ARTES VISUAIS
–Ana¹, conte-nos um pouco de sua trajetória e de como a pandemia está te afetando.
–As minhas primeiras experiências artísticas foram ainda durante a graduação, junto ao Coletivo 13 numa noite que a princípio reunia estudantes de artes da EBA UFRJ e da UERJ. O início dos anos 2000 no Rio de Janeiro foi marcado por uma crescente organização de coletivos e eventos artísticos de caráter experimental em que a realização de performances adquiriam contornos de intervenção urbana e ocupavam espaços em que a arte institucional não era atuante. Neste sentido, parte da minha formação foi “ao vivo” atuando no espaço público, estabelecendo contato com artistas independentes e outros coletivos, um deles foi o Filé de Peixe. A diversidade de linguagens e a troca intelectual que havia nestes encontros em que participavam cineclubes, grupos de poesia, músicos, artistas do corpo e tantas outras formas de expressão, foram fundamentais para fortalecer minha compreensão da pluralidade do fazer artístico. Concomitante a essas vivências pude performar em outros estados brasileiros através de editais de residência artística e festivais de performance, conhecendo artistas que compõe até hoje minha rede de contatos e trocas artístico-afetivas. “O coletivo não anula o indivíduo” a frase impressa no público por meio de um carimbo durante uma performance do Coletivo 13 numa noite, é a transdução perfeita da dissolução natural do grupo, já que cada artista seguiu com suas pesquisas pessoais. A experiência em coletivos foi fundamental para mim, uma espécie de laboratório catalizador dos processos criativos e acredito que fortalece a consciência da classe artística enquanto profissionais da cultura.
Sou professora-artista atuando no segundo segmento do ensino básico do colégio Pedro II e busco aproximar a docência da minha prática artística. Minhas aulas e projetos são pensados para apresentar trabalhos de artistas contemporâneos aos discentes provenientes de diversas classes sociais e regiões do estado do Rio de Janeiro. Aproximá-los do universo discursivo-visual da arte contemporânea, conhecer e experimentar a curadoria e a produção de um evento de arte, são alguns dos objetivos do projeto de iniciação artística e cultural: Efêmera – Semana de Arte Contemporânea que coordeno junto com o professor-curador Raphael Fonseca, no campus Engenho Novo II. Outro projeto que coordeno no campus é o Cartografias Expressivas, este em colaboração Carla Albuquerque, professora da graduação em medicina da UNIRIO, e que conheci durante a especialização em Arteterapia. Juntas desenvolvemos um projeto de oficinas voltadas para a integração saúde e arte-educação.
Em 1977 o artista Ivald Granato criou um cartaz com a frase “adote um artista, não deixe ele virar professor”. A crítica quanto a necessidade de fomento do trabalho dos artistas permanece atual, sendo agora acrescida de uma preocupação: como serão as atividades culturais e de trocas interpessoais no pós-pandemia?
No momento as aulas estão suspensas por conta do COVID-19 e o trabalho remoto está sendo direcionado para pensar a docência após a crise sanitária. Eu faço parte de uma parcela privilegiada da população que está recebendo salário e realizando o trabalho em casa, porém não ignoro a grave situação dos artistas e outros profissionais liberais diante do desmonte do ministério da cultura e da pandemia, que estão sem perspectivas de retorno ao trabalho.
Voltando no trabalho do Ivald Granato é possível perceber que a precarização dos profissionais das artes não é recente, desde 2016 os projetos de fomento e aparelhos públicos de cultura e arte-educação tem sido cada vez mais escassos ou vem sofrendo cortes de orçamento que inviabilizam a continuidade dos trabalhos. Muitos artistas brasileiros exercem a docência não por opção, mas por necessidade de obter uma renda básica para continuar produzindo e apesar de acreditar no potencial positivo da aproximação do artista com a docência é preciso reconhecer que o campo de atuação da educação possui suas especificidades e conciliar as duas profissões exige um esforço extraordinário.
– Em setembro de 2019 você realizou um trabalho em meio aos turistas e transeuntes que frequentam a escadaria Selarón, cartão postal da Lapa, no Rio de Janeiro. As pessoas viram aquela artista vestida de vermelho e decalcando exaustivamente os azulejos da escada. A ação fez parte da exposição “Quem sobe esta escada?” e nela reparei que você se referencia em uma cadeia de montanhas. Como foi o processo de criação da performance e qual sua relação com a montanha.
– Conheci a Casa da escada colorida em 2019 a partir do convite do Bruno Girardi e das curadoras Camila Pinho e Rachel Balassiano para realizar uma performance durante a abertura da exposição “Quem sobe essa escada?”. A ideia inicial era realizar uma performance que pudesse criar uma conexão entre os espaços da escada (fora) e a casa (dentro). A exposição coletiva também contava com a sua participação e a de Rafael Adorján.
A Casa da escada colorida está localizada na escadaria Selarón, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Jorge Selarón foi um artista chileno que na década de 1990 se instalou em uma das casas da escadaria que atualmente leva seu nome. Ele ficou conhecido pelo trabalho em mosaico de azulejos aplicado em toda a extensão da escada que liga o bairro a Santa Teresa.
Ao investigar as imagens dos azulejos encontrei afixados no espelho de um dos degraus da escada um conjunto de peças coloridas e em alto relevo, reproduzindo uma paisagem montanhosa. Desde 2014 realizo um inventário de paisagens reais ou imaginárias relacionadas à montanha, compondo uma coleção de memórias pessoais e coletivas acerca dessa imagem. Iniciei o inventário realizando performances em que ouvia sobre as montanhas de outras pessoas e posteriormente fui buscando referências na história da arte, na literatura, cinema… e depois de certo tempo de pesquisa durante o mestrado, passei a receber “doações” espontâneas de montanhas. Então fiquei surpresa por encontrar o conjunto de azulejos na escadaria bem próximo à Casa e motivada a criar uma série de trabalhos para a exposição.
Montanhas, pinheiros, vales e rios foram transferidos para o papel em desenhos por meio da técnica da frotagem e este procedimento de repetição da imagem traduzida em linhas revelou-se como um movimento de resgate da memória de uma possível relação existente entre o criador da escada e a imagem da montanha. Enquanto eu passava algumas horas sentada na escada fazendo a transferência do relevo para o papel, grupos de turistas paravam para assistir e conversar, trazendo para essa dimensão do “fazer” uma integração da escadaria com a Casa da escada colorida, antes mesmo da abertura da exposição. Esse trabalho, portanto, desdobra-se na série Sobre as montanhas de Selarón, que inclui os desenhos em frotagem do conjunto de azulejos, na performance que realizei no dia da abertura e na qual fiz a frotagem da escadaria, resultando em um desenho de 5 metros e a fotografia colorida em tamanho real dos azulejos da escadaria.
– Como os turistas da escadaria receberam a sua performance?
– A abertura aconteceu num sábado de sol e à tarde, neste dia era feriado de 7 de setembro e já havia acontecido pela manhã o desfile militar na Av. Presidente Vargas. Diante de um contexto bélico de aumento do nacionalismo e de pautas conservadoras, arrisco dizer que foi um dos dias mais movimentados na escada, além de muitos turistas estrangeiros, havia também turistas da própria cidade e do Brasil. A escada fica disputada, muitos fazem fila para tirar fotos enquanto outros se sentam nos degraus para descansar ou jogar conversa fora. Fazer performance na rua é sempre um desafio, gera uma ansiedade boa, uma expectativa. Durante seis anos fazendo performance com as artistas Ade Evaristo e Marcela Antunes (também do Coletivo 13 numa noite) me ensinaram que a rua é imprevisível e a reação do público pode ser muito positiva ou não, portanto uma rede de apoio é importante para perceber o “clima” de fora, já que muitas vezes quando estou performando tenho uma percepção diferente dos acontecimentos. Por exemplo, enquanto eu estava concentrada fazendo a frotagem das pedras e azulejos da escada, me disseram que um homem se aproximou do papel e ficou investigando os desenhos de forma agressiva. Eu não vi isso acontecer… algumas fotografias que me enviaram depois mostravam pessoas colaborando para o papel não amassar e crianças brincando de atravessar o papel, saltando de um lado a outro. Eu achei a recepção muito boa, as pessoas acolheram o trabalho…cederam espaço para minha passagem, aguardaram o término da ação para continuar suas fotos ou passeio pela Lapa.
– O teu trabalho também pode ser considerado uma cartografia expressiva?
– Há uma dimensão biográfica nos meus trabalhos. O meu interesse pela imagem da montanha está relacionado a uma memória da minha infância e durante o mestrado em processos artísticos pude me aprofundar na dimensão poética e psicológica dessa lembrança.
Quando apliquei o projeto para o mestrado eu já tinha parte dessas investigações feitas em residências artísticas – momento que realizo uma performance em que eu escuto a montanha de outras pessoas e as registro em videodepoimentos. Fiz a performance em residências artísticas no Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e durante a realização da coleta de videodepoimentos recebi muitas lembranças, sugestões de filmes e livros… Inspirada pelo trabalho do historiador Aby Warburg, fui formando uma espécie de inventário, uma coleção de imagens pessoais e coletivas, por isso quando comecei a escrever a dissertação ficou claro para mim que este trabalho desdobra-se em uma heterobiografia, no encontro das minhas montanhas com as de outras pessoas.
– O que é a montanha para você?
– A montanha para mim é como um ponto de vista, um lugar do qual eu posso ter outras perspectivas e tecer reflexões que são parte do meu processo criativo. Quando houve o anúncio do isolamento social para conter o Corona vírus decidi ler o livro A montanha mágica do Thomas Mann – como uma estratégia artístico-literária para atravessar a quarentena, já que o livro possui mais de 800 páginas e fazia parte da minha biblioteca desde 2015, quando foi indicado para mim pela artista Joana Quiroga durante a residência artística na Estação Rural de Arte e Tecnologia- Nuvem, no Rio de Janeiro. Gosto de pensar nesse intervalo de tempo entre a residência artística e os cinco anos depois em que me abro para a possibilidade de realizar uma leitura performativa deste livro. Vou explorando essa história como quem trilha caminhos na montanha e escrevendo um diário em que relaciono algumas passagens à sentimentos e impressões pessoais sobre os acontecimentos políticos, sociais e humanitários, no decorrer da crise sanitária no Brasil.
– Há alguma referência à ideia de ascensão na montanha, ou como representação de níveis elevados?
Diria que há níveis de profundidade e altitude, mas não sei se compreendi bem sua pergunta. Que tipo de ascensão? Geográfica? Espiritual?
– Espiritual. As montanhas como representações de níveis mais elevados, as grandes aspirações que guiam a humanidade em determinados momentos históricos.
– Até o momento não busquei nenhuma experiência espiritual em montanhas. Acho muito interessante a percepção sobre a montanha como um lugar de transcendência, revela o potencial arquetípico dessa imagem. Durante a minha dissertação de mestrado relatei uma passagem muito curiosa na minha vida pessoal. Eu fiz primeira comunhão em uma igreja católica chamada Nossa Senhora de Lourdes, que fica em Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro. Essa igreja possui um conjunto arquitetônico eclético, uma fachada com inspiração romana e o interior rico em detalhes decorativos, abóbadas decoradas com pinturas, grandes lustres pendentes e vitrais coloridos ao longo da nave. Logo atrás do altar há a reprodução de uma gruta em que há a aparição da santa Lourdes para a jovem Bernadete. Desde criança sempre fui muito encantada por esse altar, que exibe o simulacro de uma natureza sagrada e misteriosa. Lembro-me de que gostava de passar muito tempo olhando cada detalhe da arquitetura, a expressão no rosto das imagens escultóricas espalhadas no interior da igreja, as vestimentas e os mármores coloridos, dos quais gostava de sentir a textura e a temperatura. A igreja era como um museu para mim. Acessar o arquivo de fotos de família e perceber que essa ligação com as montanhas podia ser mais antiga do que eu imaginava me deixou surpresa. A amplitude de leituras e recortes possíveis para investigações acerca da imagem da montanha são imensas e isso é ótimo, quase todo mundo tem uma história com montanha para contar.
– Se a montanha não vem a Maomé; Andes, Himalaias, Serra dos Órgãos… Há alguma cordilheira na mira do teu processo criativo… assim que a economia permitir?
– Tenho vontade de conhecer algumas das paisagens que ambientam as obras de artistas e escritores que fazem parte do meu inventário poético de montanhas. Então gostaria de conhecer o Monte Santa Vitória na França – monte pelo qual Cézanne revelou sua obsessão e tentou captar as forças da paisagem em mais 40 pinturas, aquarelas e desenhos. Essa montanha de Cézanne foi a primeira que tive contato como referência da história da arte para iniciar o inventário poético, que segue em processo. Tenho muita vontade de ir a Itabira – MG, tentar recompor a paisagem retratada na poesia de Carlos Drummond de Andrade e modificada ao longo dos anos pela mineração das montanhas. Gostaria de conhecer um vulcão também e esse desejo foi despertado a partir da paisagem gelada da Islândia retratada do livro A Desumanização de Valter Hugo Mãe. E agora a montanha que estou em contato é a da história da Montanha Mágica que se passa no Alpes Suíços, será que a economia permite?