DANÇA
Por Maria Alice Poppe¹
Preciso dizer que tudo a seguir decorre de pensamentos com a dança. Costumo deitar para pensar melhor. Trata-se de deixar-se cair lentamente. Uma queda vagarosa.
Primeiro, vem aquela sensação de alívio, um repouso dos tensores e das forças motoras que nos constituem. Pesar a cabeça no chão ou na mão de alguém não é tarefa simples. Todos que já vivenciaram isso em uma prática corporal, sabem o quanto é árduo o exercício de entregar o peso da própria cabeça a outrem.
Um gesto distraído surge naturalmente, aquele espreguiçar suave em que os dedos dos pés se abrem ligeiramente, e os das mãos respiram. Logo, irrompe um suspiro, vago, que retrai os pulmões até as costas. O corpo se ajusta em pequenos movimentos para se apoiar melhor. O cabelo cai.
Um giro em torno do eixo e subitamente vêm as torções que trazem a imagem desse não-lugar, onde o horizonte não é mais assunto. Nesse instante aparecem rumores de um tempo no qual as pessoas andavam nas ruas sem a preocupação do ar que inspiravam, se abraçavam como se a expiração não fosse uma ameaça.
O gesto de deitar de costas no chão liberando o peso da cabeça, parece causar a sensação de uma escuta dilatada, uma espécie de abertura dos poros que expande o espaço dos ouvidos. A mudança de ângulo da visão, que difere do posicionamento vertical, também se revela. O celular cai, o ministro da saúde sai. Parece uma repetição. Há um espaçamento entre o corpo e o teto.
Estamos em maio de 2020, momento sensível onde os modos de existência estão sendo revistos e ressignificados a cada dia, mundialmente. O olho procura e realiza a amplitude do espaço não muito percebido quando se está de pé – uma massa invisível entre chão e teto. O céu está azul, as ruas estão vazias.
O olho, inquieto e sem rumo, se dirige para fora e para dentro, simultaneamente. Penso qual seria a perspectiva de futuro. Parece que assim, estendida ao comprido, corpo e cabeça se equilibram.
A música toca baixo na casa ao lado. As costas parecem estar mais aderentes ao chão, as escápulas ressoam o latido do cachorro da vizinha. Ninguém se escuta. Tudo se move e o corpo pode parar, o corpo precisa parar. A relação aprofundada do corpo com o chão leva a uma intimidade quase despudorada que convoca à produção de pensamento com as costas, com os cotovelos, com os pelos do braço.
Em tempos de pandemia em que a noção de futuro se transmuta, privados de planos e da ideia de projeto, me pergunto qual seria o modo de ação. O que se faz sem relógio? Como evadir do progresso e se entregar a uma espécie de involução que refute os pressupostos ditados a nós? Não seria tudo uma questão de cair e levantar, ou de presente e futuro? Assim, penso no que disse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em uma entrevista: “Os índios não acham que o futuro vai ser melhor do que o presente, como nós, e portanto, não se desesperam porque o futuro não vai ser melhor do que o presente, como a gente está descobrindo. Eles acham que o futuro vai ser ou igual ou pior do que agora, mas isso não impede que eles considerem isso com pessimismo alegre, que é o contrário do otimismo desencantado, que é um pouco o nosso.” (Viveiros de Castro, 2014)²
A casa transparece o folheado de um todo acumulado pela propagação do vírus que mudou a história. O futuro pode ser adiado, ele precisa retardar. O corpo se iguala ao pensamento no plano horizontal. Deitar aqui refere-se à acepção de deixar(-se) cair. Cair lentamente. Cair sem a expectativa de retorno. Cair muitas vezes, até pesar. Corpo e pensamento, sem hierarquia.
Isso nos serve para pensar algo que diz respeito à relação entre dança e filosofia, peso e pensamento, corpo e presença. Trata-se de acreditar que o pé pensa, o cotovelo pensa e que não há hierarquia em relação ao intelecto. A relação de horizontalidade entre cabeça e corpo pode incitar novas fruições, proposições de um outro giro do pensamento. O corpo pensa e o pensamento move. A cabeça é pesada demais, ela mesma é capaz de causar desequilíbrio do corpo. A cabeça pesa, o corpo pesa, o pensamento pesa e o horizonte não pode chegar. Você já pensou que a noção de horizonte é um guia para o homem que se estabelece na vertical?
O pensamento pesa o peso do significado, pesa a história. De acordo com o filósofo Charles Feitosa aquele que pensa e, portanto, não move, “não precisa do corpo para pensar e, inversamente, porque ele pensa muito, seu corpo acaba definhando, por absoluta falta de uso” (Feitosa, 2004, pg. 20)³. Mais do que isso, a sua imagem estaria, então, encerrada na cabeça e seu corpo seria doente. Imediatamente me vem a ideia de que o dançarino teria a perspectiva inversa. Em contrapartida, a imagem do dançarino estaria fadada a um corpo movente que não pensa, que não sabe falar, que não articula seu movimento ao pensamento e, com isso, sua mente definha. Tal prerrogativa vem se desfazendo ao longo da história. A imagem que pressupõe a dicotomia entre corpo e mente, pensamento e movimento, desmorona e assopra possibilidades à dança de filosofar e à filosofia de andar, correr, saltar, voar, assim falou Zaratustra.
Espaços são esburacados no corpo e no pensamento, na filosofia e na dança. O peso é, também, assunto caro à filosofia, e isso se propaga quando o pensamento move, quando o movimento penetra o pensamento ou, melhor ainda, quando corpo e pensamento não se distinguem mais e se dispõem vulneráveis um ao outro, enquanto toque, amalgamando-se em uma entidade indissociável e indistinta. O pensamento pesa exatamente o peso do significado, portanto este não pode ser nunca totalizado, não há sentido em tentar totalizá-lo. O significado, como parte de uma cadeia sígnica incessante, é um evento provisório, em trânsito, não um fim e por isso dotado de incompletude, de inacabamento, de um ainda por-vir.
Tudo isso encontra-se diretamente relacionado a uma certa noção de finitude, a um sentido moderno de finitude, não como negação do infinito ou privação do que é infinito, mas como exposição do limite de uma nova era atribuída à opacidade do significado, certa resistência ao próprio significado. Não seria o caso de tratar o corpo pesado, material, em oposição à metáfora do pensamento leve, imaterial. Trata-se de identificar uma tensão que se dá entre o leve e o pesado, entre deitar e estar de pé, entre horizontal e vertical, corpo e pensamento e, enfim, entre dança e filosofia para que o futuro possa ser adiado e o corpo se deite e se deixe cair mais uma vez.
¹ Bailarina e Colaboradora em processos de criação. Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO. Mestre em Artes Visuais pela UFRJ. Licenciada em Dança pela Faculdade Angel Vianna. Professora Departamento de Arte Corporal da UFRJ coordenadora do Projeto de Pesquisa LINHA. www.alicepoppe.com
² Viveiros de Castro, Eduardo. Diálogos sobre o fim do mundo. Entrevista de Eliane Brum ao Jornal El País. Acesso em novembro de 2014.
³ Feitosa, Charles. Explicando filosofia com arte. Ediouro, 2004.