RESIDÊNCIA ARTISTICA
Bianca Coutinho Dias* é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado – FAAP (2011). Graduada em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES (2002). Fundou e coordenou o Núcleo de Investigação em Arte e Psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz – IFF (Ribeirão Preto/SP 2012-2015). Participou do grupo Redes de Pesquisas Escritas da Experiência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Co-coordena o Projeto de Cinema e Psicanálise Cine-Cult USP Ribeirão Preto, em parceria com o Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade – CLIN-A.
A Casa da Escada Colorida promoveu um encontro da crítica com os residentes e disponibiliza uma entrevista sobre seu percurso na interlocução entre arte e psicanálise.
– Poderia falar da sua trajetória nessa relação construída com a arte e a psicanálise?
– Nunca soube precisar muito bem o que veio antes, a arte ou a psicanálise. Um aspecto indiscernível entre os dois campos se colocou em minha vida desde cedo, devido ao contexto familiar e geográfico de onde vim. Nasci em Minas Gerais, numa cidade de nome poético e abismal: Descoberto. Uma cidadezinha muito pequena da Zona da Mata mineira, que fica ao lado de Cataguases, terra de Humberto Mauro, que dizia que cinema é cachoeira. Eu mesma cresci numa cachoeira que, na infância, ficava dentro da fazenda de um tio. Cresci frequentando as águas geladas dessa cachoeira, rodeada de bichos e frutas. Então, eu habitava um mundo de perplexidade, um ambiente rural com algum desejo de ser urbano (vivia entre a fazenda, o sítio da minha avó e a minha casa ao lado da praça principal da cidade). Essa deriva já criou uma imensa ambivalência que me conduziu inexoravelmente para a arte ou para uma disposição sempre atenta para o assombroso da vida, para aquilo que vive num mais além da aparência das coisas.
Eu morava numa casa muito singular. Meu pai era muito louco e fascinante, ele colecionava objetos completamente desfuncionais e absurdos, pendurava pedaços de madeira na parede, como um sarrafo da Mira Schendel, ou acordava num dia qualquer e pintava tudo que era próprio de um cômodo de uma única cor, sem qualquer justificativa racional para um gesto que desestabilizava algo da ordem mineira. Anos mais tarde, passei a frequentar exposições de forma sistemática, escrevi sobre bienais de arte, reconhecendo algo que já estava em jogo na minha vida e na minha história. Pude ir me reapropriando disso e encontrando um lugar, que é também uma atopia, por conta da minha própria análise e da minha relação com a psicanálise.
Esse objeto estranho que desrealiza uma cena harmônica sempre esteve presente, organizando algo muito próprio da arte que é aparição e desaparição. Minha casa era a única da cidade com uma imensa biblioteca na sala de entrada, com livros diversos e surpreendentes, de Camões a Carl Sagan e livros de arte. Às seis da tarde, além do sino da igreja havia uma espécie de flutuação quando se ouvia “Ave Maria”. Fui decodificando esses elementos de pura estranheza entranhados num ambiente bucólico.
Descoberto é uma cidade super católica e há algo foi fundamental para minha diáspora pelo mundo: me intrigava o fato do mundo ser imenso, o que soube através da leitura sistemática que meu pai fazia do livro “A volta ao mundo em 80 dias”. Mineiro não se desloca muito, ninguém saia de lá e isso me causava um desejo imenso de me arriscar para além daquele universo. Mas mineiro, quando vai embora, leva Minas junto. Como está em Drummond, “Itabira é só uma fotografia na parede, mas como dói”.
A artista Maria Martins fala da Amazônia, mas a referência à sua cidade mineira sempre retornava em algum lugar que nem ela sabia bem. Penso que é o que acontece com mineiros que rompem com a tradição. Sou uma mineira de formação católica e assimilação rebelde que cresceu num ambiente repressor, numa casa onde a relação com os livros e com os objetos sempre foi excêntrica. Minha casa tinha um púlpito de madeira que, em todas as outras casas, abrigava a bíblia, mas não na nossa. Quando perguntei se não deveria ter um objeto ali, meu pai respondeu: “Há um objeto, o próprio vazio”. Acho que ali ele selou algo da transmissão paterna e meu destino, pois com uma revelação dessas era impossível que não fosse fisgada pela psicanálise. A partir dessa fala-convocação do meu pai, percebi essa estranheza e essa relação com o vazio, que me levaram tanto para a arte quanto para a psicanálise que, de alguma forma, já estavam lá. Além disso, tínhamos a coleção “O Pensamento Vivo” com textos de vários pensadores. Fiquei completamente capturada pelo volume sobre Freud. Então essa relação, com a arte e com a psicanálise, se colocou de maneira orgânica e indissociável na minha vida, pois são dois discursos que lidam com a relação com o vazio e com o objeto, a partir de um ponto que desrealiza esse objeto como um objeto comum. Cursei em psicologia para, na graduação, me encontrar com a psicanálise. Octavio Paz fala do lugar da transgressão poética, o lugar da palavra que, ao invés de anunciar o mundo, cria uma enunciação, uma revelação da própria opacidade das coisas.
Em 2003 tive um encontro fundamental com Miriam Schnaiderman, psicanalista que me apresentou a uma dimensão essencial da arte. Miriam me apresentou seu documentário “Gilete Azul”: um documentário sobre Nazareth Pacheco, uma artista importantíssima da cena da arte contemporânea brasileira, que produziu uma obra impressionante com vestidos de gilete, estiletes, de camas e brinquedos de acrílico com pregos ou materiais cortantes. Aquilo me emocionou muito e, a partir desse encontro, assumi essa questão da escrita da crítica de arte. O trabalho de Nazaré é de uma brutalidade e uma delicadeza e, ao mesmo tempo, revela esse objeto estranho na relação com o corpo mas, sobretudo, desnaturaliza essa relação. Então, foi uma revelação de algo que já estava inscrito em mim, e me lembro de concluir que era aquilo que eu queria pensar. A partir daí, comecei a escrever para a Revista B, uma publicação local, depois para outras publicações nacionais, até que tive contato com a coleção de arte contemporânea do Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto, onde estruturei e coordenei durante alguns anos o “Núcleo de investigação em psicanálise e arte”. Foram anos fundamentais para minha formação, convivendo com uma grande coleção, conhecendo curadores, críticos e artistas que vinham realizar cursos. Até meu mestrado no Rio de Janeiro, a cidade de Ribeirão Preto foi um local de formação, uma base para um percurso que culminou no acompanhamento de artistas do país todo, na realização de cursos e participação em livros e catálogos. Recebi convites para visitar atêlies e passei a escrever para revistas de amplo alcance. Acompanhando artistas e visitando atêlies, teci “conversas infinitas”– para citar aqui uma ideia magnífica de Maurice Blanchot – que está viva no processo de uma exposição ou da publicação de um livro.
– Nesse caos e incerteza em que vivemos hoje, o que a motiva a produzir?
– Posso dizer que, pessoalmente, não deixo a chama do desejo se apagar. Sou teimosa, mas também acho que, num campo mais amplo, a relação com a produtividade será afetada. Devemos repensar tudo e sobretudo uma relação maquinal com a existência. O sistema da arte está sendo afetado e tenho percebido projetos muito interessantes, coletivos surgindo, saídas que tocam um senso de comunidade. Não dá para prosseguir nesse regime de produtividade e competitividade. Não é somente o cenário da pandemia, mas também o pandemônio político, as crises sanitária, econômica e ética sem precedentes, em que o lugar do artista é precarizado e atacado. Devemos nos unir e encontrar frestas de sobrevivência, espaços de vida e de encontro. Precisamos insistir na pulsão de vida, apesar de tudo.
– Como pensar, hoje, a questão do feminino no campo da crítica?
– Sempre pensei o feminino como algo da ordem do contingente, do encontro fortuito, do acaso. Penso que tanto a psicanálise quanto a arte encarnam essa dimensão do feminino, mas penso também que é preciso destacar e desenhar fronteiras do feminismo que criam uma incidência importante no campo da arte. O grande impasse é não criar uma moldura única para todas as mulheres e aceitar a diferença dessa variedade que não se deixa dobrar pela lógica do Um. Se o feminino não tem fronteiras, devemos escrever um litoral para enfrentar, no campo da crítica, a prevalência histórica do pensamento masculino.
Importante destacar aqui toda uma produção de mulheres artistas que estabeleceram diálogos e tensões com o mundo, abrindo um campo importante: Anna Maria Maiolino, Sanja Ivekovic, Eva Hesse, Dóra Maurer, Alix Cléo Roubaud. São grandes referências de artistas que me guiaram em pesquisas sobre o corpo na arte: corpos mutáveis que incorporam de maneira ativa outros corpos. Há uma dimensão indócil do corpo que todas elas sustentaram, inscrevendo um lugar para a mulher que fura o discurso tradicional, patriarcal. No mestrado, busquei pensar num corpo poético e político dando destaque ao cinema de Naomi Kawase e de Agnés Varda, incluindo depois Sophie Calle e Christian Boltanski pela via do testemunho, mas há um imenso campo a ser descortinado, numa pesquisa que pensa a arte e a vida entranhadas e que pensa o feminino como um discurso que pode circular para além das mulheres, um discurso que inclua a dimensão do furo, do real no sentido lacaniano.
– A partir de um trabalho de luto, você escreveu um livro. Como surgiu a ideia de “Névoa e Assobio”?
“Névoa e assobio” é da ordem do milagre: inexplicavelmente, me levantava da cama e escrevia, todos os dias, algo sobre Caetano – um filho que fez sua inscrição para me deixar cinco dias após ter nascido. Era algo que eu não sabia que se tornaria um livro. No meio daquela tristeza, eu podia extrar da dor dilacerante um pressentimento de beleza eterna. Queria conservar na escrita a experiência mística que pude acessar, precisava enfrentar o aspecto aterrador do acontecimento e sentia que, ao escrever sobre o horror inominável de perder um filho em condições absolutamente dramáticas, algo me conduzia, paradoxalmente, para uma espécie de extravio, um deslizamento para além da morte. Fala-se muito de um “esforço de poesia”, mas isto só pode verdadeiramente acontecer quando se sente no corpo que a própria vida é colocada em risco. Sentia que compunha uma paisagem nessa travessia e escrevia todos os dias. Um dia, Arthur Dapieve e Zuenir Ventura, amigos para quem mandava notícias através de e-mails, disseram que eu deveria publicar. Então, lembrei-me de “O ano do pensamento mágico”, livro de Joan Didion que começa assim: “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Já conhecia seu trabalho com a escrita e achei bonito e potente que uma ensaísta brilhante se dedicasse a escrever sobre uma experiência radical e que pode transmitir o essencial da vida. Na época, ela havia perdido seu marido, o grande amor com quem passou a vida, e enfrentava uma grave doença da filha que chegou em seguida. Havia ali uma dignidade que me deixou impressionada.
Eu escrevia no auge de uma dor e de um mistério ainda cambaleante, me segurando nas palavras. Certamente, este livro se configura como uma travessia, como um trabalho de luto e a escrita surgiu como um meio instável e precário de introduzir alguma ordem, uma maneira de me rodear de um silêncio necessário. Escrever e colher flores num campo minado, escrever para além da decifração e amando de maneira obstinada o não-sentido. Lembrava-me de Herberto Helder, poeta português que me acompanha sempre: “Já sei que a minha força está em saber manejar a minha fraqueza. Sou hoje uma espécie de campeão nesta estranha ginástica. Estou em ressureição lenta”.
– Quais são seus próximos planos? Qual sua visão do futuro diante do esgarçamento simbólico e da incerteza em que vivemos?
Acredito nas utopias. Assim como Edson Luiz André de Souza, um psicanalista que admiro, creio que a utopia tem muito mais uma dimensão de subtração de um excesso de imagens e de sentido – exatamente como na interpretação psicanalítica, suspendendo as certezas do sujeito – do que de prescrição de novos códigos de conduta e projetos de felicidade.
Sabemos bem que toda a parafernália capitalista e a ciência ao redor da superação é opaca ao vivo e pulsante do desejo. Penso que há uma ferida incontornável e uma dimensão, justamente, do insuperável. Não se trata de passar por cima disso e encontrar uma solução sintomática protocolar e lugar comum, como pensar que basta colocar outro filho no lugar e tudo se supera. Aposto numa ultrapassagem que guarda a ferida como uma marca preciosa, possibilidade que creio ser menos melancólica.
E, se acredito nas utopias, acredito na criação e na possibilidade do novo. Sou uma lacaniana apaixonada em igual medida por Walter Benjamin: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe”. A crença na utopia faz com que eu caminhe do íntimo ao político e faz também vicejar meu desejo de resistência junto ao outro. Vivemos um momento cruel, autoritário, dogmático, catastrófico mas, como diz Edson Luiz, ao citar Roger Dadoun, podemos inverter o sentido do vetor de como usualmente se pensa a utopia e pensá-la como um movimento que vai do futuro ao passado, numa correnteza contra a realidade. A utopia adquire aqui sua virtude de crítica social. E, aqui, meu futuro e meus planos encontram um solo: a psicanálise, também como instrumento crítico. Não por acaso, minha relação com a arte – que data desde a infância – foi se solidificando a ponto de ser indiscernível da minha relação com a psicanálise. Sou ensaísta, escrevo textos e críticas para revistas e outras publicações, acompanho o trabalho de artistas, com quem produzo catálogos, exposições e seminários, ministro cursos e palestras. Estudei teoria e crítica, pude fundar um núcleo de psicanálise e arte, me especializei em história da arte, enveredei pela vida acadêmica numa pesquisa de mestrado e pude colocar algo do meu estilo aí, pela fineza e agudeza que me foram concedidas pela análise pessoal e por uma formação heterodoxa, atravessada pelo cinema, pela literatura, pela filosofia, pela poesia. Creio que é este fazer – que vacila entre o dentro e o fora, mas é marcado por uma espécie de ferocidade desejante – que me levará ao amanhã. E sei que o amanhã nos acossa. Temos medo quando não sabemos. Para nos defendermos, não precisamos muito: basta insistir na lógica do ontem insuflada pelas formas instituídas. Criar é abrir descontinuidades, interrupções no fluxo do mesmo. Isto é o que encontro na tensão proposta criticamente pela psicanálise e pela arte. Seguirei curiosa e inventando. Não há revolta sem a alegria da invenção e o entusiasmo de compartilhar com o outro, e sem apostar em qualquer coisa que nos conduza além da obscenidade e da barbárie.
*Psicanalista e crítica de arte