Querida Julie, muito importante tem sido o intenso trabalho por você desenvolvido, nestes últimos meses, de organização e divulgação da literatura indígena brasileira. A quarentena por coronavírus caiu justamente em abril, que para os parentes que moram nas cidades tem se tornado o mês propício para promover e participar das mais variadas atividades culturais. Achei genial sua decisão de utilizar os canais telemáticos para assegurar, de alguma forma, a continuidade do Abril Indígena. A iniciativa pode não ter suprido os prejuízos econômicos produzidos pela quarentena, porém deu visibilidade aos escritores que você entrevistou, difundiu seus pensamentos, valorizou suas produções; portanto acredito que isso, pelo menos, os gratificou e animou bastante. As pessoas que acompanharam as entrevistas, que nem eu, só podem agradecer, pois tivemos acesso a uma vasta gama de reflexões, informações, subsídios, sugestões.
Há anos acompanho o movimento dos escritores indígenas brasileiros. Meu interesse foi despertado por uma entrevista que Daniel Munduruku concedeu em janeiro de 2013 a Fernanda Faustino para a Global Editora. As palavras do filósofo e escritor munduruku capturaram minha atenção. Achando elas profundas e originais, as guardei dentro de mim até que, um belo dia, me obrigaram a traduzi-las e divulga-las. A versão em italiano da entrevista foi publicada em outubro de 2013, no número 53 da Sagarana, revista de literatura fundada na Itália pelo saudoso escritor carioca Júlio Monteiro Martins. O projeto coletivo idealizado por Daniel Munduruku, que tem motivado vocês autores indígenas a escreverem suas histórias e as histórias de seus povos, é um marco fundamental na formação da literatura indígena contemporânea brasileira. Alguns meses atrás comecei a pensar que aquilo que estava faltando era uma pessoa que tivesse o coração generoso e a mente brilhante do Daniel para valorizar a produção das mulheres indígenas, produção bem menos visível e organizada daquela dos homens. Aí chegou a notícia de sua colaboração com a Livraria Maracá, especializada em literatura indígena, na criação da necessária secção dedicada às escritoras e intitulada “Leia mulheres indígenas”.
Quero concluir esta carta evidenciando mais uma vez, querida Julie, que acho seu trabalho fundamental, importante demais. A palavra cria. Modificando os termos habitualmente usados, estamos modificando a própria realidade. O Brasil é um país multiétnico, evidência essa consagrada na Constituição de 1988, cuja elaboração os povos indígenas participaram criativamente através de seus representantes. Na época muitos deles não utilizavam a modalidade da escrita para afirmar valores, porém seus pensamentos cristalinos, suas reivindicações firmes, suas palavras orais, fizeram com que direitos étnicos fossem assegurados. A reconstrução da identidade nacional passa agora pela luta de vocês pensadores, escritores e artistas, pois sem os indígenas o Brasil não existe.
Loretta Emiri, 16-05-2020