Conversei com Kássio Motta, um dos articuladores responsáveis por manter a chama acesa da Ação direta em educação popular, ou ADEP/Mangueira, projeto que já alcança dez anos. Kássio conta um pouco da história do projeto, como é a prática de educação popular com perspectivas de uma educação para a autonomia na dura realidade carioca – e desmonta a falácia do discurso da meritocracia. A ADEP /Mangueira está fazendo uma campanha de solidariedade e combate à fome durante a pandemia que atende atualmente cerca de cinquenta famílias na comunidade e convidamos o leitor a conhecer e colaborar.

– Kassio, há quanto tempo existe a ADEP, quando e como surgiu?

– A articulação social que deu origem a Ação Direta em Educação Popular – ADEP se iniciou em 2010. Os anos seguintes foram de intervenções na cidade do Rio, sede de grandes eventos, Copa e Olimpíadas. A favela Metrô-Mangueira estava no plano de remoção estatal, que visava áreas próximas ao estádio do Maracanã, a fim de fornecer suporte aos eventos.

Diante do risco de remoção, se deu a aproximação de estudantes e docentes da UERJ com pessoas que moravam no Metrô-Mangueira. O objetivo era se solidarizar e apoiar a luta de resistência de moradoras e moradores, que denunciam violências e arbitrariedades durante as remoções.

Nessa articulação entre favela e universidade, a primeira ação da ADEP foi a alfabetização de adultos, atendendo solicitação de residentes da Metrô-Mangueira. Pena que eu não participei desse início. O pré-vestibular ADEP-Mangueira surgiu em 2015. Só cheguei em 2016, pra colaborar com redação.

Atualmente, o pré-vestibular da ADEP-Mangueira é um projeto de extensão da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, chamado “Filosofia na Prática” e coordenado pela professora Camila Jourdan.

Kassio Motta. Foto Carlos Contente

– Conte-me um pouco sobre sua formação, trajetória e como se engajou na educação popular.

– Estudei Jornalismo na UFF, quando trabalhei o Professor Julio Cesar Tavares, orientador na graduação, em Jornalismo, e no Mestrado, em Antropologia. Considero sorte grande ter aprendido e trabalhado com ele de 2001 a 2009.

Em 2017, fiz uma especialização em Direitos Humanos e Saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, onde tive a satisfação de trabalhar com a antropóloga e Professora Maria Lúcia Cardoso.

E, neste ano de 2020, comecei o doutorado da UERJ, em Filosofia, com a sorte de ser orientado pela Professora Camila Jourdan.

Considero todo esse percurso um privilégio, marcado por encontros felizes, que orientam minha jornada acadêmica. Devo tudo isso à universidade pública, ou seja, à sociedade que bancou todos esses meus anos de estudos. E bancará os próximos. No mínimo, isso me gera um alto senso de responsabilidade e de dever em compartilhar parte desse privilégio.

Daí a motivação para ingressar na ADEP. Estava retornando ao Rio de janeiro, em 2016, após oito anos morando em Niterói. Naquela época, buscava uma pré-vestibular comunitário. Pesquisei e encontrei a ADEP.

De lá pra cá, tenho colaborado com um grupo de pessoas que acredita e trabalha pela transformação social por meio da Educação. Hoje entendo a ADEP como parte fundamental do meu percurso acadêmico. Uma oportunidade de me aproximar de uma realidade distinta da que vivo, portanto, pouco conheço. Realidade que passo a conhecer mais a cada encontro, a cada turma, a cada vestibular.

E me alegro, mas me alegro muito, a cada aprovação dessa juventude preta, que precisa de uma força mental absurda para superar todas as adversidades e entrar na universidade.

– Autogestão e preparação para um pensamento livre, anti autoritário, anti dogmático, autônomo e solidário. Como é a prática de educação popular com perspectivas de uma educação libertária, na dura realidade carioca? Quais as maiores dificuldades?

– Quando a gente fala em educação popular pressupõem-se que existe outra categoria de educação. O triste é que existe mesmo. É a educação das elites. A gente deve se perguntar: como uma sociedade rompe com sua histórica segregação com um sistema educacional segregado? Com uma educação para “populares” e outra para “elites”? A resposta é: não rompe.

Somos os professores mais baratos do mundo. Graffiti anônimo no viaduto da Mangueira. Foto Carlos Contente, 2017.

Vale destacar que há docentes realizando trabalhos revolucionários em escolas públicas. Mas uma nação que pretende ser uma sociedade solidária, autogerida, antidogmática, autônoma, como você descreve na pergunta, precisa de uma educação de qualidade e única. Não em termos de conteúdos, métodos e carga horária – muito em voga atualmente. Mas única em termos de orientação: onde estamos e aonde queremos chegar?  Porque se queremos construir uma sociedade mais igualitária e justa, precisamos mirar numa educação mais igualitária e justa. De forma urgente.

Vergonhosamente essa não é a realidade no Brasil. Que população ribeirinha, quilombola, indígena, periférica, favelada tem o mesmo acesso à educação, se comparada a estudantes de classe média em qualquer capital brasileira? Se não rompermos com essas graves e seculares violações, porque são violações do direito básico à educação, fracassaremos todas e todos na construção dessa sociedade – mais solidária, autogerida, antidogmática, autônoma.

A pandemia expõe de forma obscena como tais desigualdades históricas afetam diretamente o acesso à Educação e informação de milhões de jovens. Estudantes que não têm acesso à internet ou a acomodações adequadas para estudo. Estudantes que cumprem o isolamento social, com famílias que, muitas vezes, não acessaram à escola. Portanto, têm mais dificuldades em dar suporte educacional para crianças, adolescentes e jovens. E o estado trata do ENEM, em tempos de pandemia, como se estivéssemos sob condições normais, que já seriam injustas. Isso não é apenas injusto. É perverso. É mais uma forma de o estado impedir a vida das pessoas.

Zona sul x zona norte. Fotomontagem Carlos Contente

Com a manutenção do exame, as vítimas serão as mesmas: ribeirinhas, quilombolas, indígenas, negras e faveladas. Pessoas categorizadas como “populares”. Sempre me pergunto se não é uma armadilha reproduzirmos os sentidos implicados no termo “educação popular”. Por isso, evito a dicotomia, a fim de não ajudar a cristalizá-la. Apenas utilizo Educação, subentendido que se trata de Educação Libertária.

Entendo a Educação como aquela capaz de romper com as hierarquias sociais que nos impedem ser mais como sociedade. Uma Educação que se faz necessária para toda a sociedade brasileira – sem espaços para dicotomia “popular” e “elite”. Basta vermos o que aconteceu recentemente no Liceu Franco Brasileiro, em Laranjeiras. Um colégio particular, em um dos bairros de maior Índice de Desenvolvimento Humano da cidade do Rio de Janeiro. Ainda assim, estudantes brancos, privilegiados, foram racistas contra uma aluna preta. Esses estudantes serão futuros juízes, advogados, médicos, professores. Passarão pela academia. E o que será feito para deixarem de ser racistas? Para deixarem de ter em mente a distorção de se pensarem mais humanos que outras pessoas?

Em diferentes graus, todas e todos nós precisamos nos libertar das concepções e práticas racistas, machistas, misóginas, heteronormativas e homofóbicas que estão presentes nas relações sociais no Brasil. Pois estamos todas e todos sob processos de socialização discriminadores e violentos, que nossa sociedade perpetua há séculos.


Jean Baptiste Debret. Um jantar brasileiro. Aquarela sobre papel, 16 x 22 cm, Rio de Janeiro, 1827.

Diante da necessidade de romper com essa situação, entendo e procuro praticar a Educação como uma ciência. E como ciência, a Educação surge com o objetivo de conhecer para intervir. Qualquer ciência move-se nessa direção: a de conhecer a questão e atuar sobre ela. A colonização é um exemplo agudo desse processo. Naturalistas e pesquisadores viajaram o mundo, de colônia em colônia, para explorar, conhecer e intervir sobre as riquezas de novos territórios. Aplicaram esse processo sobre metais, minerais, vegetais, animais – incluindo pessoas. A teoria darwinista é um autêntico fruto colonial. Mais tarde, a Sociologia vai se tornar outro exemplo de como a necessidade de compreender drásticas mudanças sociais, a fim de intervir sobre elas, fez surgir uma nova ciência. O combate à pandemia de Covid-19 evidencia como esse processo de conhecer para intervir pode ser dramático.

Portanto, como ciência, a Educação também precisa explorar, conhecer e intervir. Explorar formas de construir relações para ensinar-aprender-ensinar. Conhecer sobre o contexto de quem está na relação de ensino-aprendizagem e, obviamente, sobre os conteúdos ministrados. E intervir, com dois objetivos bem definidos: 1) o de melhorar a prática de ensinar-aprender-ensinar e o de 2) fornecer às pessoas possibilidades de intervirem sobre suas próprias vidas.

Como diz o sociólogo Charles Mills, é preciso construir relações entre o contexto sócio- histórico em que vivemos e a nossa biografia. Assim, a prática libertária precisa questionar como os contextos históricos, sociais e políticos interferem em nossos destinos. Como o autoritarismo do estado atua sobre a sua vida? Como uma medida econômica influencia na sua formação profissional? Como uma política pública, ou a falta de uma, pode afetar a vida de milhares de pessoas LGBTQI+? As respostas a essas perguntas demonstram que o estado atua sobre as nossas vidas cotidianamente. Muitas vezes, de forma invisível.

Esta é a intervenção, bem delimitada, que a Educação deve fazer: tornar visível para estudantes as forças invisíveis das dinâmicas sociais. Forças invisíveis, mas que atuam de forma objetiva e efetiva na vida das pessoas, como o racismo, o sexismo, a xenofobia, a LGBTQI+fobia. Forças subjetivas que, no Brasil, resultam em dois genocídios simultâneos, de populações negras e indígenas. Forças que fazem crescer os feminicídios, motivam ataques a imigrantes, assassinam pessoas homoafetivas. Ou seja, forças que se expressam em questões objetivas, atuais e urgentes.

Na minha perspectiva, a Educação deve refletir sobre essas violências. Se pretendo uma sociedade mais justa, solidária, autônoma e atuante – e acredito que somente a Educação seja capaz disso –, precisamos refletir sobre as questões que hoje nos assolam como sociedade.

A Educação, ao agir como ciência que é, precisa conhecer, refletir e intervir. Sempre na direção de tornar a opressão, mais perceptível, mais visível. Penso a função da educadora e do educador é tornar a opressão mais opressora, como ensina Paulo Freire.

Mangueira. Foto Carlos Contente

Nesse contexto de Educação Libertária, ao explorarmos conteúdos, precisamos contextualizar sócio-historicamente cada assunto, construindo uma espécie de rizoma, uma teia de sentidos formada por um sem número de conexões possíveis, recorrendo a diferentes linguagens, a fim de ampliar nossa compreensão – a de docentes e discentes – sobre o tema abordado.

Num segundo momento, o grupo precisa coletivamente refletir sobre o que se estuda. Nesse sentido, é fundamental construir articulações entre conteúdos abordados e o cotidiano da classe. Por isso, é essencial para uma proposta de Educação Libertária, de fato, aumentar o conhecimento mútuo entre as pessoas quem compõe o grupo. Sob que condições essas pessoas vivem? Como compreendem a realidade? O que expressam sobre este contexto social? Como gostariam de viver? A partir dessas respostas, o objetivo de educar para a autogestão, a solidariedade e a autonomia de atuar sobre sua própria realidade e seu destino torna-se mais fácil.

Após contextualizar, construindo uma espécie de texto social e histórico do tema, e refletir com a turma, questionando sobre as interferências desse contexto sócio-histórico em nossas vidas cotidianas, resta-nos agir sobre este mundo injusto para transformá-lo.

Esta transformação inicia-se pela compreensão da complexidade dos temas e da tomada de consciência sobre a realidade em que se vive. Ao promovermos a tomada de consciência sobre as violações, violências e mortes, inicia-se a transformação dos entendimentos sobre o mundo social. Com uma nova leitura de mundo, percebe-se uma transformação da linguagem – o que já é uma intervenção sobre o mundo.

Vou tentar ilustrar esse processo com um exemplo prático de sala de aula. Ao abordarmos desigualdades raciais no Brasil, as turmas da Ação Direta em Educação Popular, formadas por uma maioria de mulheres negras, não costumam ter consciência do tamanho dessas injustiças – ainda que a vivenciem. Costumam ter apenas a escravidão como referência e justificativa para as iniquidades atuais. Políticas públicas dificilmente vem à baila, quando começamos a refletir sobre a atual situação da população negra no Brasil.

Jean Baptiste Debret. O primeiro impulso da virtude guerreira, 1827. Aquarela sobre papel, 15,2 x 21,5 cm. Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro. (Desenho não utilizado na Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.)

Costumo iniciar, então, pela segregação espacial das populações cariocas. As populações pretas estão concentradas nas favelas do Rio de Janeiro. As favelas com maiores concentrações de pessoas pretas apresentam os piores Índices de Desenvolvimento Humano do Município do Rio de Janeiro (IDHM). Dos 126 bairros da cidade carioca, os piores IDHM estão em Rocinha, Jacarezinho, Maré, Manguinhos, Complexo do Alemão, Acari, Costa Barros. Essas mesmas localidades concentram grande parte das operações policiais. Consequentemente, sofrem mais violações e mortes.

Construir essas articulações entre segregação espacial, indicadores sociais e violação estatal ajuda na compreensão da questão. Enriquece a análise do fenômeno. A articulação dessas informações possibilita novos entendimentos e argumentos à turma.

Após a construção de um panorama sócio-histórico sobre o tema e de reflexões sobre as interferências do racismo em suas vidas, passam a construir outros entendimentos. Não tendo mais apenas a escravidão como a origem e a manutenção das injustiças atuais.

A partir de então, começam a construir entendimentos sobre o processo histórico, social e político que perpetua o fenômeno do racismo; enxergam-se como alvos do estado em múltiplas circunstâncias. E passam a expressar esse entendimento no dia a dia.

Graffiti anônimo em edifício abandonado no Lins de Vasconcelos, Rio de Janeiro. Foto Carlos Contente

Mas, infelizmente, esse processo ocorre sempre contra a corrente. Por exemplo, na sociedade brasileira, apesar de convivermos com o genocídio da população negra – um crime contra a humanidade e reconhecido pelo estado brasileiro desde 2016, no relatório final da CPI mista sobre assassinatos de jovens negros –, o crime tende a ser apagado de nossos olhos. Basta a gente se perguntar: Quantas vezes a imprensa brasileira definiu corretamente o fenômeno social que extermina a população negra brasileira? De 2016 pra cá, quantas vezes o termo “genocídio” foi publicado por grandes empresas de comunicação no Brasil? As respostas são evidências de que grupos de mídia querem manter o status quo. E, no Brasil, o status quo é criminoso.

A Educação Libertária nada contra essa corrente dissimuladora da realidade social. Precisamos trazer à tona o que parte da sociedade brasileira quer esconder a todo tempo. É necessário jogar luz sobre essas estratégias e atacar frontalmente a dissimulação dos fatos, permitindo compreender como a imprensa hegemônica no Brasil é parte importante do genocídio negro, juntamente com o aparato legislativo e judiciário. É papel da Educação apontar essas articulações – sempre com evidências, a fim de construirmos, conjuntamente em sala, novas compreensões sobre os fenômenos sociais.

Uma vez compreendidas essas articulações – sociais, históricas e políticas –, estudantes jamais acreditarão cegamente nas informações que recebem. Isso é autonomia. Ter uma informação e questioná-la, com recursos intelectuais para buscar referências, e capacidade de construir sua própria leitura – e expressão – dos fenômenos sociais. Esse é o objetivo do que compreendo como Educação Libertária. Fazer contextualizar, refletir e agir – trabalho orientado pela práxis freiriana de leitura de mundo, de expressão própria e de “ação já!”.

Na minha experiência, a Educação visa transformar nesse sentido: de fornecer muita informação de qualidade, a fim de gerar consciência, argumentos e possibilidades de ação contra qualquer forma de opressão. Educação que promova o respeito por toda e qualquer forma de expressão da vida humana. Seja essa expressão de gênero, de sexualidade, de raça/etnia, de religiosidade, de origem. Para isso, é preciso construir entendimentos de que cada uma, cada um de nós é apenas uma possibilidade humana, das 7,5 bilhões existentes. Quando alcançamos isso em sala de aula, deixo a Mangueira feliz.

Nem sempre a gente consegue. E acho importante frisar isso. A Educação Libertária que busco aprimorar a cada encontro com as turmas não tem o objetivo de formar ninguém. Tem objetivo de fornecer instrumentos e percursos que possibilitem autonomia de pensar. Não de pensar igual. E, por três anos, tivemos problemas com estudantes que reproduziam discursos homofóbicos, machistas, racistas, meritocráticos. Foram momentos difíceis. Com perda de colaboradoras e estudantes. Ainda hoje, aprendemos a lidar com tais questões sem oprimir mais pessoas já tão oprimidas.

Ilustração da página do Facebook da ADEP Mangueira, por Fábio Tirado.

A estratégia é sempre pela construção de novos entendimentos, a partir de indicadores sociais referências teóricas, filmes, reportagens, músicas que permitam uma leitura mais ampla dos fenômenos. Nunca pela imposição. Como ensina Francisco Ferrer y Guardia, anarquistas não formam anarquistas. Pra mim, essa é uma máxima da ética libertária. Precisamos promover a autonomia das pessoas – para que elas possam se decidir, criticamente, sobre o que serão ou deixarão de ser. A decisão é delas.

Mas como lhe disse, vamos contra a corrente. E o mais comum é que as pessoas reproduzam o discursos das elites. Reproduzam o discurso que muitas vezes não lhes interessa, e, na maioria  das vezes, as prejudica. Vou lhe dar três exemplos: reforma da previdência, que retira direitos de trabalhadoras e trabalhadores; Emenda Constitucional 95, que corta investimentos sociais pelos próximos 20 anos; e o pacote anticrime, que tende a aumentar o encarceramento e reduzir a responsabilização do estado pelos assassinatos em favelas. Como uma sociedade aceita passivamente todas essas violações de direitos? Como a população, sobretudo a parcela mais pobre e vulnerável, suporta tais medidas? A resposta passa pelo medo gerado pela desinformação.

E a imprensa tem dedo nisso. Produz uma enxurrada de notícias distorcendo a realidade. Rádios, tevês, jornais, revistas, páginas eletrônicas e, agora, podcasts criam uma atmosfera de insegurança, para a qual oferecem uma única e açodada saída – a do estado, que sempre visa o bem-estar do capital. E, assim, acuadas e desinformadas, as pessoas reproduzem sentidos e apoiam iniciativas legislativas que interessam a quem as oprime.

Contra esse estado de coisas, Paulo Freire delimita bem o alvo da ação libertária, a fim de romper com essa reprodução opressora. No Livro Ação Cultural para a Liberdade, o educador aponta para o alvo da educação libertária: atacar a “cultura do silêncio”; cultura de reprodução irrefletida de discursos impostos pelas classe dominantes, por meio de uma educação “bancária”, que se limita a transferir conteúdos – seja ela uma educação “popular” ou “elitista”. Uma educação que reproduz entendimentos e sentidos opressores, perpetuando a famigerada cultura do silêncio. Educação que produz seres autômatos. Pessoas que imitam, que fazem igual. Para Freire, a cultura do silêncio, essa expressão da educação bancária, gera o “ser menos”.

Carlos Contente. Picaretagem da mídia (detalhe).  Acrílica sobre tela. 65 x 100 cm. 2013

Contra isso, temos uma proposta de Educação Libertária, que gera pessoas autônomas, independentes, atuantes. Pessoas capazes de ler fenômenos sociais, refletir sobre eles e propor ações de mudança. Cidadãs e cidadãos plenos. Conhecedoras e conhecedores de direitos, deveres e, sobretudo, cientes da legitimidade, da responsabilidade e do poder de intervir no mundo em que vivem. E, consequentemente, nos seus próprios destinos. Para Freire, essa Educação possibilita o nosso “ser mais”.

Resumindo, acredito que a educação libertária deve promover o amor. Não o amor romântico, substantivo. Mas, como ensina bell hooks, o amor verbo. O amor como prática de respeito a todas as formas de expressão da vida. O amor revolucionário. O amor mais.

Professores da ADEP em campanha de doações durante a pandemia. Foto: Graciana Martins/ADEP Mangueira

– Desde o início da pandemia a ADEP/ Mangueira faz uma campanha de doações solidárias. A quem têm atendido?

– Desde o início da pandemia de Covid-19, a Ação Direta em Educação Popular tem atendido a 50 famílias por mês. Algumas de estudantes do Pré-vestibular da ADEP, algumas da favela Metrô-Mangueira, e outras indicadas pela Clínica da Família Dona Zica – colaboração muito importante para orientar as doações.

Distribuímos cestas básicas, com produtos de higiene e máscaras de proteção. A partir do terceiro mês, passamos a distribuir fraldas infantis. Ao todo, de março a maio, foram 150 cestas básicas, mais de 150 máscaras de proteção e 20 pacotes de fraldas descartáveis.

Tudo graças à doação de dezenas de pessoas, e alguns sindicatos, que colaboram com a “Ação Solidária – Ajude a Mangueira!”. Colaborações que levam mais dignidade e alimentos para 50 famílias. Muitas sem a renda do trabalho, devido às regras de distanciamento social, e sem qualquer auxílio do estado. Famílias que estão passando fome.

Por isso, qualquer doação é bem-vinda. Seja na forma de recursos, divulgação em redes sociais ou doação de máscaras de proteção. Para doar valores nossos dados bancários são:

Nubank 260, agência 001, Conta corrente 99285601-5. Na página , as pessoas podem acessar as prestações de contas e conhecer outras ações que realizamos.

Importante destacar que a ADEP é um grão de areia no universo de coletivos que estão atuando nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Pessoas que colaboram com doações de cestas básicas, de equipamentos de proteção individual e de oxímetros para equipes das Clínicas da Família e para outros coletivos – inclusive fortalecendo as ações da ADEP.

Além disso, realizam doações à população em situação de rua e campanhas de arrecadação de roupas. São muitas ações que levam algum amparo às pessoas mais desassistidas pelo estado. Ações importantes de serem registradas. Porque apontam pra aquela sociedade que buscamos: solidária, autogerida, autônoma. Nesse sentido, as entendo como ações pedagógicas.

Prestação de contas da campanha de doações da ADEP Mangueira.

– O Enem foi adiado, graças à pressão popular, mas ainda persiste a necropolítica, a violência de Estado que criminaliza o morador. 2020 será o ano da “meritocracia”, graças a pandemia?

– Como disse, a pandemia revelou o total esgarçamento do nosso tecido social. Esgarçamento que se agrava durante o “combate” à pandemia. Como tantos estados estão envolvidos em fraudes nas compras de equipamentos e na construção de hospitais de campanha!? Isso revela o total desprezo pelas vidas das populações historicamente subalternizadas. Sim, aquelas populações criminalizadas cotidianamente, pelo estado, pela imprensa e, às vezes, pela própria educação. É impressionante a precisão da necropolítica. Onde parece haver caos, há ações certeiras contra populações específicas.

Nesse contexto, como jovens sem acesso a internet vão se preparar em igualdade de condições com jovens que possuem todos os recursos online? Como jovens que sequer têm dinheiro para pagar a taxa de inscrição de R$ 85, concorrerão com jovens que fazem o Enem como “treino”, desde do 1º ano do Ensino Médio? Quantos estudantes estão em situação de insegurança alimentar? Que mérito há em “vencer” nessa injusta competição?

A necessidade de suspensão do ENEM em 2020 deve ser compreendida nesse contexto de maldade. E maldade, como explica Deleuze, é impedir que as pessoas possam ser. É lhes tirar possibilidades do ser mais.

O resultado já se mostra nas 6,1 milhões de inscrições. O menor número na última década. E, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais – INEP, cerca de 87% das inscrições receberam isenção. Como teremos indeferimentos de certas isenções, o número de inscrições válidas será ainda menor.

– Um mundo sem vestibulares, Enem, roletas ou catracas, é possível?

– Um mundo sem a catraca-funil do vestibular deve ser imaginado e desejado. A impossibilidade está nos interesses das elites. Os mesmos interesses que mantêm o ENEM em 2020. Pois, para filhas e filhos das classes mais abastadas será ainda mais fácil concorrer nesse cenário tão desigual, em tempos de pandemia.

De qualquer forma, acredito que este deva ser o nosso horizonte: acesso ao ensino superior, público, gratuito, de qualidade e sem vestibular. A ideia de uma avaliação continuada ao longo dos três anos do Ensino Médio me parece uma possibilidade viável para reduzir as desigualdades de acesso ao ensino superior, ao permitir o acompanhamento e a assistência a estudantes, ao longo de todo o Ensino Médio.

Acredito que o caminho para o acesso ao ensino superior sem vestibular seja construído gradativamente. Até alcançarmos o fim do vestibular, talvez seja preciso construir outras medidas alternativas e afirmativas ao longo do caminho. E o acesso a partir da avaliação do Ensino Médio pode ser uma estratégia viável.

Mas sem investimento nada será viável, seja em Educação, Saúde, Habitação… Pra qualquer melhoria de bem-estar social, precisamos eliminar a Emenda Constitucional 95. Uma das maiores covardias do estado contra o povo. Mais uma contra a vida em benefício de indicadores econômicos.