temas aqui deste texto, interessa-nos mais o backslide (justamente o que imortalizou-se no moowalking). O movimento é reperformado ostensivamente pelo/as intérpretes de danças urbanas nos cinco cantos do planeta, como se pode ver nestes dois samples que destaquei, um de Salif Gueye (link do vídeo) (Official IG artist), o outro do amazing Lin Wenxin[5] (link do vídeo) ao som de Pascal Letoublon.

No primeiro, reparem no efeito cinemático também sem qualquer trucagem produzido pelo simples contraste entre a velocidade dos slides de Salif + câmera (que se somam e se intensificam) e a dos passantes casuais ao fundo andando no mesmo sentido ou no sentido contrário ao de seu deslocamento. Infelizmente o interessante efeito é logo interrompido, pela necessidade irrefreável aos transeuntes de pararem e tornarem-se plateia. É justo a marcha supostamente natural dos pedestres, seja no sentido contrário, mas principalmente no mesmo sentido do deslocamento de Salif, que abre uma espécie de fenda na equação tempo/movimento evidenciando o potencial já constante no próprio sliding. Coisa que a exímia técnica de Lin Wenxin deixa cristalino: o movimento deslizante/deslizado de costas cria um nó percetivo com a ilusão de uma marcha absurda que parece deslocar-se para trás e para a frente ao mesmo tempo.

Todas as insistentes marcações de traseira e dianteira, anarriê e alavantú[6], marcha à ré e marcha à frente espalhadas pelo texto fazem eco a duas publicações anteriores de Pressenza que por ora tornaram-se uma série. É Maria Alice Poppe que responde em sua coluna de 2/8, O passo da queda, à minha coluna anterior Esquerda-direita volver. Nela, Poppe comenta a história contada por seu pai sobre um homem que exibia caminhadas e corridas para trás ao sabor do balanço das barcas de travessia da Baía de Guanabara. Maria Alice interroga em sua coluna e quase ouço como se fossem para mim, as suas questões. “Pergunto-me então se andar para frente não se relacionaria com a ideia de ir na direção do progresso, da evolução e, portanto, da atitude neoliberal de avanço e produtividade. O homem das barcas não estaria evocando o dilaceramento das forças progressistas? Seria andar para trás um flerte com o retrocesso ou uma volta ao desconhecido?”.

Elilson também parece ter ouvido suas perguntas quando diz: “Massa Ré performa um desvio da forma própria da construção subjetiva da circulação urbana, profanando a expressão absoluta e primeira da ordem e do progresso: o andar para frente”. Não seria também uma resposta insurgente aos lemas positivistas de nossa bandeira, o que performa a Gangue da Marcha à Ré? Assim chamada no singular, trata-se na verdade de muitas gangues que há 12 anos replicam os mesmos procedimentos país afora. Um carro em grande velocidade vindo de ré arrebenta a porta de uma dada loja de madrugada abrindo o flanco aos integrantes do bando para a rápida ação de roubo e subsequente partida à frente em fuga.

São muitos os indícios que reuni aqui para fazerem par com a contundente intervenção-manifesto Marcha à Ré ensejada por Nuno Ramos, Tó (Antonio Araújo) e o Teatro da Vertigem em São Paulo na semana passada. Queria fazer o meu texto merecedor de abordá-la, tal a genialidade da proposta. Assisti aos vídeos da performance com as perguntas de Alice martelando na minha cabeça. Procurei aproximar Elilson, Marceau, Keaton, Salif e Wenxin, pois todos falam, cada um a seu modo, de coreografias sociais que performam movimento marcadamente na contramão do avanço. Como diz Elilson, “Andar de costas significa ver, irremediável e detalhadamente, tudo que é a cidade e que diária e apressadamente deixamos para trás.” 100.000 mortos pela COVID-19 no Brasil não podiam ser deixados no sem-fundo do esquecimento. Era necessário ir ao seu encontro e isso, para os criadores desta marcha, só poderia ser feito retroativamente.

Assim, em 4/8/2020, sem qualquer aviso prévio, o centro financeiro e epicentro da pandemia do/no país é atravessado por uma suspensão do tempo progressivo e progressista com o acontecimento Marcha à Ré chamada inteligentemente de anticarreata. A linha de partida é em frente à FIESP na Avenida Paulista. Tal como a ação de Elilson, a localização faz vibrar tempo e lugar, uma vez que foi dali mesmo, em 2016, que começamos a andar para trás, aqui no caso, na direção da morte. Assim, o Cemitério da Consolação (adoro ironias) é o ponto de chegada, a cujo portão o trompetista Richard Fermino executa o Hino Nacional Brasileiro de trás para frente. O durante da ação é o mais contundente: 100 carros lenta e coordenadamente (a cerca de 5 km/h) percorrem os 1,5 km de trajeto em marcha à ré. Das janelas abertas dos automóveis, ouve-se o som renitente de respiradores mecânicos e monitores cardíacos de UTI perfazendo entre si uma sinfonia funesta. 1 carro para cada 1.000 mortos. A lentidão dos veículos parece também pronunciar “estou sendo empurrado para trás, mas estou resistindo”.

Misto de performance e protesto, Marcha à Ré se tornará um filme cujo registro é feito pelo cineasta Eryk Rocha. Essa será a obra performada por Nuno Ramos e parceiros na Bienal de Berlim deste ano, uma marcha feita por encomenda do evento. Conforme Ramos afirmou à Folha de São Paulo (link da matéria). “A ideia era usar a linguagem bolsonarista, mas às avessas”. Por isso, a anticarreata, fazendo contramenção às carreatas dos apoiadores do (des)presidente realizadas em absurda oposição ao lockdown e ao distanciamento social relativos à pandemia. O Hino Nacional era outro pendão de apoio a Bolsonaro, tocado aos berros nas sacadas e janelas dos prédios em reação aos panelaços ocorrentes em defesa das pautas humanitárias e pelo justificável impeachment do “pior líder mundial no combate ao coronavírus”. Executado no final da ação ao contrário (bela música dissonante resultou) o contra-hino marcava, agora, “a nacionalidade do pesadelo, com tudo andando em marcha ré”, de acordo com o artista.

Curioso é reparar aos 34s do vídeo-registro de Marcha à Ré feito pelo ator Wilson de Barros, (link do vídeo) dois motoqueiros passarem ao lado do comboio, no sentido contrário ao dos carros, ou seja, no sentido correto daquela mão da Paulista (o ônibus que chega à esquerda não nos deixa mentir). Percebam o nó perceptivo na equação de sentido tempo/movimento que também acontece. Notem que um deles porta às costas a mochila característica dos entregadores de aplicativo, modalidade do empreendedorismo escravocrata neoliberal – sinal contrastante de que a marcha acachapante do capital tem que seguir em frente.

Tudo isso faz-me lembrar das palavras de Günter Grass em seu livro Hiroshima est partout (Hiroshima está por toda a parte) de 1982. Ele dizia dos (d)efeitos das explosões de 1945, mas parece estar dizendo de nós (tentem ler ouvindo os respiradores de Nuno Ramos):

Nossa imaginação é incapaz de considerar as consequências do que produzimos. Não é só a nossa razão que tem seus limites (kantianos), não somente ela é finita, o mesmo vale para a nossa imaginação e, mais ainda, para nossas emoções. Na melhor das hipóteses, podemos nos arrepender do assassinato de um homem: nossas emoções não podem ir além disso. Podemos imaginar dez assassinatos: nossa imaginação não pode ir além disso. Entretanto, destruir 100.000 pessoas não é problema algum. Um homicídio em grande escala ultrapassa largamente a esfera das ações que podemos imaginar perante as quais podemos reagir com as nossas emoções e cuja execução poderia ser entravada pela imaginação e pelas emoções.


[2] Hoje LGBTQIA+. A sigla para remissão às lutas das minorias de sexualidade e identidade de gênero se atualiza constantemente, assim como a percepção da amplitude de sua diversidade. Optei aqui por manter a sigla LGBT em remissão histórica ao início do movimento.

[3] Ele se autonomeia somente a partir do primeiro nome.

[4] Título em português: A Última Loucura de Mel Brooks.

[5] Agradeço aos meus consultores de plantão nas madrugadas Loly Pop (link do insta) (Jorge Luiz) e Coreano Dancer (link do insta) que me ajudaram a entender melhor o slide e a achar a referência de Lin Wenxin.

[6] Anarriê e alavantú são apropriações da cultura popular brasileira de dois termos provenientes das elegantes danças de salão francesas, sendo o primeiro uma corruptela de “En arrière” (Para trás) e o segundo, de “En Avant, Tout” (todos à frente). Indicam movimentos de coro em que todos os participantes se movem juntamente na mesma direção. Ambos os termos chegam aos dias de hoje nas quadrilhas juninas, através dos comandos de voz do/a narrador(a).