Por Luciano Velleda/Sul21

 

Se estivesse vivo, o que será que Jorge Amado diria para Paulo Guedes sobre a proposta de taxar livros em 12%? Por certo, o escritor baiano, um comunista convicto, e o ministro da Economia, expoente do pensamento neoliberal brasileiro, teriam muito assunto para prosear. Fatalmente um deles seria a proposta de reforma tributária pretendida pelo ministro do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Seria uma conversa interessante. Isso porque o autor de Capitães da Areia e outros clássicos da literatura nacional foi o proponente da emenda constitucional que incluiu, na Constituição de 1946, a isenção de impostos para o papel utilizado na impressão de livros, jornais e revistas. O objetivo era baratear o produto final e permitir que o livro e a imprensa pudessem se expandir num País marcado pelo analfabetismo.

Mais de 40 anos depois, a Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 150, consolidou a isenção do livro ao vedar à União, ao Distrito Federal, Estados e Municípios de criarem impostos de qualquer natureza sobre o livro e a imprensa escrita. Como até economistas acham o arcabouço tributário do Brasil complicado, em 2004, a Lei nº 10.865 definiu alíquota zero do PIS e da Cofins nas vendas de livros. Afinal, os dois impostos que incidem sobre a receita das empresas não existiam quando a Constituição foi promulgada e era preciso manter o espírito do apoio à leitura para o desenvolvimento da sociedade.

Nos anos seguintes, entre 2006 e 2011, o valor médio do livro diminuiu 33%, com crescimento de 90 milhões de exemplares vendidos. Agora, no Brasil pandêmico de 2020, o “Posto Ipiranga” de Bolsonaro propõe uma reforma tributária, por meio do Projeto de Lei (PL) 3.887/20, que unifica a cobrança do PIS e da Cofins, criando um novo imposto sobre valor agregado — a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Junto com novo o tributo, vem a proposta taxar os livros em 12%.

A autora

Todo livro começa na cabeça do autor ou autora. Luisa Geisler, nascida em Canoas, em 1991, conhece os árduos caminhos da escrita. Duas vezes vencedora do Prêmio SESC de Literatura, com os livros Contos de Mentira e Quiçá, com textos traduzidos em mais de 15 países, Luisa não dá curvas no pensamento ao analisar a proposta do ministro Guedes. “É um equívoco tremendo. Um desrespeito. Uma tentativa de taxar quem não tem poder de lobby porque taxar quem tem lobby não é interessante. Uma falta de entendimento vindo de quem faz live de estante vazia”, afirma.

A proposta de taxar livros, avalia Luisa, terá como consequência um Brasil com ainda menos leitores. “Significaria um governo afirmando com todas as letras que não se importa se o povo tem acesso a livros ou não. Um governo que já tem descaso pela cultura, que já não se ocupa nem com suas mínimas responsabilidades, como alfabetização e formação de leitores na escola, quer agora criar uma barreira maior, agora por outra mão”, diz a autora de Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014) e Enfim, capivaras (2019).

Luisa refuta veemente a justificativa expressada pelo ministro da Economia de que livros são para a elite e, portanto, tal público tem condições financeiras de pagar mais pelo produto. “Ao contrário do que Paulo Guedes afirma, livro não é coisa de elite. Se fosse, nosso atual governo seria mais informado.”

Os editores

Depois de fermentar na mente dos autores, o próximo passo do livro costuma ser chegar à mesa da editora. Essa é a posição ocupada por Gustavo Faraon, cofundador da Dublinense, para quem a proposta do governo federal é fruto do total desconhecimento do setor ou tem apenas a intenção de um ataque. “É meio inacreditável. Ou é desinformado, ou é doloso. Acho que é a segunda opção.”

Faraon acredita que a proposta não irá adiante. Se for, diz que a taxação destruirá o mercado livreiro, em troca de um ganho de caixa risível. No dia seguinte da eventual aprovação do novo tributo, afirma que os livros aumentarão de preço na mesma proporção da alíquota. “As margens do setor já são muito apertadas, é muito colocar isso dentro das nossas margens, 12% é mais do que os próprios autores ganham. É bizarro.”

O dono da editora Dublinense acredita que o efeito dominó será inevitável e enfraquecerá o elo mais frágil da cadeia do livro, as livrarias, que passam por um momento delicado nos últimos anos. Livros mais caros significarão vender menos. Ele destaca que o faturamento do mercado livreiro encolheu em torno de 20% entre 2006 e 2018, embora durante o período as vendas tenham aumentado com o livro mais barato. Faraon alerta para o risco do discurso de que o livro é “imune” de impostos, pois embora o produto não seja taxado, as editoras pagam impostos. “É óbvio que há uma tributação indireta. O produto é imune, mas não significa que a cadeia do livro não paga imposto”, afirma. “Infelizmente, editora não é igreja.”

O editor diz ser grave a intenção de deixar o livro menos acessível e mais elitizado, mas avalia que a proposta do governo é, acima de tudo, uma provocação. A interpretação do cofundador da Dublinense é semelhante à do jornalista e escritor Rafael Guimaraens, sócio da editora Libretos. Para o autor de Tragédia da Rua da Praia, a intenção de taxar livros não é uma medida isolada do governo Bolsonaro, e deve ser percebida no contexto de atitudes hostis à cultura, ao conhecimento e à pesquisa. “Há uma guerra contra os artistas”, afirma.

Para ele, a postura de Guedes revela desprezo e aversão ao setor, como se ler fosse algo supérfluo. O sócio da Libretos lembra do impulso que houve na cadeia do livro após a lei de 2004, com um conjunto de ações que valorizou o livro e aumentou o índice de leitura no Brasil. Se a proposta do governo federal for adiante, Guimaraens diz já haver estudos que apontam um aumento de até 20% no preço do livro, o que seria “um desastre”. “Num país que já lê pouco, isso talvez faça o Brasil ser o país idealizado pelo Guedes, onde o livro é coisa de elite.”

Apesar dos riscos, o jornalista e escritor vê o setor mobilizado contra a proposta. Caso o novo imposto seja aprovado na reforma tributária, defende que a alíquota do livro permanece em 0%. “Acho que deve haver mobilização, acho que não vai vingar, mas é um risco. Temos que fazer pressão.”

A livreira

Da mente criativa do autor, passando pela editora, na sequência o caminho natural do livro é chegar até a livraria, último estágio para, enfim, encontrar seu destino final: o leitor. É nesse último elo da cadeia que se encontra Nanni Rios, proprietária da livraria Baleia, localizado no centro de Porto Alegre.

Ela conta que, quando a proposta foi divulgada na mídia, chegou a pensar: “Lá vem mais uma ideia absurda do governo Bolsonaro que, logo em seguida, vai passar, de tão absurda, e as pessoas não vão dar bola”. Mas não. A proposta avança no debate. Uma proposta que, para ela, “não faz o menor sentido”.

Ao ressaltar não ser especialista em economia tributária, Nanni prefere se ater ao simbolismo da proposta. “Os impostos são usados para, além de fazer caixa e atender os direitos básicos da população, incentivar ou desincentivar coisas”, analisa, citando como exemplos as políticas de incentivo fiscal para determinadas atividades econômicas. “Mais um imposto, com uma alíquota de 12%, impactará brutalmente o mercado livreiro no Brasil. Especialmente no campo simbólico, porque aí sim se encareceria o livro e o tornaria um objeto para quem tem dinheiro”, avalia.

Nanni critica a declaração do ministro Guedes, que disse que o governo distribuiria livros para quem não puder comprá-los. “Que tipo de liberal é esse, que quer dizer o que as pessoas devem ler? Se o governo vai distribuir livros, ele vai escolher os livros que as pessoas vão ler? Esse imposto é absurdo, e não falo isso pensando apenas com o bolso. Falo pensando com a cabeça e o coração, os dois órgãos que se movem quando leio um livro.”

Ao invés de ser taxado, a livreira afirma que o livro deveria ser incentivado no Brasil. Para a dona da livraria Baleia, o simbólico envolvido na proposta é imenso e escancara uma ideia contra a arte e a cultura. “É um ataque, realmente. Me entristece ver um cenário sendo lido pelo avesso. O Brasil deveria ser um país que distribui livros à população, não escolhendo o que a população vai ler, mas barateando o custo do livro.”

Se aprovada a proposta, Nanni acredita que na ponta da cadeia do livro, ou seja, nas livrarias, será ainda mais difícil criar hábitos de leitura e formação de público. “Uma livraria não é só livro na estante. A gente faz evento, coordena atividades. Às vezes a pessoa vem pra uma atividade, que é gratuita, e sai sem comprar nada. A gente não ganha nada, mas está fazendo formação de plateia. Quando essa pessoa tiver uma grana, ela vai voltar para comprar um livro.”

Se estivesse vivo, o que será que Jorge Amado diria para Paulo Guedes sobre a proposta de taxar livros em 12%?

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