Por Euro Mascarenhas/NPC
“Por um delivery mais justo, na mão dos próprios trabalhadores”, diz mensagem do novo portal de entregas
O mês de julho foi marcado por um evento histórico. Pela primeira vez no Brasil, os trabalhadores dos serviços de entrega por aplicativos digitais resolveram fazer uma greve. A chamada “breque dos apps”, que aconteceu nos dias 1 e 25 de julho, denunciou a exploração que sofrem os entregadores e que só veio a piorar com o período de pandemia.
Como resposta a esta situação, o grupo de entregadores antifascistas do Rio de Janeiro lançou uma plataforma de entregas própria com o nome sugestivo de Despatronados. No ar há 15 dias, a iniciativa se coloca como uma alternativa mais justa para os trabalhadores, fornecedores e clientes. “O objetivo é a autogestão, liberdade de escolher a melhor opção de ganhos, fortalecer nossa consciência política e romper com essa relação de exploração dos aplicativos”, esclarece o entregador Carlos da Silva, mais conhecido como Carlos Rasta.
Exploração, pandemia e luta
A situação dos entregadores não vem se deteriorando de agora, como explica Luiza Helena Rizzo, que faz entrega nas regiões da Grande Tijuca e Engenho Novo: “a falta de cuidado dos aplicativos com seus entregadores evidenciou a desigualdade social que já estava posta para os trabalhadores de delivery. Estamos tendo que pagar máscara e álcool em gel do nosso dinheiro. Isso é extremamente absurdo”.
Lucas Gomes também é membro do grupo Despatronados. Para ele, a escalada de destruição da CLT, crescimento exponencial da categoria de entregador terceirizado, além da terceirização dos demais postos de trabalho foram os estopins para que o movimento de entregadores antifascistas ganhasse corpo. “É sobre não ter vaga de burguês para todos que querem ser, e o Estado abrindo disponibilidade para que aspirante a empresário ganhe dinheiro em cima de trabalhadores, versão nova normalidade 2020”, completa.
Os números confirmam a fala de Lucas. Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores no ramo de entrega por aplicativos aumentou em 201 mil pessoas no primeiro trimestre de 2019, isto em relação ao mesmo período do ano anterior. Ainda de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a quantidade de pessoas que entraram no ramo de delivery (entrega) aumentou 104,2% em 2018.
Durante o surto de Covid-19, este número teve outro grande salto. Apenas em março deste ano, quando a pandemia estourou no país, a iFood, uma das principais empresas do setor, registrou a inscrição de 175 mil novos candidatos para a vaga de entregador; no mês anterior, os interessados foram 85 mil.
Carlos Rasta trabalha como ciclista mensageiro desde 2016. Assim que a empresa Uber Eats chegou ao mercado brasileiro, ele se inscreveu e passou a trabalhar. Entre os muitos problemas com que ele precisa lidar nas empresas em que presta serviço, a questão do bloqueio é a mais difícil. “É uma das formas mais perversas de punição. Joga a pessoa no desespero pela sobrevivência”. O bloqueio consiste em uma espécie de penalidade por parte do aplicativo, que, insatisfeito com o entregador por qualquer motivo, não emprega mais seus serviços de maneira definitiva ou temporária, por alguns dias ou horas.
O fim dos bloqueios foi uma das reivindicações das greves organizadas pelos entregadores. Essa forma de punição, cujos critérios de aplicação não são bem definidos, no mínimo, deixa os trabalhadores horas sem receber chamadas, o que pesa bastante no quanto eles conseguem arrecadar com o serviço que realizam.
Luiza relata um caso que exemplifica tanto o funcionamento dos bloqueios aos entregadores, como a maneira em que mais se sentiu desamparada pela empresa para qual prestava serviço: “o aplicativo queria me obrigar a carregar 12 quilos de ração e uma caixa gigante de brinquedos de cachorro, sendo que eu trabalho de bicicleta e era humanamente impossível realizar essa entrega. Pedi para ser liberada do pedido, fui liberada, mas como punição me bloquearam no aplicativo e não consigo trabalhar mais nele desde então”.
Lucas é enfático ao dizer o seu estado atual: — “Eu tô exausto!” Ele trabalha como entregador há 3 meses, mas também faz outros “bicos” para levantar a renda. “Tenho dois empregos sem carteira assinada e outros três bicos. Também dou aula de dança, inglês e o que mais aparecer”, afirma.
Carlos comenta a situação a que os entregadores estão submetidos no período de pandemia: “Somos mais uma categoria trabalhadora exposta à contaminação de Covid-19. Não podemos parar, mas não precisamos morrer. Quantos companheiros e companheiras foram contaminados, morreram e não sabemos?”.
Ser mulher entregadora
Dados do Aliança Bike revelam que 99% dos entregadores de bicicleta são homens; já a plataforma iFood informa que entre os seus 170 mil entregadores, 1,8% são mulheres. Tais números mostram um universo bastante masculino. Luiza trabalha como entregadora desde 2019. “Essa vem sendo a minha única fonte de renda até então”, afirma.
A entregadora conta um pouco sobre como é ser minoria em um ambiente ocupado predominantemente por homens. “É muito ruim ser mulher em um trabalho extremamente masculinizado, onde as pessoas não acham que você deveria estar ocupando aquele lugar”, lamenta, Luiza Helena. Perguntada se já sofreu alguma tentativa de assédio, ela responde: “Sim! Já sofri e sofro praticamente todos os dias trabalhando. Costumo dizer que as mulheres sofrem assédio triplo nesse trabalho: de clientes, do estabelecimento e de outros entregadores também. É algo que afeta muito a saúde mental das mulheres entregadoras”.
As mulheres aproveitaram a greve dos entregadores para também colocarem suas pautas. “As entregadoras reivindicam que as plataformas tenham um canal de denúncia para esse tipo de situação de vulnerabilidade em que o trabalho as coloca, tenha sido o assédio realizado por cliente, funcionário do estabelecimento ou entregador da mesma plataforma. E que essa pessoa seja punida pelo aplicativo por causa das atitudes (assédio ou estupro) que tomou com a entregadora”, declara Luiza.
Ela enxerga o Despatronados como uma forma de conectar os entregadores diretamente com os clientes, para que eles façam seus pedidos sem existir uma terceirização do trabalho. “As pessoas têm sido bem receptivas com a plataforma. Em poucos dias, tivemos já um retorno bem grande. Chegam pedidos todos os dias”, afirma.
Luiza também vê a nova plataforma como uma maneira de mobilizar outros companheiros politicamente: — “Com certeza é uma forma de engajar os entregadores na luta por condições dignas de trabalho”.
O diferencial: a bandeira antifa
O método usado pelos entregadores do Despatronados é bem conhecido. Os pedidos acontecem via grupo de Whatsapp. O funcionamento acontece em horário comercial e os valores estão estipulados em: R$ 15,00 para retirada mais entrega até 5 km, R$ 5,00 para entrega adicional até 5 km e R$ 1,00 por quilômetro a partir do quinto quilômetro. Os entregadores estão separados por região da cidade do Rio.
A ideia é que a plataforma seja um modelo de cooperativa a ser seguido. “Com certeza o coletivo Despatronados será um exemplo e estímulo para que outros entregadores de aplicativos se reúnam e organizem seus próprios coletivos”, comenta Carlos Rasta. Ele também salienta o grande apoio que a iniciativa tem recebido das pessoas.
Lucas destaca o grande diferencial do Despatronados: “levantar a bandeira antifa, reivindicar direitos e montar a cooperativa no meio de um governo de destruição ampla de direitos trabalhistas. E nós somos uma das categorias de prejudicados”.
O entregador também explica que a ideia de cooperativa é parte de uma estratégia de resistência econômica, se diferenciando do eixo de atuação política que vai às ruas protestar. “A cooperativa precisa de um funcionamento de trabalho que um movimento social não tem. A cooperativa é parte da resistência econômica, o movimento de protesto parte da resistência política. É igual, mas diferente”, conclui.