Por Caroline Oliveira/Brasil de Fato
“Primeiramente, não somos um termo”, diz a presidente Associação Comunitária dos Ciganos de Condado, Maria Soares
Depois da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, quando o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse odiar o termo povos indígenas —, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré —, a Associação Comunitária dos Ciganos de Condado, na Paraíba, publicou uma nota de repúdio ao ministro.
Para a associação, trata-se de “um escândalo mundial as palavras de ódio e racismo”, em que Weintraub “explana despreparo e escancara a verdadeira face do atual governo”. “Milhões de crianças e adolescentes sem aulas, trabalhadores sem emprego, empresas fechando, milhares de pessoas perdendo a vida por conta do covid-19, e o que faz o chefe da educação numa reunião de governo? Destila ódio aos povos tradicionais brasileiros que contribuem, desde sempre, para a formação cultural, social e econômica deste país. Os povos ciganos brasileiros e de toda humanidade estão indignados com essa fala!”, diz um trecho do texto.
No sentido contrário da fala do ministro, a associação argumenta que, mesmo diante do artigo 5º da Constituição Federal, cujo conteúdo prevê que “todos são iguais perante a lei”, “na prática, é bem diferente”.
Para falar sobre a realidade dos povos ciganos no país, o Brasil de Fato conversou com Maria Jane Soares, de 40 anos, da etnia Calon, que predomina na Paraíba. Ela é presidente da Associação Comunitária dos Ciganos de Condado e conselheira no Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial (CNPIR).
– O que essa fala do Weintraub diz sobre a forma como o povo cigano é tratado no país, para além do governo Bolsonaro?
– Primeiramente, a gente não é um termo. Eu acredito que de alguma forma ele errou gravemente, porque nós sabemos o que estamos dizendo e o que isso pode prejudicar e agravar a vida do outro, inclusive, de um povo tradicional.
Assisti aquele vídeo três vezes para poder engolir ele, porque trata o Brasil como se todos fossem iguais, com direitos iguais. Sim, existe isso na Constituição, mas na prática, não. Para você conseguir algo, você tem que lutar e suar muitas vezes. Os direitos não são iguais. Um aluno pobre não é tratado como um aluno rico. Existe a sociedade média, alta e os pobres. Somos tratados iguais? Os negros, quilombolas, homossexuais, as lésbicas são tratados iguais? Não, na prática isso não existe. Então ele não pode falar isso.
Isso nos atinge porque somos um pessoal que tem uma diversidade de cultura e isso precisa ser respeitado, e não somos tratados como iguais como ele falou. A gente sofre racismo, preconceito, perseguições e tudo nesse leque de fatos que o povo tradicional sofre todos os dias. Quando ele fala de brasileiro e de instituições, eu não sei em que mundo ele vive.
O relato dele alimenta o racismo. A gente sabe o que a gente sofre todos os dias, sendo chamado de ladrões, vagabundos e etc. Somos maltratados, então como ele pode fazer um relato daquele? Aquilo ali foi o fim da picada. Eu não sei qual é a intenção que ele teve, mas aquilo ali nos prejudicou porque o povo já vive aquilo ali.
É tudo igual? Vai em posto médico, em um hospital, em uma Secretaria de Educação para ver se é tudo igual mesmo. Ele estava levando um relato como se ele desconhecesse. Não, ele estava sabendo o que ele estava dizendo. Muitas secretarias sabem que existe a lei e não querem aplicar, que é do povo itinerante, os ciganos. Eles acham que a gente dá trabalho. Então ele fala que todo mundo é igual. Aquilo ali foi fatal para alimentar o racismo.
– E isso ficou mais evidente no governo Bolsonaro? Quais medidas do governo a senhora diria que foram prejudiciais para o povo cigano?
– Nesse ano todo que ele está aí no governo, eu acredito que eles só entraram para desmontar conselho ali, aqui, acolá. E isso vai nos matando, porque a gente vai perdendo os nossos espaços. Então isso afeta porque não está trazendo benefícios, eles não sentam na mesa.
Está faltando o governo lembrar um pouco do povo, dos povos tradicionais também, e pararem de brigar lá dentro, de pensar só neles e trazer projetos, planejamento para o povo, de se aliar com outros governos, presidentes, outros países, e buscar uma forma de ajudar o povo, trazer esperança de vida para o povo.
Estamos todos morrendo, e os municípios e estados estão querendo abrir o comércio. Então quer dizer que estamos morrendo e se abrirem o comércio vamos terminar de morrer todo mundo. É grave, a gente está em uma situação delicada e grave.
– E quais medidas o governo vem tomando em relação à pandemia de covid-19 que atingem diretamente o povo cigano?
Não existe medida, ainda não foi tomada nenhuma medida. O povo cigano até agora não foi assistido, não existe nenhuma medida. Não estão nos acolhendo, está faltando acolhimento, assistência, atendimento e respeito para o povo cigano, porque a gente não tem salário fixo, estamos desesperados. Eu não vou economizar palavras. Os ciganos estão desesperados, passando fome, porque a gente não tem salário fixo, a gente não tem acesso ao mercado de trabalho, porque somos tidos como ladrões.
– Na nota, vocês pedem a saída de Weintraub do governo. Em que medida o Ministério da Educação é importante para o povo cigano?
O povo cigano nunca foi mapeado. Existe o IBGE que nunca mapeou. No povo cigano, são 90% analfabetos. Então eles também não têm um trabalho voltado diretamente para gente sair desse sair desse mundo de analfabetismo. A educação é importante para o povo cigano. Eu acredito que é uma das teclas mais importantes que deveria ser teclada.
Uma comunidade como em Condado, que a gente fez o mapeamento em 2017, tem 139 ciganos. A gente sabe que nós somos entre 80% a 90% analfabeto, porque se contam os ciganos dentro de uma comunidade dessa quem sabe ler e escrever. Você conta quem sabe ler lá dentro.
Então, o ministério e as secretarias de Educação têm uma dívida enorme com o povo cigano, porque nunca ofereceram algo para que o povo cigano saísse desse índice. Eles preferem sempre rotular o negativo, mas levar programas, campanhas para dentro das comunidades ciganas para poder acabar com esse índice de analfabetismo, por exemplo, não fazem.
Inclusive, isso é uma luta de todos os povos tradicionais que vêm aí há anos lutando por seus direitos. Graças a Deus, muitos deles têm suas conquistas e o povo cigano é que vai se levantando querendo suas conquistas também, seus espaços, principalmente na Educação. Porque na Educação você tem conhecimentos, aprende e você vai buscar o que te pertence. Daí você vai buscar um emprego e outras coisas.