OLHARES

 

 

“Nossa, lá vem o Clementino novamente reclamar da herança portuguesa!”

Ledo engano, qualquer crítica a este galho da árvore genealógica do território que passou a se chamar Brasil é positiva, para entender o que devemos fazer para no presente construir o futuro. Mas neste texto também não falaremos do futuro pois não sabemos o que nos espera.

Ou não seria melhor falarmos sobre o que esperamos? Por que esperar?

Com a chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil, após 3 séculos de administração à distância, com os motoboys náuticos fazendo o leva-e-traz de documentos e valores, muito mais valores do que documentos, começa um avanço na urbanização dos grandes centros do país, e de sua então capital Rio de Janeiro. Aqueles que até então eram os “donos do pedaço” que mandavam “na quebrada” tinham expectativa sobre seus destinos com a chegada de quem realmente mandava no pedaço. Tiveram que se adaptar aos hábitos da Coroa (no espanhol Corona). Uma tradição nas audiências destas autoridades para falar com integrantes da Coroa era o longo tempo de espera. Afinal quem podia atrasar, atrasava. E com isso quanto maior o poder, os súditos mais tempo esperavam. Após a independência, os “novos donos do pedaço” sentiram que naquele momento “eles que podiam atrasar”, adotando o expediente real, mesmo não querendo o retorno da monarquia, e ampliaram a falta de pontualidade a um outro patamar. Aos que aguardavam as reuniões com essas autoridades, em salas de espera, muitos chás eram servidos e daí surge o termo popular: chá de cadeira.

Esse chá não é servido em saquinhos, mas é um saco saboreá-lo. É de difícil digestão para quem busca uma solução aos seus problemas. Feliz quando há cadeira para o chá.

A espera que vivemos em nossa quarentena, e essas incertezas, me fizeram buscar umas linhas de Esperando Godot, peça teatral de Samuel Beckett. Para quem não sabe, trata-se de dois homens, a princípio pobres e aparentemente ignorantes, embaixo de uma árvore, à espera de um tal Godot, que nunca aparece. Me detenho no sentimento diverso que o texto provoca em inúmeros leitores, pois no diálogo dos personagens, eles divagam sobre inúmeras bobagens, eventualmente alguma sabedoria respinga das falas, mas o tal Godot não vem. E a situação começa a entrar num ciclo. Na minha interpretação do texto, o Godot seria a morte e a espera a discussão sobre a própria existência. Outros sentidos são possíveis, óbvio, podem até me contestar por esta talvez “absurda” interpretação, mas como não sou responsável pela eleição dos que decidem por nossa segurança, a metáfora me serve muito bem, e a interpretação mais ainda.

Para o carioca, criado na cultura do chá de cadeira, mesmo sem poder, esperar dói.

A cada dia temo pelo que lerei nas redes sociais pela manhã, após o almoço…

Cada momento longe do smartphone parece que vem um acúmulo de más notícias, seja pela partida para o Orum de alguém próximo, ou de pessoas próximas a conhecidos, ou de alguém que você ouviu falar… não necessariamente nesta ordem. Ficamos à espera de boas notícias, sem saber se chegarão, como Godot. As filas com distâncias marcadas no chão, quando respeitadas, ampliam a distância do seu objetivo, e não sabemos se chegaremos à Godot. O restabelecimento da saúde de quem está internado provoca uma espera por parte do doente e de seus próximos… qual e como Godot virá? Será Godot a trazer a notícia aguardada?

No trecho inicial do primeiro ato de Esperando Godot, os personagens dialogam (pulo alguns trechos):

“– Você já leu a Bíblia?
– A Bíblia…? Devo ter passado os olhos.
– Ah, é, os dois ladrões. Você se lembra da história?
– Não.
– Ajuda a passar o tempo. Dois ladrões, crucificados lado a lado com o nosso Salvador. Um deles…
– Nosso quê?
– Nosso Salvador. Dois ladrões. Dizem que um deles se salvou e outro… se perdeu.
– Se salvou do quê?
– Do inferno.
– Vou embora.
– E no entanto (…) como é possível que, dos quatro evangelistas, só um fale em ladrão salvo? Todos os quatro que estavam lá — ou por perto — e apenas um ladrão salvo. (…) um em quatro. Dos outros três, dois nem falam disso e o terceiro diz que eles o xingaram, os dois.”

(Esperando Godot — Samuel Beckett — escrita em 1948 e publicada em 1952)

Dentro da conversa viajante e dispersante de Estragon (Gogó) e Wladimir (Didi), vejo além da própria metáfora de ambos à espera do tal Godot. Godot como um Salvador, como Jesus, e ao mesmo tempo o papel dos fiéis em confronto para validar ou apagar a salvação do “ladrão” na interpretação dos personagens.

Hoje não há um Deus materializado e validado como no “causo” ilustrado pelos 2 personagens de Beckett. Porém há vários sacerdotes que se apresentam como representantes (e que mandam “nas quebradas”), e que o validam a favor do “dono do pedaço”, para que a espera contribua para o silêncio dos fatos. O silêncio dos “fracos”. Eles só esperam nosso silêncio.

Para mim, Godot não é Deus (apesar do God, Deus em inglês), mas pode ser que muitos entendam o contrário.

Nos resta esperar por uma atitude a favor da vida do povo, por parte de quem tem publicamente se posicionado a favor de um “Godot mais trágico”.

Hoje nos vemos num ciclo de espera e de recomeços, como Gogó e Didi, personagens da peça, sentados no sabor de nosso chá, esperando o correio, o motoboy que traz comidas, ou remédios e cosméticos, a vizinha prendada, ou o vizinho, que nos vende as máscaras artesanais pra ganhar “um adicional”, a validação do CPF pra receber ajuda do governo, ou torcer que sua empresa não te envie uma mensagem urgente e fatal por Smartphone.

Temos menos status do que os “donos do pedaço”. Fizemos o possível para resolver nossas urgências, aguardando que quem atualmente “manda na quebrada”, não se use do chá de cadeira pela conveniência de garantir que Godot faça seu trabalho de forma massiva… para que a sala de espera não tenha mais fila, apenas xícaras vazias na mesa.