Líder boliviano reflete sobre país fraturado por golpe. Redistribuir renda foi crucial, mas liberação política requererá eliminar as brutais desigualdades entre famílias. Para isso, será preciso uma indústria forte e nacional, com respeito à Natureza

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Camisa branca de manga curta, calça preta e sapatos combinando, Evo Morales circula pelos escritórios de seu bunker portenho na rua Chile, bairro de San Telmo, grudado no seu celular. É uma quarta-feira de manhã e o fechamento de candidaturas na Bolívia é premente: o último dia é 3 de fevereiro. Desde cedo esteve reunido com mais de 20 candidatos em forma de assembleia, todos em círculo. Atrás da porta fechada dá para ouvir diferentes vozes. Morales observa, escuta, opina. Sai do escritório e, diante da expectativa dos jornalistas, cumprimenta sorridente, caminha, entra em outro escritório, fala com um interlocutor na Bolívia. A equipe de Brecha agendara a entrevista com o ex-presidente às 8h30. A espera termina às 12h45, quando Evo Morales finalmente ingressa no salão e se dispõe a sentar-se para responder as perguntas. “Peço desculpas pela demora”, diz.

Um dia antes, Luis Arce, o candidato presidencial do Movimento ao Socialismo (Mas) e ex-ministro de Economia de Morales, aterrissou em solo boliviano para iniciar a campanha eleitoral. O governo de Jeanine Áñez o esperava com a ameaça de prendê-lo sob acusações de corrupção, o lawfare da moda: por não controlar o uso do Fundo Indígena em diferentes projetos aprovados para sua execução. A própria promotora do processo se encarregou de desmentir a existência de uma ordem de detenção contra Arce e só colheu o depoimento dele para que seus advogados tenham acesso ao volumoso arquivo de vinte tomos que formam o processo.

Isso foi motivo de debate nos escritórios da rua Chile, onde já analisam os números das primeiras pesquisas: 35% de intenção de voto para Arce e pouco mais de 15% para Carlos Mesa. A mandatária Áñez aparece um pouco abaixo. O dirigente cívico Fernando Camacho e Jorge “Tuto” Quiroga nem sequer figuram com números significativos, ao menos segundo sondagem em mãos da equipe de imprensa de Morales. “Eles vão tentar nos perseguir”, diz o ex-presidente, e os assembleistas assentem.

Quando Brecha pergunta sobre sua possível candidatura prefere se esquivar do tema. “Estou aqui para apoiar os companheiros”, diz de passagem. Ao entardecer sairá o comunicado do Mas que informará se Evo aceitou inscrever-se como candidato à Assembleia Legislativa Plurinacional. No entanto, o documento esclarece que a inscrição é só para habilitar, legalmente e nos prazos estabelecidos pelo cronograma eleitoral, uma eventual candidatura caso as assembleias decidam elegê-lo como representante. “O debate das candidaturas finais ainda está em desenvolvimento”, esclarece o comunicado à imprensa.

Depois de 14 anos no poder e após um golpe de Estado já consumado, que lições foram tiradas e que autocrítica faz hoje sobre sua gestão?

Primeiro, sempre com o povo, tudo para o povo. Essa é a luta histórica das pessoas marginalizadas. A luta vem desde a colônia, passando pela república. E para estar com o povo nos pareceu importante ter em conta três coisas: no político, a refundação da Bolívia; no econômico, a nacionalização; e, no social, a redistribuição da riqueza. O mais difícil para minha gestão foi a refundação, abandonar o Estado colonial e passar a ter um Estado plurinacional na Bolívia, onde todos tivessem os mesmos direitos. Acabou-se o Estado impostor, as autoridades aparentes, o Estado falido, as ameaças de fazer desaparecer a Bolívia. A partir do Estado plurinacional [foram impulsionadas] as melhores oportunidades para os mais excluídos, que estão dentro do movimento indígena, e para as mulheres. E tudo incluído na Constituição. No econômico, para estar com o povo, foram importantes as nacionalizações dos recursos naturais e das empresas estratégicas.

Nessa questão, existe uma profunda diferença com a direita boliviana e com o sistema capitalista, que consideram saúde e moradia como serviços. Para nosso movimento são direitos. Os serviços básicos são um negócio privado para o capitalismo. Enquanto que para nós, no socialismo comunitário, são direitos humanos. Portanto, nossa defesa passa não só pelos direitos individuais e pessoais, mas também pelos direitos coletivos e da comunidade. Quanto ao comércio, para estar com o povo, é importante um programa de solidariedade, complementaridade e competitividade.

E a autocrítica de sua gestão?

[Hesita antes de responder] A questão da autocrítica e das debilidades… Quando seu irmão é presidente, alguns setores têm muita e exagerada ambição. Alguns reivindicam inclusive coisas indesejáveis para outros setores sociais. Então, não estão pensando na Bolívia, mas somente para seu setor ou para uma legião de cidadãos. Mas quando se dirige com transparência o governo, com dados econômicos, esses setores entendem, ainda que custem aceitar. E quero dizer que na luta de classes, ideológica, programática, é necessário discutir e trabalhar. Os próprios movimentos sociais nos diziam nas reuniões que eles não vinham para discutir e avaliar políticas, mas para distribuir projetos e obras. Não queriam debate ideológico. E isso tem que ser trabalhado durante o processo de transformação. A realidade é que são quase três milhões de bolivianos e bolivianas que subiram da classe baixa ou pobre para a classe média e que esqueceram de onde vieram, preferiram não ter compromissos com a sociedade, já trazendo novas expectativas. Não consideram que ainda há muitas famílias na situação em que eles estavam antes.

Isso é um desafio para todos os governos progressistas da região: como reagir diante das novas expectativas geradas após as melhorias que foram conquistadas por meio das gestões governamentais.

Foi um grande desafio para nosso governo, e falta muito para saber como reagir e seguir avançando. No caso da administração, nós trabalhamos os dados e chegamos à conclusão de que exagerados subsídios estatais são uma sangria para a economia nacional. Não garantem o futuro econômico do país. Deve-se combinar o investimento público feito para ampliar o sistema produtivo com aspectos trabalhistas e sociais. Daí vem a redistribuição da riqueza que permite acabar com a pobreza.

Esses setores que, segundo o senhor, reclamam demais do governante de plantão são os mesmos que em novembro pediram sua renúncia? Refiro-me à Central Obrera Boliviana (Cob) e a alguns sindicatos de mineração.

Não diria isso… Acredito que o pedido de renúncia que eles fizeram contra mim foi por medo. Eu mesmo não podia entender como a Cob podia pedir minha renúncia para dar oportunidade para a direita. Esse foi um erro político da Cob, mas não pelas reivindicações setoriais de que falei antes. Porque eles mesmos me propuseram que eu fosse candidato a presidente, defenderam minha candidatura e se mobilizaram por ela. Houve um momento em que o medo tomou conta deles e se lançaram a pedir minha renúncia. Isso eles levarão como um erro histórico.

A candidatura de Andrónico Rodríguez e de Orlando Gutiérrez, dirigente da Cob, marca as diferenças entre o Mas, a Cob e os mineiros?

Não. Estamos unidos. Nunca antes houve quatro candidatos. Estamos todos convencidos de que é importante a unidade, porque quem tiver a responsabilidade de conduzir o novo processo contará com o apoio de todos.

 modelo extrativista

Uma das questões comuns aos governos progressistas ou de esquerda nos últimos anos é a geração de riqueza através de uma matriz similar à do neoliberalismo: o extrativismo. Como enfrentar esse problema?

O sistema capitalista, além de destruir o planeta, quer que os chamados países subdesenvolvidos cuidemos dele para seu benefício. Dessa ideia eu não compartilho. É evidente que temos que cuidar do meio ambiente, estou convencido disso. O ser humano não vai poder viver sem a Mãe Terra. E ela vai existir melhor sem o ser humano. Nós sugerimos à ONU os direitos da Mãe Terra como prioridade. Há apenas 70 anos o mundo de seu conta de que os seres humanos têm direitos e, assim, apareceram os direitos humanos, os direitos políticos, sociais e econômicos. E só em 2007 é que foram declarados os direitos dos povos indígenas. Mas o mais importante é que os direitos da Mãe Terra não existem. Sem a Mãe Terra não há vida, e portanto, não há humanidade.

Quando tentamos aproveitar nossos recursos naturais com um planejamento a curto, médio e longo prazo, respeitando os direitos da terra, eles dizem que não pode. Quando o neoliberalismo explorava petróleo em reservas florestais, ninguém reclamava, nem as ONGs nem as fundações. Quando nós chegamos ao governo e começamos a fazer explorações, respeitando as áreas de reserva natural, começaram os protestos financiados pelos EUA ou por multinacionais.

Há setores da esquerda, não financiados pelos EUA, que reclamam contra o modelo extrativista…

Quem são esses setores na Bolívia? São os troskos que se transformam na extrema-direita. Hoje se ouve na Bolívia a frase “outra esquerda é possível”. E isso é levantado pelos troskos. Durante o golpe [não fizeram] nem uma manifestação contra a ditadura, e se dizem de esquerda. Não sou capaz de falar sobre o que ocorre em outros países nesse quesito da exploração dos recursos naturais. Mas te digo o que fizemos com a Bolívia. Demos valor agregado a nossos recursos naturais para não ter dependência em ciência e tecnologia. Isso foi uma prioridade.

Qual é o problema que temos, não só os sul-americanos, mas os latino-americanos em geral? Alguns países propõem a liberação política, social e cultural. E minha experiência me diz que ela precisa ser acompanhada da libertação econômica. A libertação política ou ideológica sem libertação econômica não tem muito futuro. Nós, com as nacionalizações, temos garantido essa libertação, econômica e política. Mas o grande problema latino-americano é que depois temos que passar da nacionalização à industrialização, com ciência e tecnologia.

E não dá para conseguir isso com as chamadas tecnologias limpas?

Temos que conseguir, evidentemente, em defesa da Mãe Terra, procurando e discutindo novos caminhos. Mas, para isso, os latino-americanos precisamos avançar nas áreas da ciência e da tecnologia.

O golpe e a OEA

Falando em golpe, em 2015 e 2016, tanto Nicolás Maduro, desde a Venezuela, como Pepe Mujica, no Uruguai, já tinham rejeitado e criticado a atuação do secretário geral da OEA, Luís Almagro. Por quê você, mesmo com o golpe sendo gestado, demorou tanto para perceber o papel que hoje você atribui a Almagro, e que segue essa mesma linha de raciocínio?

Foi um erro do governo nacional [referindo-se ao seu próprio governo]. Almagro tem um discurso de duas caras. Elogiava nossa economia, os processos de mudança. Entendo que ele seja um grande agente do império estadunidense e que opere com planos contra os povos, inclusive sem respeitar os estatutos de base da OEA. Devo reconhecer, como boliviano e como ex-presidente, que foi um erro acreditar que Luis Almagro pudesse garantir um processo democrático em nosso país.

Porém, apesar do relatório final da auditoria eleitoral, ganhamos no primeiro turno. O relatório aponta irregularidades em 226 mesas. Sendo assim, é só convocar novas eleições nessas mesas e não no país inteiro. Se considerarmos as 36 mil mesas da Bolívia, 226 significam menos do que o 1%. Mesmo se todos esses votos fossem computados para a oposição, ainda assim ganharíamos no primeiro turno. É um golpe da OEA.

Novas eleições e referendo

Muitos dos governos de esquerda ou progressistas latino-americanos não souberam criar uma descendência política a partir de suas lideranças. Como resolver essa lacuna?

[Faz cara de dúvida, percorre a mesa com o olhar e brinca com o gravador] Eu não acreditava muito nisso… mas agora tenho me convencido de que é uma questão importante. Não sei se teria a ver com o fato de preparar lideranças de forma conjunta ou qual seria a solução. Nunca imaginei que o líder que gerasse transformações profundas em seu respectivo país fosse tão importante. É preciso repensar essa situação.

De todo modo, continuo pensando que sempre que esse projeto político de liberação está em primeiro lugar, o programa do povo e, depois, vem os cargos correspondentes. Assim deve ser. Mas o que parece ser uma característica latino-americana de que o povo dependa sempre de um líder. Temos que mudar a mentalidade dos latino-americanos.

Pergunto porque você perdeu um plebiscito popular em 2016, quando desejava se apresentar novamente como candidato presidencial — e, mesmo assim, decidiu insistir no argumento de que “o povo pediu”. E, no fim, tudo acabou em golpe de Estado. Como interpretar esse argumento?

Naquele referendo venceu a mentira.

Mas você mesmo já tinha reconhecido que estaria preparado para uma possível derrota…

Mas foi exatamente por isso que diversos setores sociais e políticos reagiram e procuraram outras vias constitucionais para me apresentar como candidato. Minha candidatura não foi ilegal nem inconstitucional. Procuramos jurisprudência na América Latina com casos exemplares em Honduras, Nicarágua, Costa Rica… não foi uma invenção nossa, dos bolivianos.

Os dois femininos

Faz alguns meses, Sergio Ramírez, ex-vice-presidente da Nicarágua (durante a revolução sandinista), declarou que a nova esquerda deveria focar na redistribuição da renda, mas não discutir a supremacia do capital. Você compartilha a mesma visão sobre o papel da nova esquerda?

A redistribuição é importante, mas, junto com isso, é importante fechar gradualmente as grandes brechas de desigualdade entre as famílias. É a única maneira de garantir o socialismo comunitário, do século XXI, ou como você queira chamá-lo. Saúde e educação precisam ser direitos básicos dentro dos Direitos Humanos. E, além disso, ter uma economia sem maiores assimetrias, é nesse ponto que entra a importância da redistribuição de renda.

Como você enxerga o movimento feminista, que tem crescido na América do Sul?

Sou feminista. Desde os meus tempos de luta sindical até os de luta eleitoral eu tenho batalhado para que nossas irmãs tenham os mesmos direitos. Porém, há duas linhas dentro do feminismo: para um grupo, o maior inimigo é o homem; para o outro, somos uma família, todos, respeitando os direitos de igualdade e justiça. Na Bolívia, até 1952 as mulheres eram completamente marginalizadas, assim como o movimento indígena. Não tinham nenhuma participação. Sendo que, tanto na política eleitoral como na sindical, mulheres são sempre mais honestas do que os homens.

Você acha que seu governo conseguiu melhorar a situação dos direitos das mulheres?

Totalmente. Hoje em dia, muito mais mulheres têm acesso ao Ensino Fundamental e Médio, bem como à Universidade — e mais mulheres se tornam profissionais. Aumentou a expectativa de vida e, acima de tudo, hoje temos mais mulheres na Assembleia Legislativa Plurinacional. No mundo, somos o segundo ou terceiro país com maior participação legislativa das mulheres.

Você já proferiu algumas frases machistas que a imprensa se dedicou a divulgar, como aquela em que você disse “depois desses anos de gestão, vou embora com meu plantio de coca, minha novinha e meu violão…”

[Ele ri] Sou cheio de fazer piadinhas, adoro as cantigas populares. E essas cantigas de carnaval têm um quê de machista. Mas, na minha gestão, como nunca antes, foi garantida a justiça e igualdade de gênero. Repito, as brincadeiras têm um lado picante e são machistas, tanto nas cantigas como nos versos. Mas todas as bolivianas sabem que eu sou feminista.

Eleições e Plano B

Que dados vocês têm visto nas pesquisas para as eleições de 3 de maio?

Antes de definir os candidatos o Mas já estava em primeiro lugar em todas as pesquisas.

Você será candidato?

Por enquanto, como estou aqui, não tenho candidatura

O que acontece se o Mas ganhar as eleições e o governo de Áñez não reconhecer sua vitória?

Isso pede um plano B. Eu também penso que isso pode acontecer. Mas, falta muito ainda, haverá observadores internacionais e o processo eleitoral está em pleno desenvolvimento.

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