CINEMA
Ruy Guerra chegou ao Brasil no final dos anos 1950, aos 26 anos, trazendo na bagagem um diploma do prestigiado Institut des hautes études cinématographiques (IDHEC) de Paris e algumas experiências como assistente de direção. Imediatamente aderiu ao emergente movimento do Cinema Novo e, sem demora, virou um dos seus principais nomes. Seu perfil era diferente dos cineastas do Cinema Novo, o que gerou alguns atritos com a cena brasileira. No Brasil não havia escolas de cinema, os equipamentos eram precários e o conhecimento sobre cinema era proveniente, basicamente, da condição de cinéfilos daqueles jovens cineastas. As descobertas e os espaços foram sendo conquistados na “marra”, no ímpeto e no voluntarismo daquela geração. Já Ruy dominava as técnicas e a linguagem cinematográfica com destreza, seus anos de estudo e de experiência na França traziam outro olhar sobre o cinema e um domínio da forma que ficavam evidentes ao se assistir qualquer um dos seus filmes. Podemos citar dois exemplos definitivos, a sequência de Os Fuzis (1964) em que o personagem Gaúcho (Átila Iório) é perseguido e morto pelos soldados, e o plano-sequência de Os Deuses e os Mortos (1970). Esses dois momentos têm lugar cativo no ranking das mais impressionantes sequências do cinema brasileiro. As duas são verdadeiras exibições de técnica e linguagem cinematográfica, expondo todo o controle formal característico do cinema de Ruy. No caso de Os Fuzis, os planos que compõem a fuga de Gaúcho com os soldados em sua perseguição, alternando tiros e correria em meio a gritos e latidos, são entremeados por um breve plano com a câmera na mão acompanhando a movimentação de Gaúcho, encurralado num barraco; e pelo plano que antecede a morte de Gaúcho, aonde o ritmo frenético da perseguição estanca e a câmera passeia pelo rosto do personagem, sua mão no gatilho do fuzil, a ponta do fuzil se revelando por trás da parede, voltando para suas mãos engatilhando a arma e culminando com seu rosto ofegante. Logo em seguida, a sequência atinge o clímax. Vários dos planos que compõem essa sequência foram filmados com uma teleobjetiva, aproximando a tensão nos rostos dos personagens. Essa combinação de diferentes recursos acaba proporcionando uma dinâmica e uma percepção diferenciada do espaço, produzindo uma pulsação simplesmente arrebatadora.
Já o plano-sequência em Os Deuses e os Mortos tem 4 minutos e meio de duração, com seis personagens em constante movimentação e a câmera a segui-los alternadamente, tanto em ambientes externos, como internos, até culminar no monólogo, em plano fechado, do personagem de Othon Bastos sentado no chão. Trata-se de uma autêntica aula de mise-en-scène, com um rigor de composição difícil de encontrar paralelo em qualquer outro filme do Cinema Novo.
O uso ao mesmo tempo criativo e rigoroso da linguagem cinematográfica sempre foi a principal característica do cinema de Ruy. Não por acaso, dois dos seus filmes, Os Cafajestes (1962) e Os Fuzis, estão presentes na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Mas poderíamos acrescentar a essa lista, sem nenhum esforço, Os Deuses e os Mortos e O Veneno da Madrugada (2005).
Ruy, porém, não é “apenas” um diretor de cinema mundialmente reconhecido. Podemos incorporar às suas atividades os ofícios de ator, roteirista, montador, diretor de teatro, dramaturgo, poeta, escritor, professor e compositor, aonde acumulou parcerias com Chico Buarque, Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra, Milton Nascimento, Marcos Valle e Sérgio Ricardo. Se a expressão “homem da renascença”, eternizada nas figuras de Da Vinci e Michelangelo, designava homens que habitavam com talento e brilho vários campos do conhecimento e da arte, podemos dizer que Ruy encarna como poucos o “homem da modernidade”, pois além de transitar com desenvoltura por diversos segmentos artísticos, imprimindo constantemente um caráter autoral, Rui sempre foi, também, um ser político. Engajou-se, desde jovem, na luta pela independência de Moçambique, seu país natal, e nunca deixou de se posicionar criticamente frente ao colonialismo e ao fascismo. Seu cinema estabeleceu conexões entre a África, a América do Sul e a Europa reverberando seu espírito internacionalista.
Não é uma tarefa fácil escrever sobre Ruy Guerra, essa figura multifacetada. Agora, imaginem fazer um filme sobre ele! Como retratar em imagens e sons um personagem tão complexo em pouco mais de uma hora? Pois foi essa tarefa “espinhosa” que os diretores Diogo Oliveira e Bruno Laet assumiram.
Normalmente os documentários biográficos apresentam vários depoimentos de pessoas do convívio do personagem, expondo alguns aspectos de sua vida e obra. Ou então, é comum que a narrativa explore apenas um aspecto especifico da vida do protagonista. Diogo e Bruno resolveram não utilizar nenhuma dessas opções. O filme não é exatamente um documentário, não é uma ficção, nem mesmo um docudrama. Eles optaram por apresentar um painel, um mosaico (ou como eles materializam no filme, um labirinto), que mais do que apresentar a vida de Ruy, espelha o seu processo criativo. Sim, o filme tem depoimentos, assim como apresenta diversas sequências dos filmes de Ruy, mas mesmo nos depoimentos não há uma unidade, não há a intenção de elucidar qualquer aspecto que seja. Cada entrevistado explora algum detalhe da personalidade ou da produção de Ruy, seguindo o ritmo multiforme do personagem principal. Chico Buarque fala de sua relação pessoal com Ruy, Michel Ciment situa seus filmes no contexto da história do cinema, Werner Herzog estabelece um paralelo entre suas obras etc. As falas de Ruy, por sua vez, também alternam entre lembranças pessoais, sua visão sobre o cinema, a leitura de poesias, sem se preocupar em esgotar nenhum desses temas, pelo contrário, mantendo sempre uma abertura, uma linha de fuga, característica marcante tanto da sua vida, como da sua produção. Nesse contexto, os trechos dos filmes que são exibidos, mais do que assumirem uma condição meramente ilustrativa, funcionam como um fio condutor, evitando que esse mosaico/labirinto se disperse.
No meio desse painel, Diogo e Bruno intercalam sequências ficcionais interpretadas por Júlio Adrião que poderiam, tranquilamente, fazer parte de um filme do próprio Ruy, frente ao engenhoso trabalho com os signos e a obstinação formal que as compõem. Diogo e Bruno, ex-alunos de Ruy, conseguem prestar um tributo à altura do mestre, o que, convenhamos, não é pouca coisa. Na verdade, é possível dizer que para além de retratar seu pensamento, o filme corporifica um devir-Ruy, ao reproduzir o movimento transversal do seu trajeto, atravessando tempos e espaços distintos, sem inícios ou fins pré-determinados. É fácil imaginar esse trabalho como uma instalação, sendo exibido em várias telas simultaneamente, através das salas de um museu.
O título do filme é um achado por si só (O Homem que Matou John Wayne) e sua conclusão com a deliciosa narrativa sobre o suposto encontro de Ruy com John Wayne, engendra um final perfeito, pois se a figura do cowboy personifica o caráter épico que o capitalismo gosta de impingir à exploração dos novos mundos ao longo dos séculos XIX e XX, Ruy Guerra surge como o supremo iconoclasta. Por um breve momento, através do encantamento do cinema, o Imperialismo se ajoelha frente ao artista.
A homenagem a esse personagem ímpar da cultura brasileira ganha um contorno ainda mais abrangente com a biografia Ruy Guerra: paixão escancarada, uma minuciosa restituição do percurso da vida e do trabalho de Ruy, escrita pela historiadora Vavy Pacheco Borges e que foi lançada simultaneamente ao filme.
Mas a boa notícia é que Ruy não para nunca. Se a condição de “homem da modernidade” denota o ideal do artista do século XX, a verdade é que o século ficou pequeno demais e ele invade a segunda década do século XXI se reinventando, seja na escrita, nas aulas, nos protestos e, principalmente, nos filmes (seu último trabalho, Aos Pedaços, estreou no Festival de Rotterdam, no início do ano). Em breve, tanto o filme de Diogo e Bruno, quanto o livro de Vavy vão necessitar de atualizações.