Por Catarina Leal/Jornal Mapa
Desde 6 de Abril, o centro social Disgraça, localizado na Penha de França, em Lisboa, disponibiliza mais de 40 refeições gratuitas, na sua Cozinha Solidária Auto-gerida.
O centro social Disgraça abriu portas em 2015, na Rua Penha de França n.º 217. São três andares com amplos espaços, bem distribuídos, e um andar de loja, logo à entrada, onde podemos encontrar a livraria Tortuga, um espaço não-comercial de distribuição de publicações. Descendo as escadas para o andar de baixo, passamos por armários organizados com roupa e outros objetos, que compõem uma loja grátis. Nesse mesmo andar há ainda a biblioteca BOESG (Biblioteca dos Estragos da Sociedade Globalizada), uma sala de serigrafia e casas-de-banho sem género. Continuando a descer as escadas, chegamos ao andar onde está o espaço reservado à cozinha e a refeições comunitárias, e onde são também organizados debates e projeções de filmes. Aqui há ainda uma porta que dá para um pátio ao ar livre, cheio de flores e plantas, que tem de fechar cedo, para não incomodar a vizinhança. No piso inferior a este, existe um espaço reservado a oficinas, ensaios e concertos, onde vão regularmente bandas diy de todo o mundo.
Com todo este espaço e legado organizativo, perante a pandemia da Covid-19, a Disgraça decidiu inaugurar um novo projeto colaborativo: a cozinha solidária auto-gerida. Esta cozinha tem preparado mais de 40 refeições gratuitas para take-away às segundas, quartas, sextas e domingos, das 12h às 15h. Algumas das refeições são distribuídas na entrada da Disgraça e outras são distribuídas por outras zonas da cidade, a pessoas em situação de sem-abrigo.
O jornal Mapa esteve à conversa com as pessoas que estão a participar nesta cozinha solidária auto-gerida, para conhecer melhor o projeto, para além da informação que está disponibilizada nas suas redes sociais. A primeira publicação que escreveram sobre o assunto termina com o apelo: «Que a solidariedade seja viral e intemporal.»
–O que motivou a iniciativa?
–Desde que o confinamento social assolou o nosso quotidiano, rapidamente se tornou claro que tempos desafiantes estavam a chegar, mas, como é de esperar, na trama capitalista nem as oportunidades nem as dificuldades se revelam da mesma forma e ao mesmo ritmo para toda a gente. As vulnerabilidades estão expostas e em crescimento exponencial, colocando muita gente em situações de angústia e de desamparo. A ideia de uma Cozinha Solidária Auto-gerida vem como forma de experimentarmos modos de resistências e relações comunitárias através do apoio mútuo e reconfiguração do cuidado face à agudização da guerra social.
–A quem é dirigida?
–A todas as pessoas que queiram ter acesso a uma refeição nutritiva e saborosa.
–Como tem corrido?
–Estamos satisfeitas com desenvolvimento do projeto. Temos conseguido distribuir entre 30 a 45 refeições a moradores de rua e, aos poucos, o take-away na entrada do espaço também consegue alcançar cada vez mais gente. Começamos com dois dias por semana, agora já conseguimos chegar aos quatro. Entretanto, tivemos de nos habituar às novas dinâmicas na cozinha e no espaço em geral, com a introdução de uma série de medidas de higiene e de segurança, assim como cozinharmos com um número tão reduzido de pessoas ou até passar a cozinhar de manhã. Estamos atentas à evolução das necessidades e dispostas a dar uma resposta coletiva de apoio, dentro das nossas possibilidades. Este projeto tem permitido criarmos novas formas de nos relacionarmos com a vizinhança, com outros coletivos e até entre nós.
–Como se organizam?
–Às segundas, quartas, sextas e domingos, das 12h às 15h, servimos refeições gratuitas para take-away, na entrada da Disgraça. Durante o mesmo período, uma outra equipa percorre, de bicicleta ou a pé, a zona da Almirante Reis até ao Rossio, e por vezes Santa Apolónia, para distribuir refeições e água a pessoas em situação de sem-abrigo. Durante o take-away há um ponto de recolha de donativos de diferentes bens alimentares que estão a ser usados para mais refeições, permitindo assim um fluxo de apoio constante. O projeto é composto por várias equipas, organizadas de forma modular e independente, em pequenos grupos de afinidade, com o propósito de reduzir ao máximo a possibilidade de contágio. Desta maneira tentamos garantir a segurança das pessoas que vêm à entrada do espaço, das que contactamos na rua e de todas as que habitam o projeto, permitindo a continuidade deste, enquanto for necessário.
–Têm tido algum problema por causa das restrições impostas pelo estado de emergência?
–Pelo menos não de forma direta. No início tínhamos algum receio da reacção de alguns vizinhos, visto que o controle descabido do que se passa na rua e as vontades de denúncia andam inflamadas nos grupos de vizinhos das redes sociais, alimentadas pela aceitação absurda de que se deve resolver um problema de saúde pública através da imposição da supressão de liberdades. Mas desde que começamos o projeto, o feedback dos vizinhos tem sido bastante positivo, muitos já apoiaram das mais diversas formas, alguns até se ofereceram para integrar as equipas.
–Como é que o vosso centro social, a Disgraça, está a subsistir nestes tempos incertos?
–Como a maioria dos espaços coletivos, deixamos de ter as nossas atividades regulares e a nossa forma de sustento ficou comprometida. Estamos em negociações para poder reduzir a renda para que seja sustentável mantermos o espaço só através de donativos à distância, enquanto não for possível de outra forma.
–E por último, numa tentativa de desambiguar o significado de «solidariedade», tantas vezes confundida com «caridade» e assistencialismo, o que é para vocês ser solidária?
–É certo que há muita confusão entre estes conceitos, e em certas situações práticas é até desafiante perceber onde se encontra a linha que os separa, mas é importante perceber que os mecanismos por trás são bem distintos. A caridade pressupõe uma verticalidade, uma índole paternalista e classista, que encontra o sentido da sua existência na ideia que os mais abastados ajudam os que são menos, descensionalmente e sem nenhuma reflexão crítica contra o sistema que perpetua estas desigualdades, muitas vezes só por um certo alívio de consciência ou por propaganda. Nós encontramos afinidade no apoio mútuo, que se baseia em mecanismos de entre-ajuda, de organização de atos solidários que reforçam a capacidade de coesão e de autonomia coletiva, o que permite ampliar formas efetivas de resistência. Criamos uma cozinha neste formato como resposta a uma situação de crise, que promete prolongar-se e complicar-se, mas com a convicção que as demonstrações solidárias devem assentar numa matriz não hierárquica, que deve ter em conta a importância de construir condições favoráveis e destruir as que atrapalham, para que todas possamos ter as mesmas oportunidades para prosperar, participar e existir.
–Como se pode apoiar?
–Há diversas formas:
- Trazer donativos de bens alimentares nos horários do take-away (se fora deste horário, combinar previamente)
- Contribuições monetárias:iban:
PT50 0007 0000 0000 4712 0672 3
paypal: disgraca@riseup.net
mbway: 966578789 - Divulgação do projeto, para que chegue a quem mais precisa
- Integrar uma equipa de distribuição
- Espalhar formas de apoio mútuo e de cuidado permanentes através da aplicação direta nas nossas relações, casas, bairros, todos os espaços e dimensões das nossas vidas.