Por Lu Sudré/Brasil de Fato
Enquanto desmatamento destrói florestas brasileiras, mudanças climáticas alastram as chamas no outro lado do mundo
As chamas que há meses consomem as florestas australianas inevitavelmente evocam as imagens das queimadas que devastaram a Amazônia em 2019. Enquanto o fogo em território amazônico foi reduzido pela chegada da chuva que cai sobre a floresta neste período do ano, na Austrália, as labaredas se intensificaram em dezembro.
Nesta terça-feira (7), a fumaça das queimadas do outro continente chegaram ao sul do Brasil, mais especificamente ao Rio Grande do Sul, após percorrer mais de 12 mil quilômetros carregada pelo vento e de ter passado pelo Chile e pela Argentina.
Os incêndios na Austrália já atingiram mais de 5 milhões de hectares. Desde setembro, mais de 1.500 casas foram destruídas e ao menos 25 pessoas morreram.
Além das vítimas fatais, o dano causado à fauna é sem precedentes: Ecologistas da Universidade de Sydney e da organização WWF estimam que mais de um bilhão de animais naturais do país, como coalas e cangurus, foram mortos pelo fogo.
Com a permanência da onda de calor, ainda não há perspectiva de controle total do fogo. Apenas no estado de Nova Gales do Sul, por exemplo, existem 130 focos de incêndios ativos.
Representantes do governo brasileiro aproveitaram o trágico contexto ambiental do país da Oceania para condenar as críticas recebidas por sua atuação contra as queimadas da Amazônia.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por exemplo, afirmou que a Austrália queimou seis vezes mais que o território amazônico e vitimizou a gestão de Jair Bolsonaro. “Mas certas ONG’s e alguns jornalistas só se importam em falar mal de seu próprio país e, claro, sempre contra o governo. Seletividade absoluta”, disse, no Twitter.
No mesmo tom, o próprio presidente questionou no dia 2 de janeiro por que a jovem sueca Greta Thumberg, ativista ambiental duramente criticada por bolsonaristas, e Emmanuel Macron, presidente francês, não haviam se pronunciado sobre os incêndios na Austrália.
Entretanto, também no início do ano, Macron anunciou que ligou para o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, oferecendo assistência no combate aos incêndios. Diversos comentários sobre a questão também podem ser encontrados nas redes sociais de Greta.
Origens distintas
Rômulo Batista, da campanha de Florestas do Greenpeace, explica que os fatores que causaram os incêndios florestais nos dois países são diferentes e é preciso analisar caso a caso.
“Lá, o que tem sido queimado, é o que chamamos de floresta tropical seca, completamente diferente da floresta tropical úmida que é a característica da Amazônia. A maioria dos focos de incêndio da Amazônia se deu em áreas ou que foram desmatadas anteriormente ou que estão no arco do desmatamento em que foi usado fogo para desmatar a floresta e ocupar o solo com outra alternativa”, observa.
Devido à secura, a vegetação australiana fica mais suscetível às altas temperaturas da região, que chegam a atingir marcas superiores a 40 ºC. O tempo seco e os fortes ventos ajudam a espalhar as chamas, mas, como a vegetação é adaptada a este tipo de ocorrência, se recupera naturalmente após o incêndio. O diferencial da situação atual é a extensão da devastação.
Isso significa que, enquanto as características da vegetação e do clima intensificam as queimadas do outro lado do mundo, com uma menor porcentagem provocada pela ação humana, o fogo na Amazônia resulta exclusivamente da ação predatória do desmatamento.
Batista avalia ainda que a comparação entre as queimadas não isentam o governo brasileiro de sua responsabilidade ou atenuam a gravidade da destruição do território amazônico.
“Esse governo, desde sua posse, não se responsabiliza pela anti-política ambiental que assumiu. Para cada erro, para cada falta de ação na questão ambiental, ele se apressa a apontar o dedo a uma outra direção ou usa exemplos que não são comparáveis para tentar justificar a falta de atitude e a completa e total de organização, preparo e de um plano para a questão ambiental no Brasil”, critica o porta-voz do Greenpeace.
Fogo e tudo vira pasto
De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), somente entre os meses de agosto e setembro, o fogo consumiu 41.197 km² de floresta amazônica.
Em nota técnica publicada no auge das queimadas na Amazônia, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) comparou os municípios com maior índice de desmatamento com os de maior índice de foco de incêndio, provando a ligação entre o desmatamento e as chamas. Altamira (PA), Porto Velho (RO), São Félix do Xingu (PA), Lábrea (AM), Colniza (MT) e Novo Progresso (PA) estão nas duas listas.
Segundo Paulo Brando, pesquisador do Ipam, com a degradação da floresta amazônica das últimas décadas e longos períodos de seca, a vegetação fica mais suscetível a espalhar o fogo. O especialista é enfático ao corroborar, no entanto, que a origem das chamas não é uma condição natural.
“É preciso do fósforo, da ação humana, para ter fogo. Na Amazônia, qualquer incêndio florestal não é natural”, reforça.
“As queimadas para desmatamento ou para reformular pasto, escapam e acabam se tornando desastres. Isso aconteceu em 1997, 1998, 2005, 2007, 2010, 2015 e 2016. Anos de seca. O problema é que essas secas vão se tornar cada vez mais comum, a temperatura do ar vai aumentar, a paisagem vai ficar mais inflamada. Para evitarmos desastres comparáveis com o da Austrália, precisamos remover o fogo.”
Brando relembra ainda que a nota técnica do Ipam aponta que 33% das queimadas de 2019 ocorreram em áreas privadas, sinalizando que produtores privados “tinham licença para queimar”.
Mudanças climáticas
Na avaliação dos especialistas consultados pela reportagem, as alterações na temperatura do planeta e as mudanças climáticas causadas pelo efeito estufa são responsáveis por aprofundar e acentuar os incêndios, um fenômeno natural na Austrália.
“As mudanças climáticas estão levando a incêndios catastróficos. [Na Austrália] São mais longos, por mais tempos e mais imprevisíveis. Enquanto no Brasil, temos um fenômeno causado pelo ser humano, que aumenta as mudanças climáticas. Temos um ciclo vicioso”, comenta Rômulo Batista.
De acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), em 2017, o Brasil emitiu cerca de 2 bilhões de toneladas de CO2, o que tornou o país o sétimo maior emissor de gases do efeito estufa.
Quase metade (46%) dessa quantidade foi emitida pelo setores do desmatamento, seguidos por 24% de emissões das atividades agropecuárias e 21% do setor de energia e transporte.
Paulo Brando explica que naturalmente a floresta amazônica “se protege” contra os incêndios mantendo um sub-bosque debaixo das copas das árvores, responsáveis por manter a umidade e impedir que o fogo de origens criminosas se alastre. Mas, com os períodos de secas mais intensos, essa proteção se enfraquece e a floresta fica mais suscetível ao alastramento do fogo.
“Se quisermos ter florestas com biodiversidade, temos que reduzir as chances dessas florestas queimarem. O clima já mudou. Qual a solução? É não usar o fósforo. Não colocar o fogo. A grande preocupação é que há indicações fortes de que o desmatamento continuará em taxa elevada”, lamenta o pesquisador do Ipam.
Brando adiciona que, com as mudança no clima, mesmo em um cenário mais otimista em relação ao desmatamento, o crescimento na inflamabilidade das florestas será inevitável.