Por Bárbara Fagundes/NPC
Pelos dados divulgados, metade da população está fazendo isolamento social no Brasil. A conclusão já vem sem rodeios: a outra metade permanece sem possibilidade de proteção ao vírus. Não se divulga, porém, quem são essas pessoas, sua idade, sexo, classe social…
Mesmo sem uma palavra a respeito, sabemos quem são. Basta conversar com a caixa e com o entregador do supermercado, da feira, ou da pizza do final de semana, com o frentista do posto de gasolina, com o motorista do ônibus etc.
Ficar em isolamento social no Brasil é privilégio e eu estou na estatística dos favorecidos. Desde o primeiro dia estou em casa. Pelo que li, há três meses estamos trancafiados. Eu mesma já perdi as contas.
Meu filho de 7 anos e um gatinho me fazem companhia. Estamos os três dividindo trinta metros quadrados.
Aos finais de semana, escuto a risada dos vizinhos próximos fazendo alguma aglomeração. Os assuntos são diversos, mas não parece haver preocupação com o temido vírus. Novela, música, fofoca, trabalho, estudo. Eles, com toda certeza, não fazem parte dos 50% que estão em casa.
Se eles saem para trabalhar, enfrentam horas no ponto de ônibus, pegam o coletivo abarrotado de pessoas, que diferença fará, afinal de contas, essa reuniãozinha? Demorei para fazer esse raciocínio… De início não acreditava como eles não estavam vendo o que estava acontecendo. Como eles não percebiam a gravidade da situação.
Quando tive o estalo, percebi que era eu quem não estava percebendo a gravidade da situação. A vida é tão cruel que a ordem foi dada para que milhares de pessoas trabalhem mais que o normal e voltem para suas casas quietinhas para não contaminarem ninguém que pode ficar em casa.
Não tenho a ilusão de achar que as pessoas estão refletindo a respeito de suas ações, mas estou convencida que todos se cansaram de ouvir ordens. Imagine que eu, super consciente e sabichona de tudo, achava meus vizinhos super irresponsáveis.
Recentemente, soube que uma festa foi interrompida por policiais. A denúncia foi justamente feita por uma vizinha que ouviu o barulho e falou na reportagem:
— “São uns irresponsáveis. É só ficar em casa que tudo logo vai passar!”
Todos foram levados para “prestarem esclarecimentos”. Quando estava vendo a matéria fiquei indignada com a juventude. Concordei na hora com a denunciante. “São tão irresponsáveis!”, pensei, tentando imaginar se eu própria era assim há 10 anos…
Olhei nas redes sociais e o comentário era: “fique em casa!”, “vai passar…” Meu coração fica acalentado quando percebo que estou sintonizada no mesmo discurso que meus amigos, minha pequena bolha de relações.
Mas nesse dia, uma coisa me chamou a atenção. Eram exatamente as frases usadas pela grande mídia que estávamos usando nas redes sociais e em nossos discursos. De repente, os principais meios de comunicação, dos quais sempre questionei a postura, tornaram-se nossos aliados e tão coerentes?
Quando estamos convencidos de uma causa, seja ela qual for, é muito difícil ver outra verdade. A nossa verdade parece que saiu da nossa cabeça, não é? Quando percebemos, estamos apenas reproduzindo um discurso que nem lembramos quando começou e como foi parar ali… Parece papo de doido! Mas, como é possível tantas pessoas estarem pensando iguaizinhas sem nem ao menos estarmos conversando?
A grande mídia cria vários inimigos para culpabilizar pelos problemas sociais. Assim são criados os vilões e os heróis. Em todos os processos temos esses dois personagens. O que me surpreendeu foi que um dos inimigos criados é exatamente a metade da população que não pode ficar em casa!
Choque total!
Sabe quando descobrimos algo tão surpreendente que nos perguntamos se estamos “viajando”? É exatamente esse o meu sentimento. Vibramos quando os jovens foram para delegacia. Mas nada fizemos quando o ônibus estava lotado para o entregador do supermercado, a caixa da farmácia, o bancário, a cozinheira, irem trabalhar.
Os jornais mostraram a matéria, mas ninguém foi prestar esclarecimentos ou algo parecido. Por que milhares de pessoas devem trabalhar para você e para mim e retornarem silenciosamente para suas casas para protegerem a nossa saúde? Afinal, a saúde delas já está em risco, não é?
Qual será a bendita proteção que esse trabalhador tem? Para ir trabalhar ele não irá pegar nem passar o vírus, mas se sair para outro lugar pega tudo! Ou o vírus é obediente ou o local de trabalho é abençoado…
Comecei esse texto com a pretensão de falar de forma geral do meu bairro e da minha vivência. Caí na armadilha de refletir sobre meus próprios pensamentos e privilégios. Continuei para ser honesta com minhas ideias. Precisamos avaliar o motivo de 50% das pessoas estarem nas ruas, sem culpabilizá-las.
Durante muitos anos discursei sobre a importância de pensar novas formas de produção justas e igualitárias e pouco desenvolvi sobre as minhas atitudes. “Ações individuais não mudam nada!” era uma das frases que eu repetia, provavelmente para justificar de forma inconsciente minhas atitudes.
Continuo convicta da necessidade da atuação conjunta pela transformação, mas não sou mais ingênua em acreditar que as ações individuais não mudam nada. Continuarei desfrutando de meu privilégio, isolada, mas quem sabe agora consigo usá-lo para discursar apoiando meu vizinho e denunciando seus patrões e a política perversa que lhe condenam a todo instante e lhe conduz a um beco sem saída.
É claro que todo mundo gostaria de ter o privilégio de ficar seguro em casa. O problema não é tão simples assim: nem todos têm casa; dos que têm, muitas não são seguras, e nas que são, nem todos podem ficar. Talvez tornar o invisível visível pode começar por saber que aquele trabalhador que entregou uma compra pode ser um dos meus vizinhos.
Afinal, meu vizinho não é culpado!