Por Lu Sudré/Brasil de Fato
Angela Mendes explica a aliança criada com o cacique Raoni contra retrocessos do governo Bolsonaro
À beira do rio Xingu, no estado do Mato Grosso, nasceu uma nova frente em defesa do meio ambiente e dos povos da floresta. No último dia 15 de janeiro, ao lado do cacique Raoni, Angela Mendes, filha do líder seringueiro Chico Mendes, e a indígena Sônia Guajajara oficializaram uma aliança contra as políticas adotadas por Jair Bolsonaro (sem partido) nas áreas ambiental e indígena.
O lançamento da Aliança dos Povos das Florestas ocorreu durante um encontro que reuniu centenas de indígenas de diversas etnias e estados do país.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Angela Mendes, militante ambientalista e coordenadora do Comitê Chico Mendes, afirma que o objetivo da articulação é pensar estratégias para resistir às políticas de um governo que “declarou os povos da floresta como seus inimigos”.
“Quando o presidente diz que não vai mais demarcar nenhuma terra indígena e tenta extinguir o ministério do Meio Ambiente e todos os órgãos responsáveis por políticas públicas da floresta, isso quer dizer que ele está em uma ofensiva muito grande contra essas populações. Todas elas”, analisa.
Segundo ela, a frente se inspira nas alianças criadas por seu pai décadas atrás em defesa da demarcação dos territórios dos povos tradicionais, e foi gestada durante a Semana Chico Mendes, que aconteceu em Xapuri (AC) no fim do ano passado. A articulação deve focar em exercer pressão política e em reverberar denúncias junto à comunidade internacional.
“Hoje é o agronegócio que está dando as cartas no país. É o agronegócio que está ditando os caminhos tanto do governo federal, quanto do Congresso Nacional. É o agronegócio, com as multinacionais e com as grandes mineradoras que estão por trás de tudo isso”, denuncia.
Mendes denuncia a intenção do governo Bolsonaro de entregar os territórios para exploração do capital internacional. “Ele passou um ano [2019] mostrando como vai fazer isso. Nada do que ele fez, foi feito de forma impensada. Eu tenho certeza que, pra 2020, eles virão com planos perversos”, argumenta.
Confira a entrevista na íntegra.
–Brasil de Fato: Qual o objetivo dessa Aliança? Ela se inspira na atuação de Chico Mendes?
–Angela Mendes: Há mais de três décadas, meu pai, juntamente com outras lideranças indígenas e outros companheiros extrativistas, decidiram criar uma aliança que foi muito importante naquela época porque eles enfrentavam as mesmas ameaças que enfrentamos hoje, com outras nuances.
A Aliança, na época, serviu para que juntos eles pudessem reivindicar com mais força a criação de seus territórios. Gerou vários avanços na época e durou até 1992. Foi uma aliança muito feliz.
Hoje, diante desse quadro de ameaças tão grandes que cercam, sobretudo, os territórios dos povos e dessas populações, nos vemos novamente tentando buscar estratégias para resistir e tentar enfrentar esse momento. Esse movimento que foi criado lá trás continua sendo muito atual, tendo em vista que uma das estratégias do governo é a divisão de grupos.
Temos visto isso muito claramente em relação aos povos indígenas, quando o governo tenta colocar um grupo contra outros grupos. O mesmo ele também faz em relação a outros povos de florestas e tradicionais como extrativistas e assentados.
E aí temos questões maiores que são as políticas. Temos políticas públicas principalmente na criação de territórios, que foram muito importantes para que as pessoas tivessem a segurança, a garantia de seus territórios. Isso, hoje, está sob ameaça.
Quando o presidente diz que não vai mais demarcar nenhuma terra indígena e tenta extinguir o ministério do Meio Ambiente e todos os órgãos responsáveis por políticas públicas da floresta, isso quer dizer que ele está em uma ofensiva muito grande contra essas populações. Todas elas.
A Aliança dos Povos das Florestas, incluindo todos os biomas, é estratégica. É juntar força para pensarmos como fazer essa resistência, como é que avançamos nesse sentido, mesmo com o governo que temos aí hoje.
–O que foi discutido ao longo desses dias de encontro no Xingu?
Na verdade, o que foi discutido em todos esses dias foi, sobretudo, a pauta indígena, o genocídio indígena. Essas ameaças aos territórios. Foram tratados assuntos muito específicos que estão acontecendo em relação a questões indígenas.
Com a nossa presença lá, tanto minha quanto do Júlio Barbosa, atual presidente do Conselho Nacional dos Povos Extrativistas e Comunidades Tradicionais da Amazônia (CNS), que representa todas as populações extrativistas do Brasil, conseguimos propor essa grande aliança, levar a proposta para essa grande retomada, para essa estratégia.
Não é só uma aliança que aponta que se unir é estratégico. Não. Agora vamos tentar definir diretrizes e criar condições para que essa Aliança de fato se concretize em ações.
Pode ser no âmbito da política, uma agenda junto à sociedade internacional. Mas a pauta foi muito voltada para o problema que eles [indígenas] estão enfrentando. Nossa presença lá foi para reforçar a importância da retomada dessa aliança.
Eu, como filha do Chico, considerando que eles têm na cultura um respeito muito grande pela ancestralidade, pude ver que meu pai, que foi essa figura que também fez uma luta em defesa da Amazônia e da floresta, é muito respeitado. A história do meu pai reverbera muito entre eles.
Foi muito bonito e emocionante ver vários deles chegando pra mim, dizendo: “Olha, conheci seu pai. Ele esteve em minha aldeia, me alertando para os problemas do garimpo. Dizendo que o garimpeiro vem, destrói a terra e depois vai destruir terras dos seus parentes”. Isso aconteceu na época que meu pai estava tentando consolidar a primeira aliança, a aliança original. E eles ainda guardam essa memória.
O legado do meu pai ainda está vivo entre eles. Tanto que fomos convidados pelo Cacique Raoni para participar desse momento tão simbólico para eles.
–A carta divulgada após o encontro é um manifesto de fundação dessa articulação? Quais seus pontos principais?
–É um documento forte que reverbera as demandas dos indígenas que também são demandas de outras populações. O que eles vêm sofrendo hoje, mais incisivamente, todas as outras comunidades da floresta, os extrativistas, ribeirinhos e quilombolas, eles também sofrem com os riscos.
As ameaças são grandes também, mas o governo tem um foco nas comunidades indígenas. Declarou que os povos das florestas são inimigos desse governo, e vem fazendo de tudo para acabar com eles.
Todos os pontos da carta são extremamente importantes. Vão da educação, a saúde e chega a questão dos territórios porque, na verdade, o retrocesso foi grande em todas as áreas. Por que fazemos essa discussão, nós extrativistas, juntamente a eles? Também sofremos retrocessos, em todas as áreas. A pauta que unifica todas essas populações é a questão dos territórios.
O que estamos discutindo enquanto Aliança, é isso. Por quê? Porque primeiro garantimos os territórios para fazer a conquistas das outras políticas públicas. Um sistema de educação, saúde, infraestrutura. Mas precisamos do território para depois visarmos as políticas públicas que vão garantir a permanência dessas pessoas nos seus territórios.
Nos unimos para fazer essa aliança porque no atual governo, já sabemos que a criação de novos territórios não vai avançar. Isso o governo já deixou bem claro. O que temos que fazer agora é traçar esse plano, para que não percamos o que não foi conquistado. E duramente conquistado.
Hoje pensamos nisso. Em como vamos resistir a todo esse desmonte, em relação a Funai, em relação ao ministério do Meio Ambiente, em relação a todos os órgãos que garantem que possamos ter o que nos apoio ou que cuide dessa política ainda.
–Como enxerga a atuação da Funai, Ibama, ICMBio e de outras instituições ambientais no primeiro ano de governo Bolsonaro, neste contexto de desmonte?
–Tem sido um fracasso total, como é o objetivo do governo atual. Ele não está fazendo isso porque é incompetente, e sim porque é o objetivo dele.
Enfraquecer, desmontar os órgãos que fazem a gestão da política pública pros indígenas, pros extrativistas, para os pequenos produtores e pros ribeirinhos. Para essa população que é um entrave pro agronegócio e pro que eles de fato defendem, que é explorar os minérios e as riquezas da Amazônia. Isso faz parte do plano deles e, infelizmente, para eles, tem funcionado. Estamos vendo o desmatamento crescer assustadoramente, dia após dia.
Em 2019, o desmatamento superou todos os números, e os focos de queimadas também tiveram números alarmantes. O desaparelhamento dessas instituições, por exemplo, do Ibama e do ICMBio, é muito grande. Vem com o objetivo de dificultar a reação desses órgãos no combate a esse tipo de política. Hoje não existe recurso pra fiscalização, não teve sequer recurso pro governo combater os incêndios de forma eficiente. Eles estão agindo no sentido de desmontar esses órgãos e vir com o discurso de que a floresta não tem valor em pé.
Nós temos um problema muito grande. A Reserva Extrativista Chico Mendes está sendo desmatada e ocupada ilegalmente por muita gente. Esses ocupantes ilegais e infratores, alguns, inclusive, com processos no Ministério Público, tem acesso direto ao ministro do Meio Ambiente, para dizer que o ICMbio está multando, sendo que só está cumprindo seu papel, que é ir lá e multar quem está de forma ilegal.
Aqueles que estão na reserva e ajudaram a criá-la, que não compactuam com isso, não estão sendo nem ouvidos. E aí sai na mídia que a reserva não serve pra nada. Infelizmente, nossos parlamentares do Acre, federais, são simpatizantes ou de alguma forma estão do lado do agronegócio.
Hoje, é o agronegócio que está dando as cartas no país. É o agronegócio que está ditando os caminhos tanto do governo federal, quanto do Congresso Nacional. É o agronegócio, com as multinacionais, as grandes mineradoras que estão por trás de tudo isso, principalmente em relação às unidades de conservação e as terras indígenas. É a mineração.
O Brasil não tem um projeto sustentável nem pra apresentar em Davos. Como é que o país sai de uma posição de referência, de liderança nas questões ambientais, e passa pro que está passando hoje?
Não temos projetos pra apresentar em relação às questões ambientais enquanto o restante do mundo está preocupado com isso. O país vai justamente na contramão do que está sendo discutido. A população tem que acordar pra isso. Os povos da floresta não podem lutar sozinhos.
Os indígenas os extrativistas, ribeirinhos e quilombolas não podem lutar sozinhos. Essa luta tem que ser também de quem mora na cidade e de quem entende a importância daqueles que cuidam do meio ambiente. Daqueles que entendem a importância de uma terra indígena, de uma unidade de conservação, de uma reserva extrativista pro planeta.
–E qual a perspectiva para o meio ambiente nos próximos três anos de governo?
Não são em nada diferentes do que foi 2019. Acho que são ainda mais agravantes. Se a intenção desse governo é desmontar a política ambiental e entregar os territórios pro capital internacional, ele passou um ano mostrando como vai fazer isso. Nada do que ele fez, foi feito de forma impensada. Eu tenho certeza que, pra 2020, eles virão com planos perversos.
O que temos que fazer? Agora, passada a costura da Aliança, é reunir os órgãos com seus parceiros e estudar quais passos seguintes para esses três anos. Considerando que a pauta que unifica é território, temos alguns caminhos.
Um deles é o Congresso Nacional. Vamos ter que fazer uma forte incidência sobre ele e tentar conversar com o Rodrigo Maia [presidente da Câmara], com o Alcolumbre [presidente do Senado] e tentar sensibilizá-los para isso, para essa ofensiva que a bancada ruralista está fazendo sobre essas terras.
Uma outra coisa é uma agenda internacional bem no estilo do que foi a campanha indígena ‘Nenhuma gota a mais’, em que lideranças como Sônia Guajajara e os guarani-kaiowá e outros indígenas, que fizeram uma agenda grande na Europa alertando para esse cenário preocupante.
Esse é o momento em que o próximo passo é pensar e depois fazermos ações estratégicas para forçar o tal do governo Bolsonaro a perceber que ele está indo pro caminho errado.
Comercialmente o que o governo tem ensaiado e recuado na área ambiental, tem recuado não porque ele tenha tomado consciência do que está fazendo, mas porque o mercado tem ditado a regra. O mercado internacional tem dito que não aceita produtos vindo de áreas degradadas. Então, é fortalecer ainda esse laço com o comércio internacional e tentar ver onde vamos incidir para conseguirmos minimamente manter a integridade desses territórios e manter a vida das nossas lideranças.
A ofensiva contra, principalmente, lideranças indígenas está muito grande. O agronegócio, consciente da impunidade e do apoio que tem, tanto no Judiciário, no Legislativo quanto no Executivo, eles estão mais violentos do que nunca. Essa certeza da impunidade está dando a eles um poder de violência muito grande. É extremamente preocupante.
O Estado brasileiro declarou inimizade a todos esses povos da floresta. Quando falo do Estado brasileiro, falo de um governo subserviente ao grande poder do agronegócio e do capital internacional. Um Legislativo que legisla apenas para a elite desse país, para os grandes empresários. Um Judiciário extremamente tendencioso, que também é tendencioso pro lado dos maiores, dos mais fortes.
–O seu pai foi assassinado por conta da atuação política e do ativismo ambiental. Mais de 30 anos depois, estamos vendo uma escala de violência contra ativistas ambientais, e indígenas como Paulino Guajajara, assassinado recentemente. O que o Estado brasileiro deve fazer para romper com esse ciclo de violência contra os povos da floresta?
–O Estado brasileiro, na sua estrutura, o que poderia fazer, porque não faz, é reconhecer os direitos dessas populações sobre seus territórios. Garantir que essa pessoas estejam protegidas. Garantindo seus territórios e que essas pessoas sejam deixadas em paz, cuidando dos seus territórios, já assegura muita coisa.
A criação, por exemplo, de uma reserva extrativista, em um primeiro momento, garante vida. Desde que foram criadas, temos visto pessoas sendo assassinadas por conflitos por terra em outras unidades, como em assentamentos. Mas não vemos assassinatos por conflitos nessas terras extrativistas, isso acabou.
Quando falamos em território, falamos na garantia da vida, na garantia dos modos de vida, da cultura de um povo e de suas tradições. Se o governo não abrisse tanto esses territórios para exploração comercial, já ajudaria bastante.
O que temos visto é que existem inúmeros projetos de lei permitindo essa exploração, flexibilizando licenciamento ambiental, é uma série de coisas que visa diretamente os territórios dessas populações. O que a gente tem percebido é que realmente, a depender do governo, ele não vai fazer nenhuma ação no sentido de resolver essa situação que está posta.
–Se Chico Mendes estivesse aqui, no Brasil 2020, lidando com toda essa conjuntura de destruição ambiental, qual você acha que seria a avaliação dele?
–Eu não consegui conviver muito tempo com ele, e basicamente muito que eu sei é por meio dos amigos e companheiros. Mas meu pai era uma pessoa com uma capacidade tremenda de diálogo. Ele seria um pouco mais pragmático e ele conseguia conduzir muito bem as coisas dentro daquilo que ele achava que era a verdade e a realidade. Acho que ele faria tudo da forma mais tranquila possível, sempre buscando as estratégias certas e os apoios certos. Com certeza ele teria uma solução para o que estamos vivendo hoje.
Os caminhos que ele sempre procurou traçar era com base no diálogo, na conversa e do conhecimento. Mas como ele não está aqui hoje para fazer isso, então, nós temos que fazer. Quando criamos alianças, não estamos dizendo que queremos guerra ou briga. Nós estamos abertos ao diálogo, mas o governo não está. Ele não ouve essas populações, não considera o que as populações tem a dizer sobre nada. Ele tem fechado todas as portas.
Seja com a arrogância, com suas posições fascistas, tanto Jair Bolsonaro quanto sua equipe demonstram que não estão dispostos a dialogar. Se não há diálogo, não há acordo possível, temos que nos organizar e buscar formas de resistir a tudo isso que está acontecendo. Não só resistir, mas construir uma outra via, um outro caminho.