Por Ana Claudia Teixeira, José Antônio Moroni e Natalia Mori
Como defender a democracia e não agravar a pandemia? Diante da pluralidade (e autonomia) das ruas, qual o papel dos movimentos organizados? Será possível articular ações concretas contra o governo genocida?
Poucas manifestações, como as de domingo passado, geraram tantos debates em relação à pertinência e aos riscos de sua convocação. Não pretendemos analisar aqui toda a complexidade das manifestações, mas apenas fazer alguns registros.
Primeiro, nosso profundo respeito e admiração por quem foi para as ruas. Arriscamos afirmar que os diferentes grupos que participaram estão entre os que acham que a Covid-19 não é “uma gripezinha” e que o isolamento físico é o melhor caminho para o enfrentamento da pandemia. Mesmo com essa preocupação em mente, muitas pessoas que lá estiveram não têm o direito de se cuidar assegurado. Por esses motivos, nossa admiração e respeito por essa complexa decisão.
No domingo foram registrados protestos em 11 capitais e com uma composição plural, predominantemente gente jovem e negra, militantes de movimentos autônomos e populares, movimentos negros, por moradia, culturais, feministas, LGBTI, estudantes, pessoas com filhxs pequenxs e por torcidas organizadas de times de futebol. Em geral, a mídia tem relatado que não houve incidentes, mas há relatos sim de revistas exageradas por parte da polícia a manifestantes e, no caso da cidade de Belém, mais de 100 jovens foram presos antes de chegarem à manifestação. O mesmo aconteceu no Rio de Janeiro, com prisões de pessoas antes de chegarem à manifestação. E na dispersão do ato em São Paulo também houve uso da força policial. No mais, os atos foram diversos em suas manifestações, com muitas ações performáticas, pacíficos e relativamente rápidos. Na Capital Federal durou cerca de 2 horas, com uma carreata abrindo a manhã da manifestação.
A semana que precedeu as manifestações do domingo 07 de junho foi marcada por fatos que deram o tom dos protestos. O clima ameaçador que circulou durante a semana, pelo presidente, pelo vice-presidente e por autoridades da polícia foram formas de coibir o direito à manifestação. Havia riscos altos para quem pretendia participar e engrossar a voz por mais democracia, pelo fim do fascismo e fim do racismo.
De outro lado, é bom lembrar que uma parte dos que eventualmente poderiam estar nas ruas se posicionou, durante toda a semana, sobre os riscos de contaminação por covid-19 e de que a manifestação poderia gerar mais acirramento por parte de setores de ultradireita. Eram clamores legítimos, que foram considerados por quem estava organizando e chamando os atos. Circularam antes dos atos cartilhas e pequenos textos com recomendações de usos de máscaras, de distanciamento mínimo (ainda que este pareça ser o maior desafio nas situações de manifestações) e orientações sobre segurança para evitar incidentes com a polícia. Além disso, houve a opção de se manifestar usando carros. Em alguns lugares, intencionalmente setores de movimentos e de partidos, mesmo de esquerda, optaram por não ir aos protestos e por convencer seus militantes a não irem.
Justamente por toda esta complexidade, é preciso celebrar a realização dos protestos de domingo. Os protestos aconteceram e foram muito maiores que os protestos pró-Bolsonaro. Eles foram desafiadores, indignantes, pacíficos, cuidadosos, protegidos e radicais em sua crítica de que é preciso dar um basta a um governo autoritário e genocida. Eles são parte de um processo que, apesar de não termos bolas de cristal, tem tudo para continuar.
É preciso costurar numa narrativa os protestos de domingo com diversos protestos das últimas semanas. Parte das torcidas organizadas de futebol (que em geral se identificam com bandeiras antifascistas) já tinham feito protestos nos dois finais de semana anteriores a esse. E durante toda a semana, houve atos que não chegaram com força à grande mídia: ato no Rio de Janeiro por justiça para João Pedro e pelas vidas nas favelas, ato em Curitiba do Movimento Negro, atos em Brasília das mulheres pelo “Fora Bolsonaro e Fora Mourão” e do “Quem partiu é amor de alguém”, ato em Recife por justiça para Miguel. Esses protestos, não articulados intencionalmente entre si, fazem parte de um contexto que precisa ser interpretado. Todos eles buscaram diferentes formas de demostrar o seu repudio a um governo que tem como fetiche a morte de seu povo. Um governo sem plano para atacar a pandemia, que mente sobre possíveis curas (como a cloroquina), e que escancara o discurso de que o lucro vale mais que vida, deixando morrer quem mais precisa de cuidado e atenção de políticas públicas. Antes dos protestos de domingo vimos como vários governadores passaram a acolher a demanda do governo federal de relaxamento social, mesmo com uma curva crescente de novos casos. Arriscamos dizer que não vimos a mesma proporção de indignação com a reabertura do comércio e com a convocação das manifestações. Ou seja, shopping pode, manifestação, não?
Não é possível fazer análises simplificadoras, mas certamente os atos de domingo foram protestos plurais, com muitos jovens negros/as periféricos/as. A questão racial de alguma forma se aproximou do Fora Bolsonaro, mas nos perguntamos se o inverso será verdadeiro? Ainda está em aberto se os setores que enfrentam o autoritarismo de Bolsonaro abraçarão com a devida força e urgência o tema da desigualdade racial. Parte do debate sobre a pertinência e o sentido das manifestações de domingo remonta ao que vivemos com o movimento #EleNão, quando alguns setores avaliaram que a radicalidade apresentada assustou parcelas da população e deu “munição” ao inimigo. Avaliamos que, ao contrário, foi o #EleNao que garantiu a realização do segundo turno, além de ter visibilizado quão fascista era a candidatura de Bolsonaro. É cedo para afirmar, mas talvez as manifestações em plena pandemia possam nos possibilitar um movimento amplo, de massas contra o Bolsonarismo e tudo que ele representa.
Não sabemos onde isso vai dar. É muito cedo para avaliar. Mas o que é possível dizer é que havia sim muita organização nesses protestos. Havia grupos orientando sobre o distanciamento, distribuindo álcool, máscaras e fazendo segurança. Em alguns lugares havia advogados de plantão e números de telefone para ligar caso houvesse algum incidente com a polícia. Foi um protesto cuidadoso em muito sentidos. Parte das pessoas mesmo não comparecendo por vários motivos apoiou pelas redes sociais.
Se o mundo está profundamente marcado pelos protestos contra o racismo desde o assassinato de George Floyd, no Brasil a morte do povo preto já faz parte infelizmente do cotidiano. Os protestos de domingo tiveram uma relação profunda com a agenda do movimento negro e antirracista. Os atos daqui não foram desencadeados pela onda mundial da luta antirracista, mas interagiram com ela. Nas ruas se pedia também justiça para Miguel e outros tantos e tantas jovens negros/as assassinados. Ecoou pelas ruas a morte de Miguel em Recife, que ocorreu poucos dias antes de domingo. Sua mãe, trabalhadora doméstica teve que trabalhar em plena pandemia e levar seu filho. Miguel morreu, no mínimo, por negligência da patroa. A mesma negligência que fez vítima a primeira morte por covid-19 no Brasil: uma trabalhadora doméstica cuja patroa, ciente de estar contaminada, sequer falou dessa condição para sua funcionária. Não há dúvidas que o combate ao racismo teve centralidade nas manifestações de domingo. O jogral “Vidas Negras Importam” ecoou forte. No meio do protesto de Brasília, por exemplo, se ouvia “vidas negras importam”, “vidas LGBTs importam”, “vidas indígenas importam”, “vida das crianças periféricas importam”… E por aí afora, desvendando que o racismo no Brasil está profundamente articulado com outras tantas desigualdades e injustiças.
Nos protestos de domingo em que apareceram as bandeiras por democracia e pelas vidas negras, ecoou também o Fora Bolsonaro. A figura de Bolsonaro não é a única responsável pela atual fragilidade da democracia, mas ela encarna no momento atual parte das energias mobilizadas na rua. É como se atos recentes articulassem de forma ainda muito embrionária (mas com alguma potência) a questão racial e a crítica que alimenta “o Fora Bolsonaro”.
O que estas manifestações do domingo passado nos dizem ou como elas desafiam movimentos que debatem a reforma do sistema político como por exemplo a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político hoje?
De um lado, há o desafio de diálogo com as diversas iniciativas de resistência, como a Plataforma já tem feito, de apresentar a Campanha pela cassação da chapa Fora Bolsonaro e Fora Mourão. E de buscar as devidas articulações orgânicas com tantas iniciativas que surgiram nas últimas semanas, principalmente nas ruas.
De outro, há algo mais profundo e desafiante. Retomando a pauta da igualdade racial, nos perguntamos por que a questão racial tem emergido como algo que não interpela de fato o sistema político (partidos, eleições, instituições estatais). Nos Estados Unidos e aqui, ela surge mais uma vez nas ruas, como questionamento do Estado e do sistema político. No caso dos Estados Unidos, eclodem protestos em pleno processo eleitoral, como reação também à possibilidade de reeleição de Trump. Aqui, a única resposta do sistema político às revoltas nas favelas quando moradores, majoritariamente negros, morrem tem sido mais repressão policial. O direito à organização tem sido sistematicamente violado. Somos um país que ainda não processou coletivamente o que é ser um país racista. Seguimos coniventes com a violência policial genocida, a política racista e injusta de encarceramento em massa e a política sobre as drogas. Perpetua-se o racismo. As pessoas que foram às ruas no domingo avaliaram os riscos sim de se manifestar em tempos de covid, entenderam que muitas brasileiras e brasileiros seguem morrendo por negligência, pela necropolítica e ação deliberada do Estado, independentemente da covid! Muitas saíram de seus lugares de privilégio de serem brancxs, terem casas, para se indignar com o autoritarismo e o racismo impregnados em nossa elite e que sequestrou a política brasileira. Há quem possa esperar um novo momento eleitoral – mesmo diante de um sistema falido que não inclui a diversidade da população – e há quem não pode mais esperar o fim de um governo anti-povo, anti-negrxs, anti-mulher, anti-LGBTIs, anti-indígenas. Não é um mero detalhe: os meninos presos em Belém antes de chegarem ao protesto eram majoritariamente negros e periféricos. Por isso nos perguntamos, sem termos resposta, como tirar as melhores lições desse processo em curso? Sabemos que as mudanças precisam ser na sociedade como um todo, mas que transformações no sistema político é preciso para que ele de fato enfrente o racismo estrutural?