Primeira noite dos desfiles do Grupo Especial no Carnaval carioca teve minorias como protagonistas e críticas políticas
Brasil de Fato
Nara Lacerda
As escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro ecoaram o grito das minorias na Sapucaí no primeiro dia de desfiles, neste domingo (23). Do Jesus Cristo nascido na favela, apresentado pela Mangueira, aos símbolos do Candomblé, trazidos pela Grande Rio – que cantou a história do pai de santo Joãzinho da Goimea – os desfiles não se furtaram em lembrar dos pobres, mulheres, negros e indígenas.
Com críticas diretas à devastação ambiental, a Estácio de Sá abriu a noite com o enredo “Pedra”. Os impactos da mineração foram lembrados no carro alegórico “Em Busca do Ouro” que retratou a situação dos trabalhadores do garimpo.
O garimpo traz o ouro a cobiça dos mortais/ Peneirar, peneirar/ Devastando a natureza no Pará dos Carajás
Crenças de matriz africana
A luta e o empoderamento das mulheres foram o fio condutor do desfile da Unidos do Viradouro, por meio da história das ganhadeiras de Itapuã. O enredo “Alma Lavada” homenageou as trabalhadoras que lavavam roupas em Salvador (BA) e se transformaram em referência cultural com suas canções sobre o cotidiano das pessoas simples da capital baiana.
Alguns dos momentos mais emocionantes da noite foram permeados por referências às religiões de matriz africana. O samba enredo da Viradouro, que já no primeiro verso faz uma saudação a Oxum, foi entoado pelo público já nos primeiros minutos do desfile da escola.
Repleta de elementos do Candomblé, a apresentação da Viradouro homenageou a orixá das águas doces em diversos carros alegóricos, fantasias e destaques. O carro da Comissão de Frente trouxe a atleta Anna Giulia nadando em um grande aquário.
Única negra na equipe de nado sincronizado da seleção brasileira, ela vestia uma cauda de sereia dourada, também um homenagem a Oxum. O tanque foi preenchido com água mineral, por causa da crise da água no Rio de Janeiro.
A Acadêmicos do Grande Rio também levou a espiritualidade de matriz africana à Sapucaí. A escola desfilou a história do pai de santo Joãozinho da Gomeia, um dos mais representativos do Candomblé.
O primeiro casal de mestre sala e porta bandeira cruzou a avenida com fantasias que remetiam a Exu e Pomba Gira. Maquiagem, figurino e carros alegóricos colocaram os orixás e rituais dos terreiros como elementos essenciais e centrais da cultura brasileira.
Cristo periférico e luta do povo pobre
A campeã de 2019, Mangueira, marcou a noite com diversas representações de Jesus Cristo e o enredo “A verdade vos fará livre”. Na comissão de frente, Cristo aparece vestido como um jovem de comunidade que é revistado junto com amigos por policiais.
A rainha da bateria, Evelyn Bastos, também estava fantasiada de Jesus e cruzou a avenida sem sambar, numa representação dramática e teatral do messias. A performance de Evelyn foi um dos assuntos mais comentados das redes sociais. Antes do desfile, ela postou em seu perfil no Instagram “E se Jesus fosse mulher?! Seu coração aceita? Seus olhos enxergam? Seu amor te limita?”
Para lembrar que Cristo foi perseguido, reprimido e torturado pelo Estado, a escola trouxe um carro alegórico com Jesus representado pela imagem de um garoto negro de periferia – uma lembrança de que os jovens da população preta são os que mais morrem nas mãos da polícia no Brasil.
A crítica à violência e à desigualdade também esteve presente no desfile da União da Ilha, com o enredo “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”.
A escola retratou o cotidiano das favelas e periferias brasileiras e colocou na avenida morros sendo vigiados por helicópteros, armas sendo apontadas contra a população e até mesmo a representação de um ônibus sendo assaltado.
Nos carros alegóricos da Ilha, políticos foram retratados de maneira crítica, sentados em vasos sanitários, além da realidade de moradores de rua.
Palco de uma resposta do Carnaval ao conservadorismo, à violência e à falta de atenção ao povo, a primeira noite do grupo especial na Sapucaí confirma que o debate não sairá da avenida em 2020, a exemplo do que aconteceu ano passado.
Última a desfilar, a Portela contou a história da chegada do povo Tupinambá ao Rio de Janeiro, local que os indígenas acreditavam ser o paraíso. Das lendas, costumes e riquezas da região antes da colonização ao caos urbano e problemas da atualidade, a escola desfilou a história do Rio sem abrir mão da crítica.
O dia na Sapucaí amanheceu com um hino à natureza, ao espírito de comunidade e um recado direto ao governo de Jair Bolsonaro.
Índio pede paz mas é de guerra/ Nossa aldeia é sem partido ou facção/ Não tem bispo, nem se curva a capitão