LIVRO
Conheci Alex Frechette há vinte anos, quando estudávamos artes visuais na UFRJ só que na época ele era imerso na música, tocava uma banda chamada Noitibó – da qual ainda tenho todos os cedês (sim, ainda escuto CD). A vida separa e reorganiza as pessoas: voltei a reencontrá-lo nas ruas em protesto a partir de 2013; no primeiro reencontro já não falava mais da banda, mas mostrava cordéis na Cinelândia, que não contavam causos do sertão, mas sim as efêmeras lendas urbanas que se faziam ali na cena dos protestos, do Ocupa Câmara, das assembleias populares que aconteciam no IFCS/UFRJ, na Cinelândia, Largo do Machado e outros pontos da cidade. Era um momento excitante para a criação com as ruas fervilhando em encontros inusitados entre pessoas que não se conheceriam em condições ditas “normais” do cotidiano e no reencontro com aquele espírito anárquico que incendeia o coração de cada geração que se levanta contra injustiça e opressão, seja ela pintada de verde e amarelo, vermelho, verde-oliva ou azul e branco com cifrões nos olhos. Havia Copa e Olimpíadas pela frente. Na propaganda Rio o Petróleo é nosso víamos decepcionados figuras que tinham um passado de esquerda, agora abraçadas e gargalhando com charlatães religiosos e um ainda jovem governador picareta. Havia também o mórbido caveirão, uma figura sinistramente apelidada com humor quase-fascista (naturalizava-se a máquina de morte no imaginário do povo da cidade). Havia o culto da imprensa ao “empresário alfa” Eike Maravilha e uma mega obra bilionária no porto do Rio envolvendo remoções forçadas e despejo. Enquanto casas eram derrubadas e moradores expulsos da vila maracanã justo em frente ao estádio que em breve cairia na gestão Eike, Ronaldo Fenômeno declarava que se quiséssemos Copa precisávamos de estádios e não de hospitais, sete anos antes da pandemia COVID-19. Este era o clima da época que Alex Frechette captava quando decidiu se desenhar como artista político.
Reencontrei Alex nas ruas em protesto carregando cartazes a priori bem toscos, mas a cada dia mais criativos e elaborados. Volta e meia abri o computador e o vi no jornal levantando um cartaz com uma imagem potente. Pelas redes sociais ele postava trabalhos novos e com o dicurso mais preciso – por exemplo os retratos dos vinte e três manifestantes presos durante os protestos da Copa do Mundo e a homenagem a Rafael Braga (detido surreal e injustamente pelo porte de pinho-sol, um desinfetante à guisa de coquetel motolov e preso por uma (in)justiça racista e seletiva). Do encontro com outros artivistas Frechette lançou um livro em 2018 chamado Copa para quem / Olimpiadas para quem, onde deixa bem registrado o momento político, os protestos contra o aumento das passagens de ônibus e as performances – como por exemplo quando ativistas encenaram o “casamento da dona Baratinha”, (peça infantil) justo na entrada do Copacabana Palace onde se realizava o casamento nababesco da neta do dono do monopólio dos transportes públicos urbanos, de sobrenome homônimo ao inseto repulsivo; enfim, Alex registra no livro essa balbúrdia toda.
A medida que os anos avançaram desde 2013 o Brasil desde então foi descendo a ladeira e degringolando em golpe, baixaria e assassinato – o discurso de ódio cresceu, se criou e não só saiu do armário como foi disparado em massa via whatsapp para todo território nacional e além. Nas mãos de Frechette o contrário do amor então ganhou um livro que já na capa parodia o antigo álbum Amar é – quem é da minha geração deve se lembrar daquelas duas figurinhas infantis nuas, acompanhadas de frases ternas e românticas – o livro de inatividades Odiar é.
Odiar é foi feito já neste período sombrio da história em 2019, um ano que ainda surfou no embalo eufórico da campanha do coiso mas rapidamente revelou o desastre que é desgoverno.
O livro é uma paródia das revistas de passatempo do grupo Coquetel. A primeira parte é como um álbum de figurinhas que retrata bem estas figuras que saíram desembestadas do armário impulsionadas por algoritmos do ódio.
Mais adiante um labirinto: a missão é ajudar Sérgio Moro a chegar na justiça; um jogo dos erros onde efetivamente nada esta certo – “tá tudo errado” e uma paródia do jogo Onde está o Wally, protagonizado pelo laranja mais famoso do Brasil, Fabrício Queiróz. Há também o Diário do discurso do ódio (Manual do curso de 15 dias para se formar um hater profissional) que tem um visual vintage e simpático acompanhado de descrições irônicas de como exercitar preconceitos, ignorância e mediocridade e expressá-las em voz alta. Esta parte do livro é inclusive bem útil para destrinchar a argumentação típica dos bolsominions e preservar a sanidade mental do leitor. O Manual foi feito em 2014, conforme escreve o autor na apresentação
quando o ódio e as pós verdades (palavra do ano de 2016, segundo o dicionário Oxford, e ano também da deposição de Dilma Roussef), começaram a chamar a minha atenção na internet. Não imaginei que o manual seria seguido por tanta gente.
A contracapa do livro é parte de uma série de cartazes antifascistas que o autor vêm fazendo desde 2018 que são um escândalo de excelência em qualidade gráfica, fino trabalho a traços negros de nanquim com toques em vermelho.
Destaco as páginas contundentes com imagens para descolorir – Alex Frechette já lançou um livro só com este tema – com cenas tétricas deste momento histérico, aliás histórico, que mesmo com muito colírio não sairão tão cedo das nossas retinas: um desgovernador saindo do helicóptero comemorando a morte ou a cena de um policial fardado e blogueiro que criou confusão e atirou em um enterro de uma criança baleada por engano pela mesma corporação. Quando tudo isto já tenha caído no esquecimento talvez futuras gerações estarão lá descolorindo e quem sabe, lutando para que não se repita nunca mais. Um alerta que o autor destaca no final da apresentação:
O delírio político tenta captar também o campo da arte, da criatividade, do estético – mas vale lembrar: a estética (campo vasto que inclui a arte) traz dentro de si a palavra e a prática ética, e é via política também, e possivelmente, antianestética.
Lançado pela Circuito, editado por Renato Resende, revisado por Guidi Vieira e com projeto gráfico do autor, Odiar é é um entretido registro do fabuloso buraco em que nós brasileiros nos metemos.
Imagens do autor de “Odiar é”, Alex Frechette