CRÔNICA

 

 

Descobri recentemente que um velho hábito – vagar pelas ruas sem destino – é um verbo francês e também um substantivo em árabe. Ambas línguas, unidas por uma desastrosa colonização e por uma riqueza imensa cultural, que nos deixou como legado uma incrível gastronomia, arte, literatura e música. Nós, latino americanos, também herdeiros de mouros que dominaram partes da Península Ibérica, nos integramos sem dificuldades ao sabor francês e ao tempero que vem daquela terras. Cores, sabores e tristezas. O fado, com aquele triste e seco tom das cordas, de onde virá? E as cordas do chorinho? E o nosso Al-godão, Al-cool e Al-mofada?

A terra no sul da França é parecida as colinas de Ramallah. O azeite e as uvas vêm de terras secas, de montes com oliveiras e vales férteis. Foi lá que vi as paisagens de Renoir, as árvores tortas e galhos tortuosos, centenários. Ao ler “ Caminhos Palestinos” de Raja Shehadeh entendi melhor porque alguns povos cultivam a prática de caminhar sem rumo, de “ Sarha” como dizem em árabe, o costume libertador. Fazer uma sarcha significa vagar livremente, à vontade sem restrições.

Nesses dias de pandemia, que o vaguer francês está amedrontado, que o abraço está proibido e a proximidade física é uma agressão, me lembrei de todos esses nossos hábitos cotidianos que foram afetados por essa drástica mudança de comportamento causada pelo vírus. Muitos livros, filmes e obras artísticas nasceram desses tempos de isolamento – mas nem tudo é sofrimento e perda. Eu posso respirar melhor mesmo cercado de prédios no Bronx, recebi imagens das águas límpidas da baía de Guanabara, tenho lido muito mais, me alimento melhor agora em casa. Sou um privilegiado por poder ficar em casa – mas não foi a pandemia que criou a desigualdade. Ela nos mostra os efeitos de um mundo desigual, paralisado pelo medo.

Essas são anotações breves. Não quero escrever apenas sobre o que está acontecendo. Quero expressar a saudade dos hábitos comuns que desapareceram por essas semanas de primavera. Os meios de comunicação já nos alimentam com notícias, dramas e esperanças. Há relatos demais, não preciso dizer muita coisa. Lembrei da similaridade das práticas do “vaguer” e do “sarcha”, em que franceses e árabes se aproximam e se distanciam. Estamos todos nessa dança e jogo de sombras, fugindo de encontros, proibidos de vagar por aí. Como eu que vou e volto aos lugares – me sinto mais ainda afetado.

Meus dias agora são lembranças de caminhos por ruas do centro do Rio de janeiro, explorando as esquinas e a história que por ali passou, da alma que perambula pelo casario de Lisboa, contando as pedras dos chãos da velha Charleston, deslizando os pés pelas areias de Brighton Beach. Meu corpo é um caleidoscópio dos lugares por que passei. Trago os cheiros, as cores, os ruídos, todos na memória.

Quando passar, voltaremos a vagar pelas ruas de Paris e pelas colinas da Palestina, em busca de coisas que jamais saberemos, em busca de religiosidade, amores perdidos. A vida seguirá depois da pandemia, mas nós e a natureza não seremos os mesmos. A guerra nos deixa marcas, as pandemias também. As doenças graves e crônicas mudam nossa perspectiva de vida, de como olhar para as pessoas, aguça nossa empatia – ou revela nossas maldades, egoísmos e superficialidade. Sim, voltaremos a vagar.

Desde Nova York, no epicentro da pandemia.