OLHARES

 

 

“A palavra é como a flecha, quando lançada não volta.”

 

Me refiro acima a um dito popular, de autor desconhecido, mas que até pastores se apropriam em seus cultos. Por mim, já foi usada nas redes sociais, sobre alguns incômodos que eu tinha em relação à urgência de protagonismo nos discursos indignados pelas transformações políticas recentes. Não repercutiu mais que quatro ou cinco likes, minha flecha provavelmente não tinha direção nem um alvo certo. Como bom pisciano, não tinha pressa em ser o primeiro a comentar algo que “pode ser passageiro”, mas hoje palavreio para refletir sobre o tempo destas e sobre como podemos pensar palavras como algo para ser lido hoje, amanhã e a qualquer tempo.

Em 2019 fui convidado para um evento no Méier, no aniversário do bairro, pela professora Elaine Brito, para um momento falando sobre sua especialidade, Lima Barreto. Expliquei-lhe que não dominava o tema, mas ela gostaria que eu trouxesse uma abordagem da cidade, como presente em meus filmes que ela assistiu em um evento no Colégio Pedro II da Tijuca meses antes. Ela gostou da minha abordagem para os presentes das turmas de EJA. Lembro que sempre fui uma negação com literatura. Corri atrás do site do domínio público e mergulhei em alguns contos do Lima Barreto. Me concentrei nos textos dele ambientados na Zona Norte, em especial no Engenho Novo, e é impressionante como pouco mais de 100 anos depois eu estava lendo o texto e vendo os cenários descritos, condizentes com o tempo presente. Lima é “afrofuturista”. Sua palavra corre o tempo e atinge o leitor em qualquer época. E seus contos me ajudaram muito para minha participação no evento, e para projetos futuros.

Sobre a palavra certeira como a flecha, já me vi em inúmeras situações, nos grupos de e-mail e nas redes sociais, aliado às urgências de leitores e “produtores de conteúdo”, sendo mal interpretado. Seria porque a palavra escrita não tem o mesmo “calor” da falada? Se eu conseguisse dizê-la para o interlocutor ao invés de ser lido, o resultado seria outro? Ou não, já que o “calor” também está na escuta da outra pessoa? Hoje, sou leitor também, ao contrário do estudante do CPII que se dava mal em literatura, e reviso, minimamente, o que escrevo.

 

“O homem é sua palavra e sua palavra dá testemunho do que ele é. A própria coesão da sociedade depende do valor e do respeito pela palavra.” (Hamadou Hampate-Ba)

Essa citação me lembra uma das lendas de Oxóssi. Não me posiciono como uma autoridade, que não sou, apesar do cargo de Ogan, mas como interpreto as energias com as quais convivo a vida inteira na Umbanda. A lenda a qual me refiro é a de que Oxóssi, aqui antropomorfizado, é o caçador de uma única flecha. A flechada dele tem que ser certeira. Minha leitura deste fato é que, para sacar o arco e dar uma única e boa flechada, para além de boa mira e atenção, tem que se ter paciência. Esperar a melhor caça, esperar o melhor momento, preparar e… Foi.

A palavra como a flecha não volta, mas dependendo do alcance, ecoa. Dá um sopro, atinge o alvo e provoca um resultado. Tem a ver também com o outro elemento que omiti deste dito, mas que considero inserido nos dois anteriores: a oportunidade perdida também não volta, mas tem que se aproveitar o momento certo para falar. A intenção da caça com uma flecha não é somente para o caçador se alimentar. Então se a caça vem para alimentar um grupo, acredito que a palavra quando atinge o alvo tem que nutrir a quem o orador pretende alcançar. E fazer ecoar o zumbido da flecha.

Em discurso recente uma “autoridade” conseguiu, de maneira dolosa atingir seu alvo. Ele o faz com frequência, por palavra escrita ou falada, e não tem a intenção de trazer o alimento, mas de adoecer a presa e a sua comunidade. Adoecer pelo seu compromisso com o patronato, em detrimento dos riscos com a sociedade civil. Doloso pela irresponsabilidade para com a vida da população que, para a própria infelicidade, o terá pelo “prazo máximo de 3 anos” como referência de poder. Repetindo Hampate-Ba: “A própria coesão da sociedade depende do valor e do respeito pela palavra”. Não há respeito nem coesão nas palavras daquele. E as flechas vem sendo atiradas para o alto desrespeitando as leis da gravidade, com gravidade, no país onde os representantes argumentam sobre o risco das balas perdidas como maior que o COVID19 e que não há comoção semelhante com o fato. Não houve onde, “cara-pálida”?

Se a flecha certeira for atirada em prol da sociedade/comunidade, ela ecoa na trajetória e atinge o alvo. A presa ficar na toca, nesse momento, é vantagem.

Sobre Lima Barreto, o “afrofuturista”, em um conto chamado O Corte, que li no Méier, no evento ano passado, ele menciona criticamente o volume de secretários nas casas do Congresso Brasileiro. Critica também o tamanho do salário de seus deputados, senadores e secretários, propondo uma redução de profissionais e salários, para um melhor destino do dinheiro economizado. Isso em dezembro de 1914. Passados 106 anos, outra autoridade de uma dessas casas citadas se usa da palavra, no meio da “guerra primitiva de flechas perdidas”, para propor, em prol da sociedade, dentro da urgência do momento e buscando o protagonismo do ato, o mesmo que o “louco” Lima Barreto já sugeria um século antes.

Não sei como serão os próximos discursos desses oradores, mas eles estão longe de compartilhar a caça com a sociedade, pois não souberam ter a paciência e a mira do Oxóssi. Só aprenderam a matar a presa e ostentar na parede para quem sonha em ser também esse tipo de caçador, mas que ainda é presa.

Sobre a minha flecha, ainda está guardada ao contrário das palavras escritas acima. Vou ecoando palavras que vem de algum lugar, esperando compartilhar o que nos alimenta.