TERRITÓRIOS
Berço da cultura e da história local, de origem multicultural, repleto de riquezas arquitetônicas, antigo reduto da boemia, inspiração para artistas, frequentado por personagens fascinantes – são diversas as peculiaridades do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Para falar sobre o icônico bairro, a Pressenza ouviu o publicitário Filipe Thales, idealizador do Viva Lagoinha, uma iniciativa que conecta pessoas que acreditam na requalificação do território por meio da economia criativa.
– Como e porquê teve início o projeto o Viva Lagoinha? Quando se deu o seu “encantamento” pelo bairro? Qual o potencial e a importância histórica, artística e cultural da Lagoinha para a cidade?
– O Viva Lagoinha é o reflexo da inquietação de um jovem que faz o possível para viver em lugares que são ideais para tudo que acredita. O projeto surge à partir da minha vivência no bairro, que é o berço da cidade de Belo Horizonte. As pedras que construíram a capital saíram da Pedreira Prado Lopes e da Rua Itapecerica, que em tupi-guarani “Ita” é pedra e “cerica”, que rola. A primeira encruzilhada de BH se dá na Avenida do Contorno com Rua Itapecerica, uma das principais vias, de grande importância histórica e cultural.
Quando eu anunciei pra minha mãe, em 2007, que iria morar na Lagoinha, consegui entender o que é ser um morador do bairro. Ela colocou a mão na cabeça e disse: “Filipe está inventando moda de novo, vai morar na zona”. Hoje ela mora na rua Itapecerica, e se você a perguntar se quer mudar daqui, a resposta é não. Quem vem à Lagoinha sabe que não é nada disso que a mídia que colocou.
O meu encantamento se dá primeiramente pelas pessoas e depois vou me aprofundar na história do bairro, em como eu posso me colocar à disposição para apenas morar em um lugar legal.
– A Lagoinha já foi reduto da boemia nos anos 60, e há alguns anos vem sendo estigmatizada pela violência e criminalidade. Como projetos como o Viva Lagoinha podem colaborar para mudar essa percepção sobre o bairro?
– Por ser um lugar que recebeu negros da região central de Minas Gerais, italianos, alemães, portugueses, sírios, que vieram para construção da cidade, a Lagoinha se torna esse lugar mágico. Aqui surgem as primeiras manifestações culturais coletivas – o primeiro bloco de carnaval, a primeira escola de samba, a primeira banda de sopro… É justamente por isso, por esse cruzo de culturas e pessoas do mundo inteiro, que ela se transforma num reduto da boemia nos anos 60.
O estigma da violência se dá por conta de um processo que a Lagoinha sofreu, que é o progresso. Estamos no centro da cidade, e obras feitas pelo poder público como o alargamento de vias e construção de viadutos, arrancam lugares de socialização, como a Praça Vaz de Melo, com seus primeiros comerciantes. De lá que surge, por exemplo, o copo “Lagoinha”, este copo americano de 190 ml, que hoje é considerado o melhor para se beber cerveja no mundo inteiro.
Nós colaboramos para mudar essa perceção à partir do momento que oferecemos uma vivência chamada “Rolezin Lagoinha”. É uma caminhada de 12 km, para apresentar a história da cidade à partir do olhar de um morador. As pessoas provam da nossa comida, visitam patrimônios, além de locais jamais imaginados como o IAPI (conjunto habitacional de 1940), e a Ocupação Pátria Livre, na pedreira Prado Lopes (mais antiga favela de BH), terreiros de umbanda, antiquários, hortas comunitárias e bistrôs, e a vista maravilhosa do Mirante Lagoinha.
É de coração pra coração que os nossos projetos colaboram para mudar essa percepção negativa do bairro.
– Como tem acontecido a requalificação da Lagoinha? Como a economia criativa pode impactar a vida os moradores locais, em sua maioria idosos? Como os moradores têm recebido e se envolvido com o projeto?
– A requalificação da Lagoinha é um conceito utilizado pelo projeto, e o nosso objetivo é colocar uma lupa em cada um dos pontos do território para trazer a sociabilidade de novo para a rua. Acreditamos que lugar seguro é com gente na rua. Temos três problemáticas estruturais no local, que tentamos mitigar com processos urbanísticos. A grande referência pra nós é a Acupuntura Urbana, do arquiteto Jaime Lerner, que é basicamente você aplicar em lugares menores políticas urbanísticas para resolver os problemas.
A Rua Itapecerica já chegou a ser a segunda rua mais movimentada em termos de comércio de BH, com 25 antiquários, e hoje só tem 7. Nosso principal projeto é a requalificação da rua Itapecerica, com o fortalecimentos dos antiquários. A Rua Diamantina, onde está o mirante, é um lugar de contemplação. A praça principal do IAPI é lugar de sociabilização. O Mercado Popular da Lagoinha voltar a ser mercado, pois as pessoas ainda se lembram da Lagoinha antiga, de ir comprar frutas, verduras.
Como a maioria das pessoas são idosas, a questão das calçadas, da acessibilidade, está no cerne do projeto. Além disso, o Viva Lagoinha impacta diretamente a problemática do alto índice de pessoas em situação de rua. Nós propomos uma política que trabalhe as sucatarias no território para centros de triagem apropriados, que valorizem o serviço dos catadores. Conseguimos também provocar o poder público a olhar, com certa urgência, para os usuários de crack, com políticas de redução de danos e acolhimento. Tudo isso é de dentro pra fora, os moradores é que propõem isso.
– Quais os impactos da pandemia do coronavírus no local? Como o Viva Lagoinha tem sobrevivido neste momento? O que tem te salvado durante o isolamento social?
– O que tem nos salvado durante o isolamento social são as lives, os bate papos, é manter viva essa conexão com o vizinho, mas ao mesmo tempo é um momento de reflexão. Vivíamos um crescimento, com a atração de grandes eventos pro território. Tivemos sim um prejuízo, porque estávamos retomando a credibilidade do morador para projetos de longo prazo.
No ano passado realizamos o Circuito Urbano de arte – edição Lagoinha – e o povo amou. Depois veio o carnaval, com movimentações desde novembro com o inauguração do Projeto Giro, uma casa de shows, e foi fantástico! Aí engatamos um palco oficial do carnaval na Rua Itapecerica. Você vê moradores de 60, 80 anos dizendo que nunca viram aquilo, que estavam felizes, é surpreendente. Fora o carnaval de rua que nós promovemos, como a abertura oficial do evento com o Bloco Afro Magia Negra, e o Babadan Banda de Rua, e o fechamento na quarta-feira de cinzas no bairro vizinho, o Concórdia.
Num primeiro momento da pandemia fizemos campanha nos comércios, para que os idosos ficassem em casa, mas agora está bem controlado. Esse momento pro Viva Lagoinha tem sido de planejamento e de repensar nossas ações para este ano, que eram muitas, de festival de jazz a circuito gastronômico, tudo na rua…
O recado final é esse: se puder fique em casa, mas depois da pandemia vem para a Lagoinha!