Regina de Paula é artista e professora adjunta do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Em 2018, concebeu Teko Haw Brasil, ação que consistiu no desenho do contorno de um grande mapa do Brasil no solo asfaltado da Aldeia Maracanã e na retirada do asfalto de seu interior, dando origem a uma planta baixa do país na terra. O trabalho contou com a parceria de membros da aldeia, artistas, alunas e alunos do Instituto de Artes da Uerj, além de tantos outros colaboradores.¹
A Aldeia Maracanã é uma resistência indígena localizada na área do antigo Museu do Índio, ao lado do famoso estádio Maracanã. Em 2013 a aldeia foi invadida, e o terreno asfaltado, numa operação promovida pelo Estado que concedeu a área a um consórcio liderado pela Odebrecht. Em 2016 os indígenas voltaram a ocupar o lugar, que hoje, reflorestado, é um espaço de troca de saberes dos povos originários, em que vem sendo implantada a Universidade Indígena Aldeia Maracanã.
− Como e quando ocorreu o processo de aproximação com a Aldeia Maracanã? Como se deu o encontro com José Urutau Guajajara?
– Há um acontecimento divisor de águas na minha trajetória e já até escrevi a respeito: uma viagem a Jerusalém no início de 2013. Vivenciar a cidade e a paisagem milenar, de alguma maneira, fez com que eu me voltasse para a nossa própria história. Primeiro comecei a abordar a questão da religião, da história, mais especificamente o cristianismo, que é a minha bagagem religiosa; daí para a problemática da catequese foi um pulo.
Pois bem, em 2017, resolvi começar um trabalho, filmando as manifestações. Toda semana acontecia pelo menos uma. Assim foi que um belo dia, em 2017, me dirigi à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), acompanhada do fotógrafo João Pacca. Para minha surpresa, em meio ao ato que estava se armando, com carros de som, centrais sindicais, palavra de ordem, como que alheio a tudo e, ao mesmo tempo, totalmente conectado, mas muito absorto em sua própria ação, um grupo de indígenas acendeu uma fogueira, estendeu uma faixa com as palavras “Universidade Aldeia Marakanã” e deu início a uma espécie de dança ritual. Instigada, eu quis conhecer a tal aldeia .
Já o encontro com José demorou um pouco. Nas minhas primeiras visitas à resistência encontrei outros indígenas; alguns já não estão mais lá, voltaram para suas aldeias de origem. Finalmente, encontrei o Zé e a Potira Krikati Guajajara, e me lembro bem do dia em que conversamos mais longamente pela primeira vez, e quando, finalmente, comecei a realizar alguns trabalhos gerados por esse contato. É importante destacar a sinergia da aldeia em relação à arte e, também, a presença de artistas e acadêmicos da área de arte na aldeia. Como o Zé sempre menciona, em número bem mais expressivo do que antropólogos, categoria cuja frequência ali seria de esperar.
− Certa vez você comentou que, pelo fato de ser professora em uma universidade cuja comunidade é bastante ativa politicamente, está em contato com vários movimentos sociais, mas nunca se sentiu tão bem acolhida como pelo pessoal da Aldeia. Será uma peculiaridade desse grupo que a ocupa e ativa a pluriversidade ou talvez seja próprio da cultura dos povos originários esse trato agradável?
– Bem, não posso generalizar, não sou antropóloga. Imagino que os indígenas aldeados tenham, de início, desconfiança em relação aos brancos; eu teria, se fosse um deles. A Aldeia Maracanã é muito aberta; se você chegar bem-intencionado, não importa sua origem, credo, cor etc., será bem acolhido; por isso, muitos que são rejeitados pela sociedade frequentam o lugar e acabam desenvolvendo um sentimento de pertencimento. É certo que vão observar por um tempo se você aparecer do nada, como foi o meu caso; mas são pessoas com radar para perceber as roubadas.
Estou cursando Língua e cultura tupi-guarani com o Zé, uma das atividades remotas da Universidade Indígena durante a pandemia. Numa aula ele disse que na língua dele, originalmente, não existe uma palavra para agradecer, e acho que isso tem relação com a troca, que lhes é característica. Ou seja, se você retribui, não precisa agradecer. Essa foi a minha conclusão, é um chute. Fato é que uma vez a Potira disse que a aldeia não é só dos indígenas, é de todos os brasileiros, pois é a nossa história, a nossa ancestralidade, que está sendo preservada e cultivada.
− Em 2013 você realizou uma exposição intitulada E fiquei de pé sobre a areia, com curadoria de Marcelo Campos, após uma viagem a Jerusalém. Seu processo criativo parece se dar por insights e links, estalos e conexões. Do contato com a areia do deserto da Palestina/Israel, em 2013, lhe veio a ideia de trabalhar com a Bíblia. No artigo “José//Urutau//Guajajara: ave fantasma”² você diz que foi “atropelada” pelo tema dos povos originários. Como pintou a ideia de fazer o Teko Haw Brasil?
– Então, sempre digo que as ideias me atropelam ou sobre mim despencam, como um fruto maduro. Essas conexões vão surgindo da própria vida.
Teko Haw Brasil é resultado de minhas primeiras impressões da aldeia. Desde o início fiquei impressionada com a gradual retirada do asfalto que foi colocado no terreno logo após o ataque de 2013. Comecei, desde então, a realizar alguns trabalhos com essa matéria, até que num dado dia de 2018 tive esta ideia – por que não realizar um trabalho no próprio terreno asfaltado da aldeia? Que tal desenhar ali o contorno de um mapa do Brasil e quebrar, retirar o asfalto, para revelar o que está encoberto, recuperando o solo da aldeia Brasil? Certos trabalhos já vêm prontos, acho que são inconscientemente elaborados, mas quando aparecem, é como um raio, uma visão. Então tive certa urgência em fazer logo, pois parecia tão óbvio. Um dado importante e bonito é que quando fui à aldeia para dividir a ideia, para saber se haveria adesão e tal, com muita pressa, pois estava a caminho da Uerj para dar uma aula, o José imediatamente começou a desenhar o mapa com umas pedrinhas. Felizmente me ocorreu registrar o momento numa foto com o celular. Ainda que precária, é uma imagem valiosa, que guardo com muito carinho.
− Não lhe parece curioso o fato de a Aldeia ter sido asfaltada em 2013, ano em que você teve o estalo de começar a fazer incisões descolonizadoras – me refiro a suas obras com a Bíblia, que me parecem tratar de soterramento das culturas dos povos originários e seu ressurgimento pelas brechas, recortes, buracos. Poderíamos considerar que a obra Teko Haw Brasil é um levante? Um levante da terra?
– Sim, de fato é curioso, mas nunca havia pensado nessas bíblias nesses termos, a primeira foi dessas ideias prontas, do nada; depois outras foram elaboradas no processo. Já Teko Haw Brasil tem certa objetividade que não é característica dos meus trabalhos, é muito direto. Por outro lado, ao retirar o asfalto, camadas soterradas, abafadas, são reveladas, e então o conceito pode se expandir.
− Bandeiras é um vídeo seu de 2013, que acabou levando-a para a política. Como isso se deu?
– Veja bem, até pouco eu não tinha motivação para acompanhar de perto certas questões; era o tipo da pessoa que abria o jornal e ia direto para o segundo caderno, depois passava os olhos nas manchetes e lia por cima uma matéria ou outra. Recentemente passei a me interessar mais por política; acho que esse fenômeno aconteceu com parte da população brasileira. Por outro lado, é lógico, tudo na vida é política. Hoje observo com interesse certas aproximações da religião, ou melhor, da espiritualidade, com a política, um entendimento por parte de religiosos de diversos matizes que não dissociam o mundo espiritual do estar-no-mundo. Também a de estudiosos de outros áreas, como a filosofia e a psicanálise, artistas como Emicida, ainda, principalmente, à visão dos indígenas.
O vídeo Bandeiras não foi planejado, sequer estava minimamente equipada na ocasião. Quando mirei três bandeiras tremulantes naquele sítio arqueológico no deserto de Negev, fiquei intrigada e intuí que ali havia uma questão. Só depois fui pesquisar, mas até hoje não posso afirmar o que aquelas três bandeiras – israelense, da Unesco e uma terceira possivelmente pertencente à unidade do exército daquele lugar, segundo informação mais tarde colhida junto a uma agência de turismo – representam exatamente. Uma coincidência bem interessante foi que nesse dia, para realizar o passeio, contratei um motorista, e assim conheci Mohamed, amigo de Edward Said. Enfim, acho que a arte é um campo privilegiado para reflexão; você pode simplesmente abordar uma questão sem a fechar; isso me interessa.
− Você sempre trabalha com colaborações? Como é a partilha de uma criação tão pessoal e íntima com o coletivo?
– Meu trabalho muitas vezes, mas nem sempre, envolve diversos tipos de participação para sua realização. Por muitos anos contei com estreita colaboração de Wilton Montenegro na realização de projetos, como, por exemplo, a série de fotos performances que apresentei na exposição Diante dos olhos, em 2016, no Paço Imperial, incluindo grande parte dos trabalhos realizados na Aldeia Maracanã, entre outros. A realização de Teko Haw Brasil envolveu, na retirada do asfalto, além de membros da aldeia, a participação de muita gente, artistas, estudantes e professores do Instituto de Artes, além de quem foi aparecendo; já no vídeo, tive a parceria de Fabiano Araruna, Marcus Moura e Wilton Montenegro − que também fotografou todas as etapas −, de Inês de Araújo na edição, de Vitor Kruter no som direto e de Guilherme Farkas na edição de som. Por outro lado, a criação solitária, o silêncio, esse momento precisa existir, mesmo quando trabalho com outras pessoas; é algo que antecede o coletivo. Então parto disso; depois, eventualmente, as ideias podem tomar outro rumo, sofrer interferências, como foi o caso de Teko Haw Brasil. Esse projeto tem um aspecto interessante: quando foi concebido estava no auge a discussão sobre lugar de fala no Brasil, então fiquei muito atenta. Pois bem, desde o início, como falei acima, o Urutau acolheu minha ideia, concordou com a localização que eu havia imaginado para o trabalho na aldeia, mas inverteu a posição do mapa, alegando que, de acordo com os pontos cardeais, que eu sequer havia considerado, estava na posição errada. A partir de então, várias decisões foram tomadas conjuntamente, num processo muito rico, como a colocação do marco temporal por Dilmar Puri, José Urutau Guajajara e Zawaruhu Marcelo Tembe e a realização, por José Urutau Guajajara, Potira Krikati Guajajara e Ywyrahu Guajajara, de um ritual dentro do Teko Haw Brasil, etapas que eu não havia previsto, mas que foram sendo estabelecidas em diálogo. Finalmente, o trabalho ganhou vida própria, passou a ser incorporado a atividades da aldeia. No meio desse teko haw, ali no marco temporal, fogueiras foram realizadas, porque o Brasil está ardendo; em torno desse Brasil participei de rodas de maracá. Ou seja, o trabalho não é mais meu, e isso me alegra. No mais, aquela terra asfaltada hoje floresce.
− Areia, pedra, livro. Verdades de outrora, outros lugares. Povos do deserto, rodeados por uma infinidade de areia e pedra; sobre suas cabeças reina absoluto o brilho ofuscante do sol. Seria o monoteísmo um delírio do deserto – “Deus” único, macho e raivoso, uma insolação coletiva? Como se pode enfiar um Deus desse no maior bioma do planeta Terra e esperar que os povos originários, integrados à beleza da diversidade, engulam essa história?
– Esta semana assisti ao filme Ex-pajé, a história de um indígena pajé que perde seus poderes ao entrar em contato com uma missão evangelizadora. É um filme violento e melancólico, ao mesmo tempo muito delicado, e que começa com uma citação do antropólogo e etnógrafo francês Pierre Clastres: “O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas do seu modo de vida e pensamento”. Isso me levou a pensar no que disse José Urutau Guajajara muito recentemente e que serve como resposta a sua pergunta: “Já nos tiraram tudo, nos tiraram quase tudo, [mas] nós temos coisa que vocês jamais vão nos tirar, nós temos o poder da espiritualidade, não vão nos tirar, nós já estávamos aqui, nossos espíritos primários, primeiros, já estavam aqui quando vocês invadiram essa terra, [nós temos] o poder de constranger vocês apenas por estarmos vivos, vocês não conseguiram nos matar ainda, então esse poder vocês não vão nos tirar.”
− Você certa vez comentou que seu guia, em Belém, a levou ao muro que divide o território ocupado pelos israelenses na Palestina e lhe disse: “…olha”. Você olhou rapidamente, e ele repetiu, enfático, com um gesto largo de mão espalmada: “Olha!”. Sete anos depois assistimos, perplexos, entre as mil cenas ubuescas a que nos forçaram a nos acostumar, o despresidente desfilando com a bandeira israelense em punho, em Brasília, acenando para sua base fascistizada. Que relações você traçaria entre o apartheid que o palestino fez questão de lhe mostrar e os recentes ataques de deputados bolsonaristas à Aldeia Maracanã?
– Primeiramente, é bom pontuar, que nosso despresidente, ao se apropriar da bandeira israelense ofende grande parte dos judeus. Dito isso, penso que a situação da Palestina tem paralelos com a questão indígena; nos dois casos trata-se de povos que vêm sendo expulsos, empurrados, excluídos. O ataque do deputado à aldeia foi justamente o não reconhecimento do direito à existência. Trata-se de um naco de terra para um povo espoliado que quer apenas cultivar e compartilhar sua cultura. O advogado da aldeia Arão Providencia Guajajara disse num encontro no Museu de Arte do Rio, no ano passado, “nós costumamos falar que somos os caseiros, nós não somos proprietários e nem queremos romper esse princípio constitucional, esses valores; nenhum indígena é contra (…). Nós não estamos lutando por propriedade”, esclarecendo que a terra indígena, diferentemente da posse civil, tem a questão da destinação para os usos, os costumes e as tradições; trata-se, então, de “dar destinação à vida”.
− Mudando um pouco de assunto: em 2017 conversávamos com Inês de Araújo e vocês comentaram sobre o machismo no campo das artes visuais. Na segunda metade da última década as instituições artísticas brasileiras se voltaram para o debate de gênero e das relações étnico raciais, bem como para a questão dos povos originários. Como você vê a reverberação disso em meio a seus alunos e na produção dos jovens artistas que estão chegando agora no circuito de arte? Na universidade, nas obras, houve mudança substancial de comportamento, no trato, na maneira de falar, no protagonismo negro, feminino ou indígena ou se trata de moda passageira?
– Olha, essa questão do machismo é bem complicada e difícil, está muito entranhada, perpassa todas as relações. Eu sou de uma geração da qual muitas artistas não se declaravam feministas, acreditando que isso atrapalharia a carreira; era muito chocante. Tenho a felicidade de dar aula na Uerj, onde certas transformações e discussões são muito avançadas, mas, mesmo assim, percebemos marcas do machismo e tantos outros preconceitos. Certamente houve uma mudança, até mesmo na fala, como o uso do gênero neutro, algo que vigora na nossa comunicação oral e escrita, pelo menos no Instituto de Artes.
No mais, o feminismo está em todas as esferas, mesmo nas aldeias, hoje temos cacicas, mulheres pajé… e estamos falando de uma sociedade em que os papéis de gênero tradicionalmente são muito definidos, embora isso não signifique, necessariamente, machismo. Não acredito que essas mudanças, apesar do momento atual, sejam moda passageira; vieram para ficar.
− De volta a 2013, em uma academia perto de casa, eu papeava sobre política, argumentando que nós, homens cariocas, perdemos muito tempo e dinheiro tentando parecer mais héteros, mais ocidentais, mais brancos, másculos e patéticos; então enquanto eu aguardava minha vaga no supino, malhávamos os acordos do governador com a Odebrecht, quando ressaltei que a pior parte dessa história seria a remoção da Aldeia Maracanã. Pronto, a raiva de meu interlocutor virou para outro lado: “Aquilo é um lixo, não tem nada de índio, é um lugar para vagabundos e drogados; tem mais é que virar estacionamento logo”. O sujeito, entre uma série e outra, parecia não só querer apagar seus traços evidentes de homoafetividade – que era o motor invisível de nossa tagarelice − mas também seu fenótipo mestiço e indígena. Que ideia é esta, equivocada, de que “se é indígena tem que voltar pro mato”?
– É a ideia da maioria dos brasileiros; por isso eu penso que a questão indígena da Aldeia Maracanã é ainda mais difícil que a dos aldeados. Para muitos os indígenas urbanos não têm direito à terra, a um lugar na malha urbana, já que os consideram “adaptados”, só conseguindo assimilar a ideia do indígena tutelado. Tem um texto muito interessante do Eduardo Viveiros de Castro, “Brasil, país do futuro do pretérito”, que é uma aula inaugural na PUC-Rio, em que ele discorre sobre o contato indígena com o mundo dito ocidental e o desafio que é gerir e controlar a transformação. Esse protagonismo, que combate “o afastamento em relação a si mesmo” é praticado pela Aldeia Maracanã; e, veja bem, até o advogado deles é indígena; isso vai contra muitos interesses. E é justamente essa ponte, o diálogo entre a nossa cultura e a indígena que me interessa, pois é uma luta importante para a causa no geral, já que os indígenas urbanos estão, ainda que a sociedade tenha dificuldade em compreendê-los, de certo modo, mais protegidos que aqueles no alvo dos madeireiros, do agronegócio, dos garimpeiros. Então cumprem um papel realmente importante, de dar voz a muitas questões.
− Muito se fala de não violência – o site Pressenza tem uma predileção por essa forma de luta; tem-se a referência de Luther King, Gandhi e textos lá de fora; pensa-se em sentar o bumbum no asfalto em posição de lótus diante da tropa de choque. A força da não violência, entretanto, despontou na minha frente de modo contundente quando o pessoal da Aldeia foi à Alerj responder aos ataques de um certo deputado nazista que havia feito intimidações armadas a esse espaço de resistência. Com faixas, vestidos para a luta e acompanhados do pessoal da mídia independente e de artistas, sem fazer muito ruído – só sua presença foi responsável por levar o nazitropical engravatado a ficar girando em torno do próprio eixo com olhos arregalados. A força da ética venceu, evidenciando a covardia nua e crua dos brutamontes. Quem esteve presente, sentiu. Não somos ingênuos, esse foi um pequeno capítulo na longa luta da Aldeia Maracanã e dos povos originários. A arte é uma aliada neste campo de batalha?
– A tenacidade é uma força; a presença de indígenas e apoiadores da sociedade civil, seja na Alerj ou no TRF, tem até agora garantido a permanência da aldeia na área ocupada. Como disse acima, citando José Urutau Guajajara, só o fato de existirem constrange.
A arte não muda o mundo concretamente, mas acho que pode mexer com subterrâneos do pensamento e, finalmente, causar algum abalo. No caso da aldeia, expressiva parte dos apoiadores é composta por artistas, então podemos sim dizer que nesse campo de batalha a arte é aliada.
− Em 1999 você desenvolveu a série de fotografias Não-habitável, imagens de galerias comerciais fechadas após o horário de circulação, que evocam solidão e inquietação, sentimento de estranheza, de algo perturbador. Elas me remetem diretamente àquilo em que as empreiteiras tentaram transformar a Aldeia Maracanã: lugar de passagem, estacionamento, uma imensa pizza de asfalto, uma paisagem morta com – quando muito – uma lojinha de souvenirs de plástico da Copa do Mundo e da Olimpíada, talvez vendendo algum artesanato indígena. Percebo em seu trabalho um desejo de escavar, de revelar algo oculto, como disse Frederico Morais em texto sobre sua obra. Com seria essa ideia em relação à aldeia?
– Acho que a pergunta nos faz pensar na questão de nossa memória, e o asfalto que as empreiteiras colocaram sobre o solo da aldeia tem também esse sentido, porque aquele lugar tem história, o solo tem história; foi para salgar a terra. Por isso a retirada do asfalto é uma ação poderosa; e quando os indígenas voltaram a ocupar a aldeia, o primeiro gesto foi arrancar um bloco de asfalto.
A nossa memória desde 1500 tem sido soterrada. Como cantou o samba vencedor da Mangueira em 2019, “Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”, nos lembrando daqueles que não estão mais presentes e que não devem ser esquecidos. Podemos então encerrar nossa conversa com esses versos da minha escola.
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra.³
¹ Disponível em: https://vimeo.com/355120406
² Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/27918
³ “Histórias para ninar gente grande”. G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira. De Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.