CINEMA

 

 

Desde o final do século XIX, período que marcou o início das projeções públicas, o fim do cinema foi alardeado em diversas oportunidades. Naquela época, muitos acreditavam que aquele espetáculo de imagens em movimento se tratava apenas de uma moda passageira. Ao longo do século XX, as invenções da televisão e, posteriormente, do videocassete assumiram o papel de algozes do cinema. Já no século XXI, o desenvolvimento do streaming (transmissão de informações multimídia através da transferência de dados, utilizando redes de computadores) é o grande vilão. Hoje uma nova ameaça se faz presente, a pandemia de Covid-19. Multiplicam-se na mídia entrevistas com executivos das grandes produtoras e das principais distribuidoras que, aproveitando-se das dificuldades impostas pela pandemia, reforçam a ideia de investir cada vez mais no streaming em detrimento da exibição em salas coletivas, assim como na elaboração de protocolos de produção que visam diminuir o contato direto, estimulando a comunicação à distância. Será, então, que, finalmente, impulsionada pela pandemia, a sentença de morte que paira sobre a cabeça do cinema há mais de um século se confirmará?

Frente a essa questão uma pergunta se impõe de imediato: mas, afinal, o que é o cinema? E a resposta para essa pergunta é, no mínimo, controversa. Há, pelo menos, três maneiras de abordarmos essa discussão.

A primeira é definirmos o “nascimento do cinema” em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café, em Paris, quando da exibição dos filmes dos irmãos Auguste e Louis Lumière e traçarmos, a partir de então, uma história linear que culminou na hegemonia do modelo industrial desde a década de 1920, modelo esse que compreende uma sala escura herdada do teatro italiano, a projeção de imagens em movimento e um filme que, com uma duração próxima de duas horas, narra uma história.

Outra possibilidade é encararmos o cinema como um conjunto de experimentações audiovisuais através da História que abarcam diversas possibilidades de captação, exibição e interação com as imagens e os sons, derivado de inúmeras práticas existentes desde ao menos a Idade Média com a câmera escura, passando pelo século XVII com a lanterna mágica, desembocando no século XIX com a fotografia, o fonógrafo e o cinetoscópio de Thomas Edison, o cinematógrafo dos Lumière etc., aonde o cinema tradicional descrito anteriormente é apenas uma das possibilidades.

Há, ainda, uma terceira via, a de pensar o cinema como parte fundante do imaginário humano, onde a cadeia sonho-desejo-inconsciente-cinema está presente, mesmo que de forma latente, desde as pinturas rupestres e que tem no Mito da Caverna, de Platão, uma de suas representações mais recorrentes.

Cada caminho escolhido implicará numa resposta diferente a pergunta formulada inicialmente. Contudo, é inegável que ao se pensar o cinema somente a partir de sua vertente industrial, limita-se enormemente suas perspectivas e alimenta-se o temor pelo seu fim. Mesmo quando se aceita o “nascimento do cinema” a partir do marco simbólico de dezembro de 1895, as múltiplas possibilidades abertas pelo cinematógrafo dos irmãos Lumière, assim como o seu caráter experimental, são inquestionáveis. Naquele sábado de final de dezembro em Paris, por exemplo, apenas duas das características que se consagrariam no modelo industrial estavam presentes, uma vez que os filmes exibidos não contemplavam nenhuma história. O cinema como contador de histórias só vai se desenvolver a partir de 1907/1908, ou seja, mais de dez anos após o seu “nascimento”, período no qual o cinema não ficou parado. Pelo contrário, a quantidade de variáveis aplicadas a prática cinematográfica foi imensa, o aparato fílmico foi experenciado de diversas maneiras, tanto no que diz respeito aos seus aspectos técnicos, quanto na experimentação da linguagem, inclusive pelos próprios irmãos Lumière que chegaram a investir em formatos diferentes, como o Photorama, uma espécie de panorama que eles desenvolveram ainda no início do século XX. A primazia do modelo industrial não se deu, em nenhum momento, de forma corriqueira, mas foi consequência de fatores econômicos, culturais e ideológicos.

Apesar do caráter experimental ter sido minimizado e até mesmo ocultado por um modelo que, no percurso de se tornar padrão, investiu numa narrativa histórica linear que se apresentava como parte de um processo natural de desenvolvimento, a verdade é que o cinema sempre foi um campo de diversificados ensaios. O próprio modelo industrial é prova disso, apesar de tentar recalcar suas experimentações sob um discurso evolutivo. Nesse quadro, inovações técnicas como o som sincronizado, o filme colorido, as dimensões da tela etc., aparecem como processos espontâneos, da mesma forma que recursos de linguagem como a divisão da tela, os movimentos de câmera, as experiências com o som etc., embora tais inovações derivem de movimentos na maioria das vezes marginais. As diferenças sempre foram excluídas ou naturalizadas pelo modelo hegemônico, mas o cinema, em sua essência, sempre foi plural como atestam movimentos como o cinema experimental, o cinema expandido, o cinema interativo, a videoarte etc.

Nas últimas décadas, o acelerado desenvolvimento das tecnologias digitais expandiu vertiginosamente essa realidade, uma vez que a profusão de meios multiplicou abruptamente as variáveis de produção, exibição e consumo do cinema. O cinema ocupou os museus, rearranjou as salas de exibição, multiplicou as telas, investiu em novos formatos, durações e potências, assim como estabeleceu novas conexões com o espectador. Portanto, quando a indústria expõe seus temores quanto ao futuro do cinema, na verdade está tematizando o “negócio cinema”, restringindo-o a uma perspectiva industrial/mercantil. O cinema é um aparato audiovisual que transcende suas especificações técnicas e materiais, ele é, acima de tudo, um efeito, uma relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais etc.) que produz saberes e subjetividades. O cinema, enquanto “efeito”, está mais vivo do que nunca, expandindo-se por diversas mídias e espaços.

Um dos maiores entusiastas do cinema enquanto um aparato audiovisual que mobiliza elementos heterogêneos é o cineasta britânico Peter Greenaway. Greenaway é um verdadeiro militante da “causa” e não poupa veemência e polêmica ao defender seu ponto de vista. Em diversas entrevistas e palestras ele atesta que o cinema ainda não nasceu e que o que vivenciamos nesses 125 anos desde a exibição dos Lumière é apenas literatura ilustrada. Em outro momento, Greenaway, ironicamente, chega a apontar a data da “morte” do cinema: 31 de setembro de 1983 (detalhe: setembro só tem 30 dias!), data, segundo ele, da introdução da prática do zapping (ato de mudar rápida e consecutivamente de um canal para outro, com o controle remoto) nas salas de estar do mundo. Mas Greenaway não se limita a polemizar, sua produção é intensa e vastamente variada e é um ótimo parâmetro para as discussões atuais. Entre suas obras podemos encontrar filmes de arte, filmes experimentais, trabalhos em vídeo que exploram as diversas texturas da imagem, série para TV, CD-ROM interativo, jogo online, exposições, além de incursões pelo Live Cinema aonde protagonizou uma performance de VJ (videojóquei) em que remixava, em tempo real, três filmes em onze telas. Apesar do caráter multimidiático dos seus trabalhos e da sua veemência na defesa pela “reinvenção contínua do cinema” (palavras dele), Greenaway continua a produzir, também, filmes dentro do modelo tradicional, ou seja, filmes com narrativa e cerca de duas horas de duração para exibição em salas coletivas. As múltiplas formas que o cinema pode encarnar não se inviabilizam, nem se excluem mutuamente.

A preocupação vigente da indústria com o “esgotamento” do cinema é, antes de qualquer coisa, uma tentativa de rearranjo do modelo industrial para se adequar a dinâmica do capitalismo atual. Independentemente de pandemias, a vida contemporânea inclina-se cada vez mais para a inércia, tendência que o pensador francês Paul Virilio já anunciava nos seus escritos da década de 1980. Poderíamos citar, também, como outro exemplo da dinâmica capitalista atual, o fenômeno do home office, predisposição que foi acelerada pela pandemia de Covid-19. Se o cinema (a Arte, de uma maneira geral) corre algum risco, não é por causa da pandemia em si, muito menos em função das inovações tecnológicas, mas pela lógica desse capitalismo pós-industrial em que a produção de valor deixa de ser apenas material (exploração da força de trabalho) e passa a gerir o imaterial (conhecimento, invenções etc.), promovendo a ocupação de todas as instâncias da vida pelo trabalho.