RICARDO QUEIROZ
Bibliotecas públicas sobrevivem às crises porque, apesar de todos os ruídos e intempéries que elas sofrem em sua gestão, nos conceitos equivocados que as norteiam e das decisões políticas desastrosas, elas permanecem de portas abertas
Quanto mais a onda, reacionária conservadora se alastra, mais as bibliotecas públicas se apresentam como um dos espaços de respiro da sociedade. E não é pelo papel missionário e beletrista que está enraizado no senso comum mais canhestro, nem pelo caráter meritório da leitura como salvação de qualquer coisa.
A biblioteca pública se sustenta como um lugar de possibilidades, de produção de conhecimento e como parte importante da esfera pública. Esse introito pode ser idealista ou paradoxal, mas algumas convicções me aproximam dele.
As bibliotecas públicas sobrevivem às crises porque, apesar de todos os ruídos e intempéries que elas sofrem em sua gestão, nos conceitos equivocados que as norteiam e das decisões políticas desastrosas, elas permanecem de portas abertas ao público em geral. A porta aberta é seu principal ativo, o não impedimento e a não discriminação são as suas ferramentas mais poderosas.
O espaço público de porta aberta é uma antítese em tempos da racionalidade neoliberal.
Promover a desmoralização do espaço aberto e gratuito (fruto dos impostos) é o canto de salmos dos filhotes de Milton Friedman espalhados nos organismos governamentais e nas instituições decisivas para formação da média de opiniões.
A biblioteca pública é o espaço que acolhe quem, de forma consciente ou não, resiste a se adaptar a lógica dos espaços privados, ou de frequentar aqueles que são fruto do poder destruidor da privatização da vida.
É certo que o presente ataque dessa racionalidade neoliberal encontra acolhimento e identidade no conservadorismo que direciona os caminhos da biblioteca pública há décadas, e que produz as principais mazelas que dificultam e impedem a sua abertura diária.
É importante discorrer, ainda que brevemente, sobre esse conservadorismo histórico que impera na média das gestões de biblioteca pública, antes de falar da sua inacreditável potência e das formidáveis possibilidades que apresentam um equipamento aberto ao público, nesse ano de 2020 das privatizações e das portas fechadas.
Uma pesquisa recente feita pelo Instituto Gallup nos EUA, apontou a biblioteca como o espaço cultural mais frequentado, seguida pelo cinema. Essa informação não é meramente ilustrativa, tem que ser olhada de forma aguda, sobretudo em tempos de exacerbação do acesso via digital (que é em parte atendido pelas bibliotecas públicas) e pela desqualificação do conhecimento e o anti-intelectualismo (combatidos silenciosamente e com muita dificuldade por todas as bibliotecas públicas possíveis).
A pesquisa citada revela que a dimensão pública da informação e da construção do conhecimento não é um dado anacrônico como alguns entusiastas da privatização querem alardear.
Antes de tudo, é preciso ter a consciência que quando falamos em biblioteca pública, estamos falando de uma grande variedade de bibliotecas públicas, que possuem perfis e históricos diversos, e que enfrentam diferentes contextos que constroem ou desconstroem seus horizontes. Cada cidade, dentro de cada estado possui bibliotecas públicas dos mais variados tons, que na maioria das vezes enfrentam barreiras materiais e imateriais em comum, que impedem o seu uso diversificado e democrático.
Eu estou falando de gente mal preparada no atendimento, burocracia excessiva para os usos, acervos inacessíveis, mediações inexistentes, ausência de política de formação de acervo, espaços improvisados e inadequados, etc. O fruto de décadas de projetos interrompidos ou apenas imaginados, da ausência de políticas públicas, de desastrosas intervenções “especializadas”, prepotentes e centralizadas, que não ouvem e não são ouvidas, modificando tudo para deixar tudo do mesmo jeito ou pior.
Décadas de precariedade, de improviso e das ausências que justificam a paralisação. Não deve haver idealismo ingênuo, nem o discurso suicida do “fazemos muito com muito pouco”, biblioteca precisa de recursos, de política pública específica e de publicização ágil e honesta dos serviços existentes.
No entanto, os maiores impedimentos não são justificados por essas barreiras visíveis no cotidiano ou nessas ausências gritantes, há uma força muito pior e devastadora, e ela reside no conservadorismo oculto e sorrateiro que nem sempre se apresenta como tal, que se finge de morto, muitas vezes se apresenta como moderno e inovador, mas se sustenta na inação, na censura, na resistência às mudanças como instrumento de controle e manutenção de poder, de conservar o que está morrendo diariamente.
São essas malditas filigranas reacionárias, que muitas vezes se unem à falta de projeto, ao investimento insuficiente e ao orçamento incerto e, escondidas na pretensa prudência, na pretensa sensatez ou no pretenso rigor moral, geram ou alimentam a maioria dos anacronismos e dos impedimentos descritos acima.
Ora, eu comecei de forma otimista o texto quanto à biblioteca pública e fiquei enganchado nas mazelas? Me propus a escrever um texto falando das qualidades da biblioteca pública e me escondi na choradeira e no pessimismo? Pelo contrário, o que inspira mais otimismo e esperança numa biblioteca pública, é que, apesar de todos esses problemas descritos, e de tantos outros que foram esquecidos nesse texto, ela ainda perdura e se apresenta como um lugar de múltiplas possibilidades e potencialidades de se confeccionar o comum, de promover encontros e de facilitar a construção coletiva do conhecimento e principalmente, resiste aos constantes ataques conservadores.
Há uns meses, conversava com um camarada de trajetórias profissionais e militantes, sobre escolhas na vida pessoal, política e profissional e me ative por alguns minutos a falar das minhas próprias escolhas. Biblioteca pública, políticas públicas, espaços públicos, construção do comum, trabalho coletivo, compartilhamento de espaços e lugares. Por alguns segundos, me abstrai da conversa e fiquei pensando sobre em qual outro lugar eu poderia ao menos desejar estar naquele momento, a biblioteca se fixou como a principal referência. Se foi um acidente ou uma escolha, não vou perder tempo em tentar saber, o fato é que estou.
É importante estabelecer que não penso na biblioteca pública como um espaço isolado, refratário à lógica de destruição neoliberal, como um ente mitológico que vence o fogo do dragão da destruição do que é público. Antes, penso a biblioteca como um lugar vivo, ai sim se destacando de mero espaço, a ser cuidado e reivindicado pela população como espaço de direito, de acesso à leitura e à informação, à fruição e ao compartilhamento. O peso dado à escola pública, aos espaços da saúde pública, é o mesmo que deve ser dado à biblioteca pública, dada à complementaridade e ao dialogo que idealmente essas instituições deveriam estabelecer de maneira permanente.
É preciso dizer com firmeza para aqueles que por ignorância, prepotência ou projeto, entendem a biblioteca pública como uma instituição anacrônica, que elas seguem vivas e atuantes, que elas existem e resistem ao pretensamente novo e ao velho que as ataca de fora e muitas vezes de dentro de suas esferas. O bibliotecário das públicas não é missionário, nem redentor, é sobretudo um agente político, naquilo que a política tem de mais necessário à sociedade, como um atuante da pólis.
Nesse momento de avanço da súcia neoliberal é mais do que necessário citar trechos de uma conferência que a jornalista e ativista, Naomi Klein realizou em 2003 na Associação Canadense de Bibliotecas chamada ” Por que ser um bibliotecário radical”:
“Quando olho para esta sala, vejo pessoas que representam valores que são distintamente diferentes daqueles que atualmente governam o mundo, são eles:
– o conhecimento (o conhecimento em oposição à mera coleta de informações).
– espaço público (em oposição à mera coleta de informações).
– o compartilhamento (ao contrário da compra e venda).
Ser bibliotecário hoje significa ser mais que um arquivista, mais que um pesquisador, mais que um educador – significa ser um guardião dos valores em conflito do conhecimento, espaço público e compartilhamento que animam sua profissão”.
Parafraseando Naomi, é o momento perfeito para os bibliotecários de biblioteca pública radicais, que radicalizem o que é público, que radicalizem o que é compartilhado, que radicalizem a construção do comum, para fazer frente ao avanço da violência que se traduz se em ignorância, obscurantismo e ataques à ciência e ao conhecimento, mas principalmente, para fazer entender que principalmente nesse contexto, radical é o reverso de extremista.