LIVRO

 

 

Capitulo III. O batismo nas águas

Hoje eu acordei cansado. Já são dois meses em quarentena e o corpo já está se sentindo fraco. A rotina está tomando conta de mim e, por mais livros, filmes, que eu assista, já há uma rejeição mental para novos conteúdos. Os sonhos estão confusos e os músculos  se atrofiando a cada dia. Não há mais espaços para a coragem, o medo nasce junto com cada manhã.

O sol na janela, o vento, as ligações, vídeo-conferências, a fuga na poesia, nas músicas, tudo parece sem sentido, até mesmo, as gaivotas, que me causam inveja bem no alto do céu.

Fico imaginando a praia vazia e o mar completamente virgem me convidando para ser deflorado. As angústias vão se tornando maiores e os tormentos avassaladores, assustam, a mente sem defesas.

Tento escrever, mas as palavras fogem, sem sentido pelos dedos. Aproveito a mudança no clima e o vento frio que entra pela janela e me arrisco na cozinha e preparo um bolo de maça com canela para comer com café. Até os sabores já começam a ficar sem graça e repetitivos.

Começo a ouvir vozes dos zeladores retirando o lixo do prédio. O barulho dos vasilhames sendo jogados de um lado para o outro, me impede  de entender sobre o que falam, mas, de qualquer forma é um sopro de vida no silêncio tortuoso desse quarto.

A escrivaninha permanece arrumada, seguindo uma lógica de desarrumação, que só os poetas e os loucos compreendem. O bloco de notas com a apuração iniciada de uma matéria cultural para um site,  que eu ainda não consegui concluir, as poesias inacabadas, cheias de frases soltas, livros de diversos temas para pesquisas, documentos, contas a pagar, o maço de cigarros, que eu tento apagar de vez e várias máscaras de tecido em sacos plásticos para usar, quando eu tiver coragem de descer pela primeira vez e ganhar as ruas, depois de sessenta dias de confinamento.  Sobre ela também, vários pequenos frascos de álcool em gel, produto de primeira necessidade nesses dias de pandemia.

A cada dia, o número de mortos aumenta, e, a perspectiva de uma vacina ainda está distante, o que diminui a possibilidade, de se ter um refúgio sequer na esperança de se encontrar o antídoto, que nos livre desta peste, que veio certeira, desafiando e destruindo o modelo de mundo que a humanidade acreditava ser o mais seguro.

Numa pandemia, ao contrário de uma guerra, a mente humana é dominada pelo medo dos silêncios e não das rajadas de metralhadoras e bombas. Até mesmo, a ameaça nuclear se torna pequena diante do vírus que mata, roubando o oxigênio de nossos pulmões.

São tantas questões e todas parecem estar sendo vencidas pelo medo de que tudo vai acabar e os nossos restos serão encontrados, em outros tempos, por outros povos ou alguma larva que desenvolva inteligência suficiente para estudar e tentar entender como a humanidade foi extinta. Talvez um elo perdido. O ciclo se repete sempre, desde o grande dilúvio, a era do gelo, dinossauros e outras tantas, nesses milhões de anos do planeta terra. Por isso, tudo é incerteza, até, e principalmente, as grandes certezas que nos trouxeram até aqui.

Enquanto escrevo, milhares de pessoas morrem e outras milhares nascem em todo mundo. Morrem pelos vírus, guerras, traições, suicídios, acidentes. E eu, sigo pensando, na próxima palavra que vou escrever, e tem  gente morrendo de tristeza, de solidão. E isso tudo, num mundo superpovoado e interligado tecnologicamente, onde as informações voam na velocidade da luz. A humanidade é a verdadeira contradição. Construímos uma teia de grandes dimensões para nos prender, pois está a nos roubar o verdadeiro sentido da liberdade de se auto conhecer.  – Quantos homens sabem observar? E entre os poucos que sabem – quantos observam a si mesmo? Cada um é para si mesmo o mais distante… Assim, Zaratustra, conversou com o mundo e influenciou pessoas, mas as novas ondas de informação foram chegando e Nietzsche também virou mais um no caos que nos governa.

Pensando em Zaratustra foi arremessado pela lembrança a um tempo distante de minha memória.

A trupe caminhava pela trilha no meio da mata para alcançar a cachoeira. Na bagagem, muitas frutas, bebidas, doces, defumadores e velas. Quanto mais avançávamos  mata a dentro, mais forte ficava o som das águas. O roncar da cachoeira batendo nas pedras já provocava uma sensação de conforto e liberdade.  Transpusemos  uma pequena barreira criada por um tronco de árvore caído e que havia provocado uma erosão no solo. Os homens ajudaram as mulheres a transpor o obstáculo, principalmente, as mais velhas que carregavam as indumentárias para o ritual que iria acontecer na cachoeira – o meu batismo para o orixá Oxum.

Minha fé estava tomando rumos nunca pensados. Depois de passar pelos ritos no terreiro,  preparando o aparelho para os trabalhos na Umbanda, agora, depois de muitos adiamentos da minha parte, por não ter certeza se esse era caminho que eu devia seguir, chegava a hora de estabelecer o firmamento da minha coroa, com as oferendas a Oxósse, senhor das matas e a Oxum, a rainha das águas doces. Do ritual que iria seguir, outros orixás também receberiam oferendas para completar a coroa, mas nem a mim foi revelado quais, apenas a mãe e o padrinho desse batismo, eram preparados para guardar esse segredo.

Finalmente, depois de quarenta minutos de caminhada mata a dentro, alcançamos a cachoeira. Vislumbramos um pequeno lago de água acobreada que era abastecido por uma queda d”agua de pelo menos seis metros. A visão era linda, as enormes pedras pareciam ter sido colocadas estrategicamente uma sobre as outras, num encaixe cheio de equilíbrio matemático. O cenário ainda ficava mais deslumbrante quando os olhos ampliavam o foco e ganhavam a dimensão da clareira, cercada de grandes árvores, mas que não impediam o sol de penetrar e iluminar as águas, provocando pequenos arco-iris em vários pontos da cachoeira.

Todos já haviam rompido a barreira da trilha e contemplavam a exuberância do lugar. O pequeno grupo de crianças já havia se atirado nas águas do lago e tentavam pegar os peixes que se moviam por todos os pontos. Os mais velhos sentaram nas pedras à beira e os demais foram se ajeitando e colocando a bagagem na margem oposta do lago, onde havia um platô gramado e algumas pedras. A mãe, se afastou do grupo e se embrenhou numa capoeira próxima. Acendeu algumas velas de várias cores  e entrou em oração, pedindo licença para iniciar o ritual de batismo. Depois de alguns minutos, voltou ao grupo e organizou todas oferendas e deu a cada um membro do terreiro uma função distinta. Meus pais, que estavam presentes, ficaram tranquilos, assistindo a tudo, e as crianças continuavam a brincar e a perseguir os peixes.

Tudo corria harmoniosamente tranquilo. Os médiuns saíram para desempenhar suas funções, enquanto o Ogam começava  a batucar e a cantar os pontos para a abertura da gira. E foi depois da segunda cantiga, quê, de um dos pontos da mata, um grupo chegou correndo e desesperado levantando os braços em todas as direções e se atirou na água gritando. Eles haviam violado uma caixa de maribondos e foram atacados pelos raivosos ferrões. Os que estavam em segurança não conseguiram conter a gargalhada. Em alguns instantes , tudo havia se acalmado. Os maribondos voltaram para a mata e depois de algumas brincadeiras foi dado   prosseguimento ao  rito.

Os cânticos saudando todo o panteão abriram os trabalhos. A essa altura, eu estava com medo e completamente fascinado com tudo o que os meus olhos, ouvidos e os outros sentidos registravam.

Cada batida no atabaque me levava para uma dimensão diferente dentro de mim. A pele seguiu arrepiada como numa febre sem dor. Tudo em mim reagia à batida do tambor, aos cânticos e àquela cachoeira, que havia se transformado num grande e belíssimo altar para a minha iniciação no mundo da paz, do amor e da caridade.

Okê arô, meu pai Oxósse
senhor das matas do Brasil
Okê caboclo Sete Flechas
Protege o povo da floresta
quem canta ahô
quem planta e cuida
da natureza e do meu chão
Oke arô, seu Pena Branca
Seu Sol e Lua
e as Juremas
Tibiriçá e Mãe Jussara
Seu panteão é tão gigante
como a coroa que me cobre
quando caminho em sua mata
deixo pegadas em Aruanda

Os portais definitivamente se abriram e meu corpo começou a canalizar energias que eu desconhecia por completo. Muitas vezes, a rotação com que tudo acontecia me deixava completamente sem consciência do que, de fato, estava acontecendo comigo e naquele lugar, carregado de energias vivas, ao qual eu estava inteiramente integrado.

Perdi completamente a noção do que acontecia em minha volta. Os gritos das crianças brincando e tentando capturar os peixes ficavam cada vez mais distantes, em compensação, minha visão amplificou para outra dimensão. Tudo ganhava a perspectiva da alma – árvores, bichos, pedras, água-, tudo estava vivo, de uma forma em mim.

Até então, desde que cheguei , fui mantido embaixo de uma árvore com a cabeça coberta por um tecido branco. Antes de cobri-la, recebi a aplicação de  um banho feito com várias ervas, todas maceradas com a água da cachoeira. Fui levado para dentro do lago por duas mulheres. Cada uma segurando uma das minhas mãos até me deixarem bem próximo à queda d’água e em frente à mãe preta, chefe do terreiro Cabocla Jurema, que passou a conduzir a cerimonia.  Fitei bem em seus olhos e percebi que ela não estava sozinha. O transe era indiscutível. Ela tocou em minha cabeça com a mão direita e com a esquerda tocou meu peito na altura do coração, e foi submergindo meu corpo, pouco a pouco, enquanto cantava e chorava.

oru mi má
oro mi maió
oro mi maió
yabadô oyeyeo

Com um gesto firme, mas carinhoso, afundou minha cabeça dentro da água e a segurou por alguns instantes. Naquele momento vislumbrei na profundidade daquela cachoeira uma luz muito intensa e senti que meu corpo, por breve espasmo de tempo, mudou seu estado de sólido para líquido – eu, literalmente, virei água. Ao  emergir, minhas narinas e boca se abriram para respirar e abocanhar todo o oxigênio disponível para mim no universo. Fui me recompondo aos poucos, enquanto ia recebendo abraços de todos que estavam dentro da água durante a cerimonia. Mais uma vez, fui conduzido para fora da cachoeira, e desta vez, pelo Ogam do terreiro. Me levaram para um pequeno gongá que havia sido montado, próximo a uma das pedras, no platô que ficava à margem, bem próximo da queda d’água.

A pedra foi coberta com um tecido amarelo palha, bem fino, que mais parecia um véu e na parte de cima, uma imagem de Oxalá, um copo de água e uma rosa branca e na parte baixa, uma imagem de Oxum e outra de Oxósse, em meio a muitas folhas e pétalas de rosas brancas e amarelas. Me posicionei frente ao congá e me preparei para bater minha cabeça. Agora já como um iniciado no culto aos Orixás. Firmei meu ponto, agradeci aos meus Orixás de cabeça, a falange que me guardava à direita e à esquerda e todo panteão da mata e das águas.

Ao me sentir seguro, levantei e comecei a sentir umas fisgadas estranhas em meu corpo. Logo pensei que algo estranho estava para acontecer. O atabaque voltou a tocar e novos cânticos embalavam aquele momento de consagração da minha fé. Vieram com uma vela acesa e passaram por todo meu corpo, a começar por minha cabeça e finalizando em meus pés. E  foi aí, que a porteira se abriu e fui tomado por várias visões e, na maioria delas, estavam presentes as energias verdes, amarelas, misturadas numa espécie de caleidoscópio, onde as formas subiam e desciam em grande velocidade, como se fizessem uma conexão da minha cabeça com o Orum. Tremi, suei e senti intensificarem as fisgadas em meu corpo, principalmente, na altura das minhas coxas, próximas ao meu sexo. Aquilo começou a me incomodar, pois já estava doendo. Enfiei as duas mãos nos bolsos da minha calça e quando as tirei estavam cheias de pequenos peixes. Quando fui jogá-los na água, o bando de crianças que seguiam o ritual me cercou e não tive como não entregar para eles. Mais que depressa arrumaram pequenos vasilhames e os enxeram de água, depositando ali todos os peixes. Eles estavam decididos a levá-los para a casa e montar um aquário.

Ao entregar os peixes para as crianças, me virei de volta para o congá e foi quando minha vista escureceu e eu desmaiei.

Só acordei instantes mais tarde e não vi mais ninguém. Não estava mais na parte debaixo da cachoeira, mas em cima das pedras, que protegiam a queda d´água.

Das duas pedras que formavam a base da cachoeira surgiram enormes labaredas e o vento que vinha da mata faziam com que elas dançassem em minha frente. Com o corpo molhado e os pés no chão, me ajoelhei diante do fogo e pedi proteção a Xangô. Senti um sopro quente invadindo todo o meu ser, enchendo de calor a minha alma e me tornando um manancial daquela energia.

Olhando para o platô, vi que aquelas pessoas vestidas de branco, cercavam o meu corpo deitado em frente ao congá. Com os pés descalços, entrei na mata e fui ver as flores, folhas e bichos com os olhos da minha alma, comungando com todos os deuses da natureza. E assim, acordar para a verdadeira vida.

Saravá!!!!
Os guerreiros de Oxum são dóceis
Todo filho de Oxum eleve
os guerreiros de Oxum, Orai yeye
todo filho de Oxum saúda você.

Da janela do quarto contemplo a lua e os pensamentos voam.


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.