Em tempos atuais, quem utiliza a internet convive com números em telas. No Brasil, o número de mortes, em contexto de pandemia, é assustador, lamentável e um poço de tristeza. De um dia para outro pode-se ter um Brasil com mais de 1000 pessoas mortas por dia. Segundo as informações oficiais, vindas do Estado, e que são expostas em todos os tipos de computadores existentes, houve, do dia 25 para o dia 26 de julho de 2020, 1.204 mortes por covid-19. As mortes não são todas iguais e muito menos naturais. As narrativas que se apresentam em torno dos números, que não os explicam, tampouco os contextualizam histórica e socialmente, servem para enganar, fragilizar e nos empurrar para o mar da resistência. E mesmo com as piores condições para viver e sendo interrompidos todo o tempo pela morte, há setores e pessoas na sociedade que querem resistir. Mas são as mudanças e as transformações que clamam nas portas e nos corpos, não somente a resistência. Mudar é um desafio, transformar para o melhor possível do viver é um objetivo e, ainda assim, para quê, para quem e como, com os pés e mentes nos caminhos atuais, podemos seguir em vida?
Predominantemente as narrativas encontram-se no universo de como expor, de como falar, de como se apresentar. Elas não pretendem se desenhar no universo do verdadeiro. Ainda que precisem da linguagem para que sejam ditas e entendidas, também precisam da linguagem para o que pretendem esconder, servindo intencionalmente para confundir. Significa dizer que o baile fantasmagórico das narrativas dominantes consiste em indumentária, travestida de verdadeira, para mistificar o verdadeiro, convertendo-se, a si mesmas, em mera retórica. Segue o baile dos desmascarados, posto que a máscara, hoje, símbolo do verdadeiro que se quer ocultar, símbolo do conhecimento que nos protege socialmente contra o vírus, ameaça a necropolítica em curso.
Por outro lado, os números não são dados. São, eles mesmos, construções sociais dos sujeitos que operam o jogo de dados. Os números só falam pelas vozes de sujeitos determinados socialmente, com um lugar específico de fala histórica e concreta. Ou seja, os números também são construídos, organizados, apontados, refletidos e explicados social e historicamente, eles não refletem o real tal qual ele se constitui. Os números são lidos por sistemas conceituais que os tornam muito mais do que meros números. Sem os sistemas conceituais ou os ideológicos, os números sequer existem como números. Por isso eles não falam por si mesmos, eles expressam leituras a respeito da realidade que se pretende interpretar e todas as leituras são mediadas pelas lentes dos sujeitos portadores de um lugar conceitual, político e histórico de fala. Muito cuidado com os números. Para compreendê-los é preciso descortinar os invólucros místicos das narrativas que escondem as lentes, os sujeitos, as intenções e, fundamentalmente, a própria realidade por elas ocultada.
Estamos ainda na fase necrosada da pandemia. Para além da epidemia que toma as atenções de narrativas, do tempo, da política e das ações humanas, trata-se de um movimento que penetra em escala mundial. E aí, os números gritam muito, sem serem ouvidos. Afinal por que o império que declina, juntamente com a sua neocolônia – que deixou de ser ascendente –, juntam valores que, no mínimo, causam medo e empurram vidas para a morte? Os Estados Unidos e o Brasil, juntos, que somam em torno de 7% da população mundial, apresentam cerca de 37% dos óbitos causados pelo vírus. Quem está a nos matar? O vírus ou a política imposta? E por quê? O cenário mundial nos dá pistas significativas: uma onda gigante imperial de novos polos que emergem como ameaças ao decadente império estadunidense que, numa estratégia de sobrevivência e guerra, invade os territórios latino-americanos, numa guerra híbrida, desumana e violenta, em acordo com setores dominantes no Brasil que não se curvariam diante de um novo vírus em detrimento de dar continuidade ao projeto político e fundamentalmente econômico em curso. São personificações dos interesses e dos projetos em curso, na contramão dos interesses humanos, de justiça social e de defesa da vida, que nenhuma “gripezinha” ousaria ameaçar.
Como a fase atual do tempo não é e não será breve, no mínimo se faz necessário pensar e agir, mesmo e principalmente por meio digital, para que a vida possa prevalecer principalmente onde padece. As contradições apontadas nos números são devastadoras ao cérebro. Afinal, vale se perguntar o porquê um país como Cuba, que possui 0,15% da população mundial, tem impacto que tende a 0% da doença na ilha e no mundo. No Brasil, por exemplo, qualquer unidade federativa já ultrapassou os 87 casos que aparecem nos números que apresentam contas de óbitos. A população do estado do Rio de Janeiro, segundo os números, já chega aos praticamente 16 milhões e meio, a despeito das subnotificações e das falsificações em curso. Isso, um número maior do que o da população cubana, que reúne hoje um pouco mais de 11 milhões! Infelizmente, para quem acredita e aposta na vida, esta unidade federativa brasileira reúne, enquanto essas letras estão sendo desenhadas, 12.535 óbitos.
O impacto da morte com o mesmo vírus que atinge Cuba, Nigéria, Argentina, Finlândia, que juntos não chegam a 1% dos casos de óbitos no mundo, no país chamado Brasil ultrapassa os 13%. Isso não pode ser “naturalmente” credenciado na conta do vírus. Da mesma forma, os mais de 23% de óbitos dos EUA não podem ser credenciados na conta do vírus. Não são mortes por doença causada por vírus. São mortes causadas por uma decisão política. São mortes causadas para fins econômicos que estão acima dos interesses da vida. E para quem a curiosidade salta aos sentidos, os quatro países juntos, que não agrupam 1% dos óbitos, somam um total de mais de 257 milhões de pessoas. Ou seja, ultrapassam a população existente no Brasil! Vale, sim, lembrar o que representam esses números entre a vida e a morte, diante da necropolítica que avança no mundo de forma desigual.
Mas é verdade, o peso do impacto da ideologia populista no Brasil não facilita em nada a superação dos limites impostos aos sujeitos. Fêmeas e machos humanos, que vendem a sua força de trabalho para sobreviver, vivem os impactos, do inconsciente ao consciente, dessa ideologia limitadora e dos aparelhos e ações do Estado que são desastrosas para a vida. Sujeitos de nossas vidas e da história, somos as pessoas que precisam superar a onda que toma o mundo, com limitação da vida. Não podemos resistir infinitamente como se toda mudança e transformação trouxesse, necessariamente, carga negativa. Não é por resistência que a vida clama à ação dos sujeitos. É por mudança e transformação. É pela construção das mudanças que superem, em diferentes escalas, todos os tipos de opressão, de exploração e de ampliação do cronos da morte. A vida clama por radicalização e por aprofundamento da espiral de democratização e de superação dos limites organizados pelos seres desumanos que cultivam e cultuam o capitalismo.
Faz-se necessário, portanto, que os múltiplos sujeitos que vendem a sua força de trabalho, que produzem toda a riqueza no mundo e que fazem circular a produção para os poucos senhores que dela se apropriam, se firmem, também, como sujeitos que garantam a vida acima de tudo, principalmente acima do encriptado lucro. Não somos coisas, já dizia o poeta, e como tal nos indignamos e fazemos da indignação potência criativa para um outro mundo. Outro mundo virá com transformação, mudanças e superações, e não com a mera resistência e o seu cheiro de interminável que por vezes parece tomar, com sua latente inércia, as pessoas que podem se tornar os sujeitos da transformação. Para essa roda girar, é necessário e urgente a organização, com formação, estudo coletivo, ação, solidariedade e construção coletiva para semear a nova terra e ver, enfim, o nosso Sol brilhar.