Por Lélia Almeida*/Sul21

Para que serve um velho? Para muitas pessoas um velho não tem serventia nenhuma e tem mais é que morrer. Assim estão as pessoas nestes tempos estranhos.

Passei um carnaval na casa do meu pai, lá fora, na casa que hoje não existe mais.  Onde tinha um jardim, um pátio com árvores frutíferas e uma piscina. Meu pai estava aguando as plantas, vestia uma bermuda, um chapéu de cangaceiro que trouxe de uma viagem ao nordeste e vestia botas de plástico. Tiramos selfies fazendo caretas e rindo, porque ele estava muito engraçado. Depois entramos na piscina, ele com a boia preta grande, ele que nunca foi muito da água e depois nos sentamos pra tomar sol. Ele ia pra praia na semana seguinte e disse que precisava tomar um pouco de sol pra não chegar lá e levar um torrão. Naquele verão os caquis-chocolate caiam do pé ainda muito verdes, desabavam um atrás do outro, uma chuva insólita de caquis-chocolate. Esperávamos que caísse uma quantidade suficiente no chão, juntávamos em baldes e jogávamos num terreno baldio. Fizemos isso várias vezes e entre uma ida e vinda deitávamos nas cadeiras de praia e conversávamos.

As conversas com o meu pai sempre foram assim, nos últimos tempos, erráticas, sem pauta, com muitas lembranças e risadas. Tínhamos um jogo de lembrar os nomes das pessoas de outros tempos, do sobrenome e das ruas onde elas moravam. Era uma espécie de jogo da memória, e assim remontávamos árvores genealógicas inteiras de famílias que nem existiam mais, ruas e casas que também não existiam mais, e que não interessavam mais a ninguém. Histórias simples que eram o tecido das nossas vidas. Recriávamos juntos um tempo e uma cidade que só fazia sentido na nossa memória afetiva. Causos engraçados, histórias de grandes mentirosos, de amores traídos, de tragédias, desastres, de como a cidade foi mudando e as pessoas morrendo. Quando ele fez 80 anos ajudei-o a fazer a lista de convidados e ele me dizia, sabe o fulano? Morreu! E nunca vou esquecer da voz dele dizendo que estavam chamando a turma dele.

Numa das conversas entre um caqui e outro perguntei o que ele achava que tinha sido tão revolucionário e transformador na vida dele que pudesse ser comparado a toda esta tecnologia da internet e tudo o que temos hoje. Ele disse que muitas coisas, mas que era o evento da pílula anticoncepcional, e o tanto que isto tinha mudado a vida das pessoas. Lembrou da mãe dele, a Vó Zizi, jovem viúva, carregando cinco meninos sozinha e depois de como tudo isto mudou na vida das mulheres.

As conversas com o meu pai sempre me deram uma perspectiva de tempo e de história, de onde estou, de onde vim. E para onde vou, nesta outra etapa da vida que vejo ele percorrer com bom humor e muita esperteza. E de que os tempos sempre foram difíceis para as pessoas, de que muita coisa que ele via agora na política tinha visto sempre, que nada era muito novo, na verdade. De que a gente tem uma capacidade imensa de aguentar perdas, dores e dificuldades e que siempre que llovió, paró, que vai passar. E que é por isto que a gente também tem que agradecer e apreciar quando a vida é boa.

Fomos ficando velhos e mais lentos os dois, o sol já estava baixando quando resolvemos guardar as cadeiras e começar os preparativos pra janta. Eu estava me recuperando de uma cirurgia no pé, ele tinha 84 anos, firmei bem os pés no chão, segurei nos dois antebraços dele para que ele levantasse num impulso, ele conseguiu e nos abraçamos rindo, Pensei que não ia dar certo, mas deu!

Continuamos onde sempre estivemos. Ele vai na frente, diz que a velhice é uma merda, mas é muito orgulhoso da sua memória, me conta escalações inteiras do time de basquete da época dele. Minha irmã fez um álbum com as fotos dele dos tempos de atleta. Ele adorou o álbum e me disse, quando eu morrer ninguém vai saber quem são estas pessoas, não interessa a mais ninguém. Não havia nem mágoa, nem ressentimento, nem saudade na voz dele. Era uma constatação.

Meu pai vai na frente, eu vou atrás, como sempre fizemos, ele abre a clareira e ilumina o caminho, me diz quando dá pra caminhar mais rápido, quando é preciso parar e respirar e descansar, meu pai leva a lanterna, a força do espírito, vai na frente, vai contando do tempo e da idade, vai contando dos limites do corpo e do que tem que ser deixado pra trás. Meu pai vai na frente, e sabe de coisas que só nós dois conhecemos, desta vida que tecemos juntos e que é a nossa história possível. Eu confio na vida quando o meu pai está perto e não temo a morte quando vejo ele velho, indo para o final.

Nos telefonamos agora, na quarentena, e cada vez que ouço a voz dele tenho que respirar muito fundo pra que ele não perceba que voltei a ser menina e que estou chorando. Depois de acomodar todos os meus medos de não vê-lo outra vez, retomo a respiração e voltamos a ser bobos e falantes. Ele me disse, gordinha, o que a gente está vivendo nunca foi vivido antes, mas vamos viver né, porque vamos ver coisas que nem sabíamos que podiam existir. Ele perguntou como eu estava e eu disse que estava assustada, ele disse que podíamos ficar assustados juntos então.

Meu pai vai na frente, depois de ter pavimentado o caminho da minha infância e de toda a minha vida.

Eu não sei para que serve um velho. Mas ele, o meu pai, serve pra me lembrar que a vida é imensa, que as raízes são fortes, profundas e que o mundo não é pra amadores. Que o narcisismo e a cultura da eterna juventude são uma doença perversa. Que, talvez, um velho não sirva pra nada mesmo. Mas que não estaríamos aqui sem ele e que vamos ser os velhos dos netos dele e que esta é a única graça de tudo.

E que no fundo não sei muito bem se vale a pena um mundo onde as pessoas tenham esse tipo de dúvida, onde as pessoas não sejam capazes de responder para si mesmas para que serve um velho.


(*) Escritora

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