CINEMA
A primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Roma, de Alfonso Cuarón, é: o que aconteceu com a crítica cinematográfica? É impressionante a pauperização das análises, que, diga-se de passagem, gastam mais da metade do espaço da crítica “contando” o filme para o leitor. No que diz respeito à análise crítica propriamente dita, poderíamos, de maneira geral, dividi-la em duas correntes: os que analisam o filme unicamente pelo seu conteúdo e os que se limitam aos aspectos técnicos. Elementos da linguagem cinematográfica, o diálogo estabelecido com outras obras (cinematográficas ou não) e, principalmente, o entendimento do filme enquanto obra, são frequentemente ignorados.
A insistência em nomear “obras-primas” a partir de um fascínio pelo apuro técnico tem sido uma constante. Acho que é notório o fato de que, hoje em dia, temos uma geração de cineastas que literalmente “sabe filmar”, isto é, que domina com destreza as técnicas cinematográficas. Vários fatores contribuem para isso, em especial o fato de que o cinema já acumula uma vasta história, um farto material fílmico, assim como um não menos farto corpo teórico, o que permite que se estude cinema, que se aprenda com as experiências anteriores. Some-se a isso o desenvolvimento das tecnologias digitais que ampliaram enormemente os recursos técnicos, e temos um universo de “excelência audiovisual” que é simplistamente elevado à categoria de “arte”.
É imensa a lista de filmes e diretores que são alçados ao patamar da “genialidade” muito mais pelo impacto estético proporcionado pela qualidade audiovisual dos filmes, do que pelo “disparo do pensamento” que provocam (diferentes filmes, com diferentes propostas narrativas se encaixam nesse perfil). Mas o problema não para por aqui. A opção por um “cinema humano” (seja lá o que isso significa), também tem tido grande apelo junto à crítica nos dias de hoje. Uma bela fotografia, movimentos de câmera elegantes, um competente desenho de som, com algumas pitadas de consciência social e existencialismo de apostilas filosóficas de 2º grau, já bastam para encantar e sensibilizar. Chama a atenção (e irrita) o uso abundante e sem nenhum critério de palavras como “poesia” e “poético” nas críticas. Qualquer imagem, ação ou diálogo que remeta a outro tempo que não o do realismo naturalista, é nomeado indiscriminadamente de “poesia”.
Portanto, não é de surpreender a avalanche de críticas eufóricas recebidas pelo Roma, de Cuarón. Com uma fotografia em preto-e-branco que evita os contrastes, somada aos lentos e precisos travellings laterais, Cuarón passeia “respeitosamente” pela vida dos personagens, sempre mantendo uma distância contemplativa. Junte-se a isso um trabalho impecável de cenografia e um desenho de som que privilegia os ruídos ao invés de uma trilha musical, e tem-se uma obra que preenche todos os requisitos de “beleza” que povoam o imaginário do espectador médio. O golpe de misericórdia é dado com doses homeopáticas de feminismo e crítica social. Pronto, já temos o bastante para público e crítica elevarem o filme de Cuarón ao patamar das obras dos neorrealistas italianos da década de 1940 e 1950. Mas seria Roma um filme neorrealista?
De maneira bem sucinta, diríamos que o neorrealismo, que surge nos escombros da Europa do pós-guerra, tinha como proposta uma nova forma de fazer cinema, que, grosso modo, seria a de “mostrar a realidade” em contraposição ao cinema de “fantasia” que era praticado por Hollywood. Mas essa “realidade” mostrada pelo neorrealismo tinha um estatuto bem particular. O “realismo” presente no neorrealismo era inseparável de uma forte crítica social e política, crítica essa que fugia de um discurso panfletário e maniqueísta ao trabalhar tanto as ações, como as relações, na superfície dos acontecimentos, num plano horizontal aonde se inseria também o espectador. Contudo, isso não implicava numa “neutralidade” e tanto as situações quanto os personagens eram impregnados com fortes elementos simbólicos. Os personagens retratados no neorrealismo escapavam do psicologismo, mas carregavam uma carga existencial irremovível, que se projetava para além do cotidiano retratado. Mesmo partindo de um caráter quase documental, evitando o melodrama, os filmes neorrealistas eram densos e, em certa medida, “pesados”, por constantemente requisitarem uma posição (ética, moral, ideológica, histórica, social) do espectador. O que os filmes neorrealistas documentavam era uma espécie de combate frente à miséria moral humana, simbolizada nas imagens das ruínas da guerra e da pobreza nas periferias das cidades e no campo.
Roma, de Cuarón, bebe direto na fonte do neorrealismo e as evidências são claras e abundantes. Vamos a algumas delas: a opção pelo preto-e-branco; a exploração da profundidade de campo e dos planos longos, aonde várias ações simultâneas preenchem o quadro; a preferência por uma atriz sem experiência e desconhecida (no caso, a personagem Cleo); o uso de locações reais (a casa da família); assim como uma proposta quase documental de filmar. Porém, a contundência da crítica social e política, assim como a carga existencial dos personagens presentes no neorrealismo italiano, estão completamente diluídas em Roma.
No lugar das cruas imagens de Rossellini, De Sica, Visconti etc., o filme de Cuarón estetiza o real a partir de um virtuosismo técnico, produzindo um neorrealismo aguado, que aposta na exibição meramente contemplativa de vivências humanas, com o espectador sendo deslocado do lugar crítico e assumindo o papel de voyeur ou de um observador ideal. E essa estetização atinge o seu ponto máximo na personagem Cleo, representante das populações indígenas e das desigualdades sociais, a quem é reservado o lugar do silêncio e da resignação, retratados como uma virtude quase espartana. Ao invés da horizontalidade que o neorrealismo estabelecia em sua narrativa, temos a passagem da superfície dos acontecimentos para a superficialidade das ações, mascarada pela ambição de ser um “épico da vida comum”. Graças a um tom intimista, as imagens de Roma acabam aproximando o que é mostrado na tela da realidade cotidiana da classe média, manipulando as emoções e gerando uma identificação fácil com o espectador, alternando momentos de tensão e catarse (notadamente nas sequências do parto e do abraço coletivo na praia).
Na verdade, eu diria que Roma fica num meio termo entre um neorrealismo insosso e um realismo naturalista de grande apuro estético. É inevitável lembrarmos aqui certas novelas e séries recentes produzidas pela Rede Globo, que apresentam essa mesma proposta (veja bem: PROPOSTA. Não estou comparando ipsis litteris os produtos). As novelas ou séries que são dirigidas, por exemplo, por diretores tais como Luiz Fernando Carvalho ou Jaime Monjardim, apresentam (guardadas as devidas diferenças de recursos e meio de veiculação) o mesmo apuro técnico de certos filmes atuais, com uma grande ênfase na fotografia, nos movimentos de câmera e na cenografia. E, embora tais obras abordem constantemente temas sociais e tenham acontecimentos históricos como pano de fundo, elas continuam presas a um realismo naturalista que tenta, através da técnica, naturalizar um “real”. Nesses produtos audiovisuais (filmes, novelas ou séries) tem-se certa mistura de estilos (e muita vezes de gêneros), que não consegue atingir sua máxima potência em momento algum, soando como uma nova forma de maneirismo.
Em Roma, várias outras referências podem ser facilmente percebidas, uma delas é o cinema de Federico Fellini. Fellini também retratava em seus filmes os laços pessoais, assim como as relações dos personagens com os espaços familiares e sociais, tendo como ponto de partida as suas memórias. Porém, afastando-se desde cedo do neorrealismo, ele utilizava imagens explicitamente oníricas e alegóricas na construção de suas narrativas. As alegorias de Fellini apontavam sempre para a desconstrução de qualquer realismo, como se ele estivesse o tempo todo nos lembrando de que suas memórias não são o “real”, mas a sua visão (bem particular) do real. Em Roma, certas sequências remetem de imediato a Fellini (em especial, a sequência na periferia, na qual temos o homem-bala, o comício político e a aula de arte marcial coletiva ministrada por um excêntrico “mestre”), mas elas caem totalmente no vazio e aparecem apenas como pitadas de estilo. A alegoria, que em Fellini quebrava qualquer pretensão de neutralidade, qualquer pretensão de reflexo do real, em Roma surge apenas como uma “citação”. Da mesma forma, em Roma, os planos que em determinados momentos se demoram em certos objetos, nada acrescentam a proposta de “documentar” as relações humanas, aparecendo, mais uma vez, como uma estilização vazia.
Não por acaso, Cuarón e seus conterrâneos caíram nas graças de Hollywood (e aparentemente, também de Veneza) e tem dominado as premiações da indústria norte-americana nos últimos anos. Ao praticarem um cinema “limpo”, extremamente bem feito tecnicamente, inebriante esteticamente (pelo menos a partir de uma leitura convencional do Belo) e perfeitamente palatável na abordagem de conteúdos “sensíveis”, esses diretores e seus filmes agradam em cheio uma parcela do público e da crítica que busca trabalhos autorais, mas que se contenta com uma interpretação mediana dos acontecimentos e do pensamento.
Traçando um paralelo com a tendência atual de gourmetização do consumo, eu diria que a experiência de assistir Roma trouxe-me à lembrança um cup cake (bolinho, para os íntimos) que comprei recentemente. O doce, que não utilizava açúcar na sua composição, era visualmente bastante atraente, adequando variados ingredientes e sem restrições de consumo, mas com pouco sabor.