CRÔNICA

 

 

Fica assim não, minha menina, não tenha medo. Senta aqui pertinho, escute comigo o carinho do vento, o sal no rosto. Até quando existir um mar desse tamanho, nada de mal pode acontecer. Não é verdade que somos pó e ao pó voltaremos; somos feitos de água, dela viemos e nela nos transformaremos. Olha que lindo, olha como o mar muda de cor, lá no fundo, onde se junta ao céu. Não tenha medo do homem mau, não vai te fazer nada. Mas o mar não pode ajudar, mesmo quando te abraça com ondas de ninar, não pode ajudar. Quem ajuda sou eu e você. Você será meu amparo e eu o seu. O coitado do boi não tinha ninguém por perto para ajudá-lo. Amarrado, acorrentado, nasceu e viveu por uma única razão, o boi vivia para morrer, comia para morrer, engordava para morrer, Coitadinho dele. Como em um conto de Jorge Amado, ou uma música de Dorival Caymmi, o povo fala que o boi ouviu uma voz, o chamado de Iemanjá, a Rainha de todos os mares. Outros dizem que ele fez uma escolha consciente, do jeito que o escravo fazia quando capturado pelo capitão do mato. Nunca saberemos. Sua história será contada ao luar para quem queira ouvir, para os filhos e os netos consolando e afagando um ao outro, como você e eu, minha pequena, sentados nas pedras do mar de Salvador.

Não chora, minha linda, apoia sua cabeça aqui, eu vou te proteger, não tenha medo do homem mau. Esse não é um conto de fadas, sei que os monstros existem mesmo, mas não vou deixar que nada te aconteça. O homem mau está lá longe. E nós aqui no vento e na luz do mar. Não sei de onde vinha o boi. De repente apareceu nas dunas, atrás das palmeiras. Sem medo, feliz. Corria como um cavalo marinho enlouquecido. Atrás dele, os verdadeiros cavalos da polícia no maior galope tentavam alcançá-lo, cercá-lo num círculo de fogo para devolver o coitado ao caminhão de onde havia fugido. O pessoal fala que o canto de Iemanjá chega longe, mesmo onde o mar é só uma vaga lembrança, mas quem consegue ouvir sai na carreira para procurar, e descobrir os segredos das coisas que nunca aconteceram, mas que sempre existiram; quem ouvir nunca mais quer voltar. O homem mau é muito pior que os vilões das histórias. Prometeu metralhar a gente, botar todo mundo na prisão, prometeu nos mandar embora para sempre. O homem mau convenceu muitas pessoas. Nesse momento está dizendo coisas horríveis, diz que os homens mais antigos desta Terra são como animais do zoológico e que as árvores devem ser derrubadas para cavar buracos à procura de ouro. Os homens mais antigos desta Terra vêm de um tempo que não existe mais, vivem na floresta, como fizeram desde muito antes que, do outro lado do mar, chegassem os navios com espadas e crucifixos. Chamam a si mesmos de “Povo dos Homens”. Achei lindo! Povo dos Homens Livres. Mas hoje o homem mau diz que, pela lei soberana das nações modernas, eles não precisam mais de sua terra. Por causa de tanto sofrimento e humilhação muitos deles fizeram como o boi. Não sei se ouviram o canto de Iemanjá. Só sei que não resistiram e fugiram longe, longe de tudo, longe até de si. De tão longe que era fizeram uma coisa tristíssima e fecharam seus olhos para sempre. Porém, para o boi foi diferente. Dizem que mergulhava nas ondas de propósito; quando viu os cavalos da polícia, percebeu que se parasse teria sido levado de volta ao caminhão. E então correu cada vez mais rápido em direção à água, entre as ondas. Por três vezes tentaram pegá-lo de todas as formas, e ele lá, mergulhando fundo. E o mugir dele parecia grito de gente, deixava a água cobrir sua cabeça, mugia, gritava, nas ondas verdes do mar, respondia à voz de Iemanjá, alguém disse que parecia sorrir, feliz. O boi entrou no mar para se libertar, escolheu seu destino contra uma vida atroz e, principalmente, contra a morte atroz do matadouro. Acho que quando percebeu onde o estavam levando, decidiu morrer livre. Como os escravos capturados depois da fuga, comendo terra sem parar. Os Homens Livres da floresta escolhem a tristeza da solidão na bebida: morrer para permanecer homens e livres.

O homem mau de Brasília diz que não é possível tão pouca gente ter tanta terra, principalmente aquela terra que serve para a riqueza nacional. Não tenha medo, minha pequena, nós não faremos como o boi, os escravos, como os homens da floresta. Ele não pode vencer. Então ficaremos para dizer ao homem mau que a “liberdade” é o bem mais precioso porque rima com “dignidade”. Liberdade e dignidade. E o nosso grito será a voz de silêncio, do vento, do mar, para todo mundo ouvir. Agora fecha os olhos, minha pequena, e veja o boi, lá longe, nas ondas, nadando, voando, cantando, livre, feliz. Não tenha medo, e me abraça, como rio que desagua, como o céu que abraça a terra, o mundo, o mar sempre igual, sempre novo, eterno enorme, o mar-universo de São Salvador de Bahia de Todos os Santos.