Por Maíra Mathias e Raquel Torres¹
Começa campanha liderada por Damares Alves. Pautada pela moral, responsabiliza adolescentes por gravidez e desconsidera contraceptivos e conhecimento corporal. Leia também: cerveja contaminada pode ter envenenado mais
O plano de Damares
Em meio a imagens de jovens em situações como encontros de amigos, prática de esportes e formatura, um locutor fala: “Gravidez não combina com adolescência e traz consequências para a vida toda. Informe-se, reflita, converse com sua família”. Trata-se, é claro, da publicidade em prol da abstinência sexual prometida pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Ao custo de R$ 3,5 milhões, a peça será veiculada ao longo de fevereiro em TV aberta, internet e outdoors sem conter uma única menção à camisinha e outros métodos de prevenção. O material recomenda aos jovens que “planejem seu futuro e procurem orientações em uma unidade de saúde” – jogando a responsabilidade dessa informação no colo dos profissionais de uma cada vez mais frágil atenção primária. A campanha ‘Tudo Tem Seu Tempo’ foi lançada ontem em parceria com o Ministério da Saúde.
A peça publicitária deve servir de pontapé inicial para uma política mais explícita que está sendo chamada de Plano Nacional de Prevenção à Iniciação Sexual Precoce. Inclusive, de acordo com a coluna de Mônica Bergamo, a ministra planeja implantar seu plano primeiro no Nordeste e no Norte do país. Damares quer que três cidades — duas do Nordeste e outra, de preferência, na Ilha de Marajó, no Pará – sirvam de laboratório.
O Ministério afirma ainda que vai contratar consultorias nacionais e internacionais “para que a política pública seja construída”. Entre as ações planejadas estão a distribuição de cartilhas nas escolas e propostas de músicas que “não cantem só a exaltação do sexo para as novinhas”, nas palavras da ministra. Especialistas e o próprio senso comum vêm alertando que o governo está, mais uma vez, se distanciando da realidade brasileira – em busca de manchetes de jornais e aceno a certos nichos de eleitores. “A mensagem subliminar é que a gravidez é uma responsabilidade da mulher. O foco é nela, mas ela não teve o bebê sozinha”, observou Silvana Maria Quintana, coordenadora científica de obstetrícia da Associação de Obstetrícia e Ginecologia de São Paulo, em entrevista ao Estadão, que defende foco nos métodos contraceptivos e no conhecimento corporal.
“A campanha fala por si. Acho que ela vai motivar. Quando fala ‘adolescência primeiro, gravidez depois’, e fala das consequência, ela vai motivar uma série de debates, como eu previno. Um dos debates que vai ter é sim ‘eu me reservo ao direito de ter atividade no momento em que achar’ melhor. Se você quiser entender isso como abstinência… Eu não entendo como abstinência. Eu entendo como comportamento mais responsável”, desconversou Luiz Henrique Mandetta, durante o lançamento. O ministro da Saúde, que estava ao lado de Damares Alves, anunciou que 570 milhões de preservativos serão distribuídos esse ano. Para ele, “não há nenhuma política que seja única”. “A comportamental é importante sim, e ela nunca foi feita”, afirmou. Citando dados da Pasta que dão conta de que o Brasil registra 434 mil casos de gravidez na adolescência todos os anos, Mandetta defendeu a campanha e disse que foi baseada em dados que apontam que esse grupo é pressionado para o início da vida sexual.
Quarentena à brasileira
Ontem, o Ministério da Saúde anunciou que o governo pretende decretar emergência sanitária no Brasil mesmo sem o país ter confirmado caso do novo coronavírus. Por enquanto, há 14 casos suspeitos por aqui, registrados em São Paulo (7), Rio Grande do Sul (4), Santa Catarina (2), Rio de Janeiro (1). Outros 13 já foram descartados.
Além disso, o presidente Jair Bolsonaro acatou sugestão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) sobre a forma mais rápida de regular a quarentena planejada pelo governo para os brasileiros que serão resgatados de Wuhan. Ao invés de uma medida provisória, um projeto de lei será enviado ao Congresso – evitando certos trâmites das MPs, que precisam passar por uma comissão especial no parlamento, onde um relatório é produzido e esse texto é que vai à votação em plenário na Câmara e Senado.
A quarentena será de 18 dias, segundo informou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta – embora o período tradicional seja de 14 dias. A expectativa é que os brasileiros que estão em Wuhan sejam trazidos de volta até sexta-feira. O governo havia anunciado que planejava colocá-los em uma área militar na cidade de Anápolis, em Goiás. O prefeito do município convocou uma coletiva de imprensa para denunciar que nenhum contato sobre o assunto foi feito com as autoridades locais.
Os aspectos logísticos da quarentena são assunto de uma reportagem do Estadão. Segundo o infectologista Edmilson Migowski, da UFRJ, não adianta juntar os brasileiros vindos da China num só local porque se uma delas estiver infectada, há o risco de passar o vírus adiante para os companheiros de confinamento. Já o também infectologista Estevão Portela, da Fiocruz, lembra que é preciso pensar em tudo, até onde os resíduos dessas pessoas serão descartados. Para ele, uma alternativa ao confinamento em grupo seria enviar essas pessoas para suas casas, instruindo as famílias a usarem máscara, não receberem visita e não saírem de casa. Profissionais de saúde seriam chamados no caso de aparecimento de sintomas.
Segundo dados divulgados pelas autoridades chinesas na noite de ontem (manhã de terça na China), o número de mortos em decorrência do coronavírus subiu para 425. Outros 3.235 casos de infecção pelo coronavírus foram confirmados, num total que já chega a 20.438.
E parece um episódio de Black Mirror: circularam nas redes ontem vídeos que mostram como o governo chinês vem usando drones para patrulhar áreas no país. A máquina circula por ruas filmando tudo e envia as imagens para um centro com oficiais que, através de microfones do drone, mandam as pessoas usarem máscaras e até as despacham para casa. “Jogar mahjong do lado de fora é proibido durante a epidemia. Você foi flagrado. Pare de jogar e deixe o local o mais rápido possível”, diz um oficial em um dos vídeos. E ontem foi inaugurado o hospital que a China construiu em dez dias para lidar com o vírus. Aqui, a obra em imagens.
A segunda morte pelo vírus foi confirmada fora da China. Aconteceu em Hong Kong. A vítima, um homem de 39 anos, havia visitado Wuhan em 21 de janeiro e começou a apresentar sintomas dez dias depois. O governo decretou o fechamento parcial de fronteiras com a China – mas parte dos trabalhadores dos hospitais públicos de Hong Kong entraram em greve ontem, exigindo o fechamento completo.
Estava tudo errado: no dia 30 de janeiro, um artigo publicado no New England Journal of Medicine confirmou que o vírus de Wuhan poderia ser transmitido por pessoas assintomáticas – isso já havia sido sugerido por um trabalho chinês, mas pela primeira vez havia evidências claras. Acontece que a informação estava incorreta. O artigo era sobre as quatro primeiras pessoas infectadas na Alemanha após terem contato com uma chinesa que inicialmente estava sem sintomas. Mas o Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo alemão, escreveu uma carta ao periódico afirmando que os pesquisadores concluíram o estudo sem conversar com a mulher chinesa. Já o RKI e a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar da Bavaria conversaram… E ela contou que estava, sim, com sintomas na época da visita à Alemanha: tinha cansaço, dores musculares, e tomou paracetamol.
Janela maior?
Subiu para seis o número de mortes que aconteceram por intoxicação por dietilenoglicol, de acordo com a secretaria estadual de Saúde de Minas Gerais. Até sexta-feira, quatro óbitos haviam sido confirmados. A suspeita é de que as vítimas tenham ingerido a substância ao consumir cervejas da empresa Backer. No total, o Ministério da Agricultura já identificou a presença de etilenoglicol ou dietilenoglicol em 41 lotes de cerveja.
E há quem suspeite que a janela de contaminação possa ser mais ampla do que os casos investigados até agora, de outubro de 2019 para cá. É o caso da família de Clóvis Reis, 69 anos, que consumiu a cerveja Belorizontina dias antes de ser internado com dores nas pernas, nas costas, náusea e diarreia, sintomas que evoluíram para um quadro de insuficiência renal, parada cardiorrespiratória, dentre outras complicações. A internação aconteceu no dia 23 de maio do ano passado e a alta do hospital apenas em 14 de janeiro. A família reportou às autoridades a suspeita para que os laudos médicos de Clóvis possam ser comparados aos das vítimas confirmadas da intoxicação.
Mudanças à vista
O governo Jair Bolsonaro planejar mudar a regra para permitir que a importação de medicamentos para o SUS seja autorizada automaticamente, eliminando análise da Anvisa, que dá um registro sanitário atestando a qualidade das drogas. A mudança valeria apenas para compras do governo federal em situações excepcionais, como quando é decretada uma emergência de saúde pública ou há falta do produto no mercado local. A condição é que o Ministério da Saúde se responsabilize por todas as etapas do processo.
Hoje, a Pasta pede autorização da Anvisa para a importação de medicamento que não foi avaliado ainda no Brasil. A agência reguladora analisa uma série de documentos e se manifesta sobre o pedido do governo em dez dias. De acordo com apuração do Estadão, integrantes da cúpula do Ministério da Saúde afirmam, reservadamente, que a mudança evitaria atrasos com burocracias da Anvisa para importações urgentes. Já ex-diretores da agência e a indústria farmacêutica ouvidos pela reportagem são críticos à sugestão, alertando que a nova regra traz riscos à população e pode abrir brecha para o governo driblar preços de medicamentos ofertados no Brasil.
Nada de vacina
Pesquisadores anunciaram ontem o fim de um ensaio clínico para uma vacina contra o HIV na África do Sul. Havia esperança, porque era a única vacina que já mostrado alguma eficácia contra o vírus, ainda que modesta: na Tailândia, ela foi considerada 31% eficaz. Os cientistas reforçaram o composto, o adaptaram ao subtipo de HIV mais comum na África do Sul, e desenharam um estudo era grande, envolvendo 5,4 mil pessoas que tomariam seis doses em 18 meses, a partir de 2016. Mas, no mês passado, os monitores descobriram que não houve diferenças significativas no número de infecções entre os dois grupos.
Lá fora e aqui
Níveis de emprego atingiram recorde na Grã-Bretanha, com o desemprego mais baixo desde meados da década de 1970. Mas essa notícia só é boa pela metade. Um relatório da Health Foundation afirma que 36% dos trabalhadores – mais de um terço deles – está em empregos precários, mal remunerados ou insatisfatórios. O documento ressalta como esse tipo de emprego acarreta riscos à saúde: 15% dos trabalhadores nessa condição dizem ter saúde de baixa qualidade, em comparação com 7% em bons ambientes de trabalho. A matéria do Guardian lembra que essa descoberta tem como pano de fundo o crescimento da pobreza das pessoas que trabalham. Segundo outro estudo, publicado na semana passada pela Resolution Foundation, quase 70% dos adultos em situação de pobreza na Grã-Bretanha vivem em famílias em que ao menos uma pessoa está empregada. Há 20 anos, eram 50%.
É bom lembrar que a reforma trabalhista brasileira se inspirou na britânica e tem a mesma tendência. Neste episódio do podcast Guilhotina, de janeiro, a juíza do trabalho Patrícia Maeda comenta as semelhanças entre os dois modelos. Ela estudou a situação por lá e conta como os contratos de trabalho intermitentes podem até fazer o emprego crescer – mas às custas de generalizar o subemprego.
Controversa
No início do ano, cientistas colombianos comemoraram a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação no país. Mas o nome de Mabel Torres, a nova ministra, é no mínimo controverso. Por um lado, seus defensores confiram que ela possa defender algumas das regiões mais marginalizadas do país, como a sua própria, El Chocó. Mas há muitos cientistas preocupados com o que seria uma falta de rigor científico da ministra. Segundo a Nature, ela tem feito alegações sobre as propriedades de combate ao câncer de um extrato de conchas que ela mesmo faz. Seu experimento foi feito com 40 pacientes que supostamente entraram em remissão após tomar a bebida durante alguns meses – mas não foi feito um ensaio clínico sob metodologia científica, o experimento não foi aprovado por um comitê de ética e os resultados nunca foram publicados em uma revista com revisão de pares. “Decidi não publicar como um ato de rebelião”, disse Torres em entrevista ao jornal El Espectador em 11 de janeiro. “A mensagem que envio é que precisamos começar a reconhecer e valorizar outros tipos de conhecimento”, afirmou em outra entrevista, em rádio.
Resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia 4 de fevereiro