CRÔNICA

 

 

Foi em um verão, no início dos anos 80, quando tinha 16 anos, que aprendi a reconhecer um santinho de funeral. Meu pai entrou em casa suado, cansado após outro enterro. Era o terceiro naquele ano. Os amigos do bar estavam desaparecendo, consumidos pelo álcool e solidão.

– Me promete uma coisa? Me perguntou com uma caixa na mão que havia retirado do armário. Olhei com aquele interesse que adolescentes possuem quando estão escutando música.

– Claro pai.

Seu Adalberto despejou no sofá a caixa repleta de santinhos, pequenos impressos com fotos e orações dedicados a mortos.

– Promete que não vai deixar ninguém fazer isso comigo? A coleção era ampla: santinhos coloridos, preto em branco, orações no verso, lembranças eternas.

Seu Adalberto não queria virar peça de coleção de nenhum amigo.

– Olha, se o Vizeu pedir alguma foto minha, não dá tá?

Vizeu era seu mais constante amigo de copo, vizinho e segundo minha mãe o único autorizado a entrar lá em casa. A rotina do meu pai após a aposentadoria era sair de manhã e comprar pão e leite, voltar para casa por alguns instantes e voltar ao bar da amendoeira, um boteco na esquina, onde com Vizeu e outros gastavam o tempo bebendo e falando sobre futebol, mulher e baralho. Vizeu tinha três filhos e especialmente com suas duas filhas eu costumava conversar. Lamentamos mutuamente nossos destinos, compartilhamos nossas tragédias.

Durante muitos anos meu pai e seu Vizeu cumpriram a rotina de bar e cemitérios, “enterrando” seus amigos de bar – 0 Alcoolismo é uma doença que levou grande parte de sua geração. Todos seus irmãos foram vítimas do vício que consumia os salários e nos causaram profundos problemas familiares. Todos que frequentavam aquele bar sabiam que estavam na lista dos santinhos. De forma bem humorada meu pai encarava aquilo como uma disputa. Cada vez que alguém passava mal e era hospitalizado como ele foi várias vezes, os boatos corriam.

– Dessa vez ele não volta, pode ir preparando o santinho.

Na coleção meu pai apontava: esse aqui disse que eu não duraria um ano. Morreu. Esse outro “enterrei”. Não sei se rolava aposta mas era bem provável já que era comum os bolões e o espírito competitivo entre os velhos. Só me lembrei da promessa quando voltei do funeral dele, em 1983, um verão escaldante e que alguém na rua me deu um santinho com sua foto.

– Filhos da puta, comentei, não consegui evitar.

Nos mudamos daquele lugar nos meses seguintes e retornei poucas vezes para visitar alguns amigos. A casa do seu Vizeu estava vazia e fechada quando estive lá uns 15 anos depois. Minha mãe viveu por mais três décadas e também preferiu esquecer aquela rua. Eu me perdi pelo mundo, morei em diferentes países. Nunca mais vi as meninas e desconheci o paradeiro da maioria dos filhos do bar.

Há um mês atrás fui a um evento em uma universidade para uma palestra e conheci vários brasileiros. Todos pertencem a um grupo de debate e atividades políticas e identificado, aceitei o convite para um bar após o evento. Na mesa éramos quinze pessoas, a maioria residente como eu, em Nova York. Me aproximei na conversa com Andréia, uma pessoa que me pareceu simpática e divertida.

– Anota ai meu telefone, vamos nos encontrar mais vezes, disse ela.

– Qual seu nome ? Andreia Vizeu disse. Eu parei para pensar por alguns segundos.

– Nossa, que coincidência, meu pai tinha uma grande amigo com esse sobrenome ! Ela sorrindo me disse “Só falta ser na rua Cananéia em Oswaldo Cruz”. Nos olhamos e ficamos espantados com nossa descoberta.

Andreia é sobrinha do velho Vizeu, prima das meninas, a quem reencontrei nos dias seguintes pelo facebook. Quase quatro décadas depois a milhares de quilômetros o destino me colocou de frente as lembranças daquela caixa de santinhos, do bar da amendoeira, do seu Vizeu. A vida é um emaranhado de destinos, engenharia de cabos e conexões que nos amarram e nos afastam e voltam a nos conectar tempos e distâncias depois. Fiquei feliz em saber que as meninas hoje estão bem, são mães dedicadas, que tudo que passamos com os velhos não nos deixou marcas negativas. As vezes fico triste pensando no quanto ele poderia ter vivido, o quanto nossas vidas poderiam ter sido melhores – mas é importante ter na lembrança os momentos em que o humor e a alegria foi mais importante, como aquela caixa de santinhos, como todos os verões que descíamos a rua para ir a praia, com o sabor da groselha e delícia de tantos carnavais.