OLHARES
Normalmente busco explicação para as coisas na origem das palavras, algo que vem me encantando mais do que antes. Mas, para explicar o termo que se tornou sinônimo de minha mãe, amor e fé, só é possível explicação com momentos soltos, como se eu tentasse buscar provas materiais para o que, talvez, não se explique de maneira tão simples.
No dia 8 de agosto, 8/8, minha mãe, Chica Xavier, fez sua passagem para Orum. Voltou para a Terra Mãe, ou tantas outras palavras que comumente usamos, povo do Axé, no entendimento de que a morte não faz parte de nossas tradições. Entendemos como um encantamento, a pessoa deixa esse plano, a lógica na qual vivemos, e passa a viver em nós de outras maneiras.
Meu entendimento de amor e fé não se faz por qualquer pensador rotulado pela academia. O que chamo de encantamento não se baseia simplesmente no que assimilamos ao longo do tempo, a partir de sábios que passam seu conhecimento ao longo dos tempos.
Minha ligação com o sagrado a partir da Umbanda vem da minha família, a sanguínea e a constituída no Terreiro, uma irmandade, um porto seguro, onde cada integrante desta família faz seu exercício permanente em busca da simplicidade, da colaboração, da solidariedade e do afeto. Em terreiros isso acontece de diversas maneiras, mas com Mãe Chica, ao entoar com sua voz suave “minha filha” ou “meu filho”, o ritmo baixa, a atenção se faz e a harmonia se restabelece. Foi um exercício longo e pessoal da minha pessoa, o filho homem e temporão, de entender que não dividia minha mãe apenas com minhas irmãs e que, por vezes, eu teria que resolver meus problemas sozinho, pois já seriam muitos problemas de muitos filhos para serem sanados com escuta, afago, convite para almoçar no final de semana e papear, ou seja, sempre dividindo o seu tempo para mais alguém, sem julgamentos, com eventuais puxões de orelha, mas sempre com amor. Amor como lugar de encontro entre grupos e pares.
Eu e minhas irmãs somos bem parecidos e diferentes ao mesmo tempo, em personalidade, opinião, gostos, mas nunca houve uma discussão nossa que não envolvesse amor ou preocupação um com o outro. Meus pais, casados por 64 anos e unidos pelas afinidades que também podem ser entendidas como amizade, namoro ou simplesmente amor, por quase 80 anos, tiveram todo um tempo de construção de vida, entre erros e acertos, até que a base do que vimos chamando de amor até aqui fosse sólida e acessível a quem estivesse por perto. E o que os moveu para consolidar esse amor que nos acolhe sempre foi a fé. Fé em dar um passo à frente e não estar sozinha ou sozinho, entender como é complexo o caminho e que ele tem que ser caminhado para chegar a algum lugar, mas em algum lugar onde possamos todos estar juntos.
Em teoria, com seu encantamento acontecido no dia 8/8 – duas vezes o número 8, cujo traço permanece em ciclo contínuo, representando o infinito, como nos alertaram poeticamente na data – a família ficaria com a ausência de sua matriarca. A mulher de Oyá que, como o vento, agita o movimento para a nossa caminhada, nos deixaria por um tempo sem orientação nesse caminho. Mas no encantamento de Chica Xavier, a pessoa que era a mãe da casa permanece em todas as pessoas da família. Na tranquilidade de seu amado Kelé, que fala com saudade e sem tristeza sobre sua companheira de vida, em minhas irmãs, que deixam aflorar muito mais as suas semelhanças com ela, nos meus sobrinhos, em especial em Luana, a herdeira da ancestralidade e sabedoria. É como se o vento espalhasse uma característica, um pedacinho dela para cada integrante da família, para que juntos ela sempre esteja presente e viva, em seu melhor, dentre nós.
Eu tive essa percepção ao sentar para atender o telefone, no início da primeira semana sem ela, na varanda de nossa casa em Sepetiba. Ao sentir a brisa que ela tanto curtia, no mesmo horário da manhã, fechei brevemente meus olhos, como ela fazia nos últimos tempos, e tive a percepção de como todo amor que é construído com fé se faz contínuo, infinito. Mostra que o Orum, assim como o Aiyê, não são distantes. Podem estar no mesmo lugar, em cada um de nós. Isso, para mim, é o encantamento que a torna ancestral e que faz com que saibamos o quanto temos que caminhar até o vento e o Tempo nos fazerem, nos compartilharmos, cada um de nós, com os nossos amores e fiéis. Amor é magia e revolução, fé é o caminho, ao menos no que entendo hoje. O resto é vida.