CINEMA

 

 

O primeiro filme de Darren Aronofsky que eu assisti foi Réquiem para um Sonho. E me pegou em cheio. O filme é uma aula de linguagem cinematográfica, com enquadramentos, movimentos de câmera, cor, efeitos, sons, tudo em perfeita sintonia com a proposta do filme. Apesar da profusão de recursos utilizados, nada soa gratuito ou excessivo. Some-se ainda um roteiro bem amarrado e a excepcional trilha musical e tem-se um filme de rara força.

Em seguida assisti a PI, seu primeiro longa-metragem, também um filme interessante, com uma ousadia de juventude que trazia várias boas idéias que seriam mais bem desenvolvidas em Réquiem para um Sonho. Minha impressão foi a melhor possível. Sem dúvida Aronofsky despontava como um cineasta talentoso, o que fez crescer minha expectativa por seus próximos filmes.

Bom, aí é que os problemas começaram. Fonte da Vida, O Lutador, Cisne Negro e Noé foram decepcionantes. Seus filmes foram perdendo gradualmente a ousadia inicial e se tornando “quadrados”, previsíveis e cansativos, cada vez mais ganhando cara de blockbusters hollywoodianos. Todos esses títulos citados são bem filmados, sem dúvida, mas isso já não basta. Hoje em dia é grande a quantidade de cineastas que dominam com precisão as técnicas cinematográficas e isso, por si só, já não é mais um diferencial, é preciso algo mais.

Uma vez li uma entrevista do Aronofsky na qual ele dizia que seu sonho era se tornar um dos grandes de Hollywood. Com certeza ele estava a caminho de atingir esse objetivo e eu, da minha parte, usava essa declaração como uma “desculpa” para as decepções que seus filmes posteriores a Réquiem para um Sonho haviam me causado. Ele, pensava eu, estava pavimentando o seu sonho de se tornar uma referência para a indústria hollywoodiana (com tudo de bom e ruim que isso implica) e assim que ele tivesse a oportunidade de investir num trabalho, digamos, mais “autoral”, seu talento se manifestaria novamente. E me pareceu que mãe! (assim mesmo, em letra minúscula e com ponto de exclamação), lançado em 2017, era essa tão esperada oportunidade.

Porém, o filme foi mais uma grande decepção, a começar pelo “enigma” do título que, segundo o próprio Aronofsky, é “revelado” nos créditos finais, o que, convenhamos, é um subterfúgio dos mais pueris. Em termos de linguagem, nada digno de nota, apesar desse ser um dos pontos fortes de Aronofsky, saber usar inventivamente os recursos cinematográficos para expressar uma idéia. Em mãe! temos apenas a utilização de alguns recursos já usados anteriormente por ele mesmo ou por outros cineastas, da forma mais previsível. Vou me ater apenas a dois aspectos: o uso constante de contraluz, tornando o filme, na maior parte das vezes, escuro, o que acrescentou muito pouco (além do óbvio) ao clima da casa, único cenário do filme. Roman Polanski – claramente uma das principais referências aqui – trabalhou de maneira muito mais incitante a relação das sombras com o ambiente e a psique dos personagens na sua “trilogia do apartamento” (Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino).

Outro recurso utilizado foi o da câmera sempre “viva” e muito próxima de Jennifer Lawrence (em alguns momentos em big close), ou então, posicionada a partir do ponto de vista de sua personagem. Recurso esse já utilizado recentemente por Laszlo Nemès em Filho de Saul, com resultado bem mais interessante e adequado à proposta do filme, no caso, a angústia claustrofóbica vivida pelo personagem principal (intensificada, ainda, pela utilização de uma dimensão de tela 4:3).

Com relação ao roteiro, é difícil crer que algumas pessoas saíram do cinema reclamando que “não haviam entendido nada”. O roteiro, uma interpretação do texto bíblico, do Gênesis ao Apocalipse, não poderia ser mais óbvio e literal. A personagem de Jennifer Lawrence, principal testemunha de toda a ação, é a Mãe Natureza e Maria, encarnando todas as virtudes da mulher-mãe, arquiteta do Mundo/Lar. Cabe a Michelle Pfeiffer representar a Eva/Lilith, o lado obscuro da mulher, a responsável pela expulsão do Paraíso ao tentar Adão (Ed Harris). A luta fraterna entre Caim (Domhnall Gleeson) e Abel (Brian Gleeson), a Torre de Babel, a Arca de Noé, o Apocalipse, tudo está presente, linear e pobremente interpretado. Parece que Aronofsky quis fazer um filme “cabeça”, mas tendo como público alvo Homer Simpson.

Confesso que não resisto em fazer uma comparação com Begotten, de E. Elias Mehrige. Evidentemente, essa comparação não passa pelo tamanho dos projetos (seja no que diz respeito ao orçamento, ou, então, nas expectativas comerciais), já que a proposta de Mehrige é inteiramente experimental. Lançado em 1990, Begotten tem uma imagem propositalmente suja, com um preto e branco altamente contrastado e fortemente granulado, fruto do processo de refotografar cada fotograma (sim, ele refotografou cada fotograma!), fazendo com que, muitas vezes, seja difícil decifrar as imagens que aparecem na tela (no trailer, o filme chega a ser definido como um teste de Rorschach cinético). Begotten não possui diálogos e o desenho de som repete exaustivamente estampidos, sons de insetos e barulhos indistintos, colaborando ainda mais para desfazer qualquer tentativa do espectador em se ancorar numa representação literal. Os atores do filme eram membros da companhia teatral experimental do próprio Mehrige (Theaterofmaterial).

Mas o que mais nos interessa aqui, uma vez que o assunto é Aronofsky, é que toda essa ousadia de Mehrige não se resume aos experimentos técnicos e de linguagem. Begotten é, também, uma releitura do Gênesis e do Mito da Criação, mas com uma radicalidade que faz o filme de Aronofsky parecer uma produção da Rede Record. Filmes experimentais não são para todos os gostos, geralmente são reservados a certos nichos, mas a primeira sequência de Begotten é um convite irresistível. Nela nos deparamos com um ser monstruoso, envolto em panos, que se auto dilacera com uma lâmina. Um Deus suicida! O Mito da Criação, presente nas principais religiões, aonde um Ser superior se doa para dar vida ao Mundo, em Mehrige é apresentado como um monstro suicida, que se corta violentamente, expelindo suas entranhas. Desse Deus suicida emerge a Mãe Natureza, que masturba a divindade morta e se insemina com seu esperma. Da inseminação nasce o Filho da Terra. Impossível não assistir até o final, apesar da quebra do conforto que as imagens e o ritmo do filme promovem constantemente.

Já Aronofsky nos apresenta um Deus galã, interpretado por Javier Bardem, que incorpora o clichê do mito do artista, um ser pretencioso e narcisista, em constante crise com a sua criatividade e com sua “obra”. Enquanto a personagem de Jennifer Lawrence é a imagem da mulher oprimida/reprimida. Seria essa a tão alardeada crítica de Aronofsky à imagem de Deus e a condição da mulher que as resenhas do filme anunciavam? Um tédio.

Em Begotten, a imagem é o fundamento do Mito da Criação. O que é uma imagem? O que é o Mundo? Os questionamentos sobre a origem e o estatuto da imagem são à base da Criação. A manipulação das imagens por parte de Mehrige não é uma simples questão de escolha estética, mas a idéia encarnada na forma. Mais tarde, num filme com uma proposta completamente diferente (A Sombra do Vampiro), com uma pegada bem mais “comercial”, mas nem por isso menos instigante, Mehrige volta a discutir a questão da imagem, nesse caso, mais especificamente, a imagem cinematográfica. Ao ficcionalizar as filmagens de Nosferatu, de F. W. Murnau, A Sombra do Vampiro indaga o próprio cinema e seus limites. É uma pena que sua filmografia seja tão enxuta.

Aronofsky, por sua vez, em mãe!, nos dá mais do mesmo, uma trama sinuosa, mas óbvia, recheada de imagens pretensamente perturbadoras, tudo embalado como “reflexão profunda” ao utilizar o batido recurso de estabelecer diferentes camadas à narrativa, mas, no final das contas, o filme não consegue pensar para além do trivial os elementos que expõe e nem sequer propor um olhar diferente sobre o objeto do qual se apropria, obtendo um resultado meramente ilustrativo.

Eu não saberia definir se Aronofsky domou seu ímpeto para realizar seu sonho hollywoodiano ou se, na verdade, ele esgotou sua cota de ousadia nos dois primeiros filmes e, na sequência, apenas deu continuidade a uma proposta de cinema padrão que sempre esteve no horizonte. Vou ter que aguardar seus próximos filmes para ter uma ideia mais clara sobre sua relação com as imagens em movimento. Porém, tenho que admitir que essa não é uma dúvida exclusiva do cinema de Aronofsky, mas que paira sobre a maioria dos diretores que se destacam em Hollywood.