OLHARES

 

 

A Máscara, como ficou chamada esse elemento que cobre de diversas maneiras o nosso rosto, tem provavelmente a origem de sua nomenclatura no árabe maskharah, que significa “palhaço” ou “coisa ridícula”. Adereço presente nas festas de Baco, em cerimoniais de nações africanas, fundamenta também as duas principais expressões do Teatro, tragédia e comédia, vindo a se tornar seu símbolo. Enquanto fantasia possibilitou cidadãos abandonarem sua identidade original e “mascararem” sua moral ou medo em eventual transgressão ou coragem. Super heróis são mais alter-egos de suas identidades civis quando se mascaram, ou no caso do Super-homem e seu discreto óculos, se revelam. Já os Black Blocks ressignificam os quadrinhos e invertem a lógica do herói para muitos. Mas as máscaras seguem alterando as identidades.

Em 2016 finalizei um documentário sobre a luta cotidiana de estudantes pretas e pretos de medicina nas universidades públicas, enfrentando todos os preconceitos decorrentes do racismo, da dúvida sobre a capacidade intelectual, questionados em função da “lei de cotas” e por seus biotipos. O nome do documentário é Anamnese, alguns dizem ser meu melhor filme, apesar da dor e inúmeros traumas que o atravessa. O documentário está acessível no link ao final do texto.

Ao finalizar o filme, tive a ideia de encomendar, inspirado nos depoimentos dolorosos destes atuais médicos e outrora estudantes, uma ilustração ao meu colega de Escola de Belas Artes, Luis Carlos Chewie. Pedi uma versão “doutora” da Escrava Anastácia, com a máscara de cirurgia no lugar da máscara de tortura que ela usava, para o cartaz do filme. A imagem ficou tão impactante, que levei meses para fazer o cartaz, não querendo estragar o impacto dessa imagem na sequência de encerramento do filme. É o que “fecha o ponto” na costura da narrativa. Eu ainda não conhecia Grada Kilomba e nem sua publicação mais recente, até então não traduzida para português, Plantation Memories, e de alguma maneira a Escrava Anastácia nos dizia algo enquanto “gatilho” para pensar a opressão do homem branco. Lógico que o primeiro capítulo do livro de Grada, A Máscara, revela muito profundamente a tortura como ponto de partida para algo que a máscara só materializou enquanto silenciamento. O status da máscara em uma doutora preta, dentro de meu filme, é uma provocação direta e de fácil compreensão, mesmo para quem não conhece a imagem histórica da escrava e “sua lenda”. Lenda é uma maneira sutil de deslegitimar uma história que não esteja escrita, e que se estiver, não estará documentada de maneira acessível ao público herdeiro dela. O que define o fato ou a lenda pode ser mascarado em arquivos ou no esquecimento.

“Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as comessem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar tanto de mudez quanto de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?”
(Grada Kilomba)

Nesse texto Grada realiza um ensaio a partir do silenciamento e medo como as estratégias do homem branco para controlar e apagar as memórias e identidades de pretas e pretos. A máscara usada por pessoas escravizadas condenava em especial a boca, a porta de entrada do alimento e a de saída das ideias. A máscara de tortura já foi uma marca de punição a um ser humano por tomar algo que pertencesse a outro, e se tratando de que esta posse era tudo o que foi extraído de maneira desenfreada pelo colonizador, era inadmissível que um pequeno percentual para saciar a fome do trabalhador braçal fosse subtraído. Divisão desigual de riqueza. Desigualdade social baseada em quem pode usufruir da cana, até comê-la, pois tem boca para negociar a venda, e para comê-la, e quem nada pode.

As máscaras que torturam e matam hoje são invisíveis e hierárquicas. O tom da pele representa a pessoa que tem que sair de casa para buscar 600 reais que talvez cheguem depois da tal encomenda dos Correios. A pessoa que tem que sair para não perder um dos três empregos que tinha antes da pandemia. As pessoas que, por solidariedade largam seus familiares, colocam luvas e máscaras (como super-heróis da indústria pop, mas só com a coragem e a moral), e se arriscam em levar alimento aos que precisam ficar em casa para não morrer. Solidários e próximos ao risco.

Nas áreas “nobres”, a máscara no rosto é facultativa, assim como a “defesa do direito de ir e vir”. Sempre puderam falar, mesmo que não valesse a pena ouvi-los, e não vale. Esses se aglomeram e gritam pelo fim do isolamento, com “máscaras facultativas” nos rostos, e luvas, para não lavar as mãos. As máscaras desse grupo, com medo da morte, mas com coragem para odiar o próximo, já caíram há tempos, desde os tempos de Anastácia.

As máscaras de quem disputa o poder dentro do poder nunca se ajeitaram nas orelhas. Foram feitas para quem pode comer, mamar e falar. Foram feitas para esconder o rosto de quem, por baixo destas mesmas máscaras, quer ser palhaço, mas não passa de uma “coisa ridícula” capaz de matar com sua ignorância.

A máscara só tem função no rosto de pessoas pretas, descendentes dos africanos torturados sem poder comer ou falar. Como hoje no isolamento social.

Nas áreas pobres, quem acha que pode comer, falar, e conviver sem isolamento faz um favor ao governo que não sabe lidar com a vida deles. Só não faz favor aos pobres que trabalham nos cemitérios e, assim como os empregos, não tem mais vagas.

O comportamento da sociedade em relação ao uso das máscaras e do respeito ao isolamento amplia a desigualdade social. As carreatas contra o isolamento, com direito a escolta das autoridades, visibilizam o problema que não veio com o vírus. Mas se o barulho dos panelaços ou a buzina dessas carreatas, se fazem ouvir à distância, Martim Luther King diria:

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”

ANAMNESE from Cineclube Atlântico Negro on Vimeo.