Por Lu Sudré/Brasil de Fato
Para especialistas, campanha de prevenção à gravidez baseada na iniciação sexual tardia põe Brasil na contramão do mundo
Inspirada no movimento religioso “Eu escolhi esperar”, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem defendido políticas públicas pró-abstinência sexual para prevenir a gravidez na adolescência.
A pasta organizou eventos sobre o tema ao longo dos últimos meses e divulgou nota, nesta sexta-feira (10), em que diz estar formulando “a implementação de política pública com abordagem sobre os benefícios da iniciação sexual tardia por adolescentes como estratégia de prevenção primária à gravidez na adolescência”. Não há informações sobre os gastos e tipos de ações da política.
Nelson Neto Júnior, pastor e fundador do movimento, afirmou ao jornal O Globo que a preparação de livros didáticos que apresentam os argumentos em defesa da iniciação sexual tardia já teria sido iniciada por seu grupo. Ele participou de audiência pública sobre a questão ao lado de Damares em dezembro na Câmara dos Deputados e se reuniu recentemente com a ministra.
Estatísticas divulgadas em 2018 pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), expressam que, de fato, a gravidez na adolescência é um grave problema de saúde pública no país. Enquanto a taxa mundial é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos, no Brasil, são 68,4 nascimentos para cada mil jovens.
Produzido em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o relatório também registra que a taxa da América Latina e do Caribe é de 65,5 nascimentos. Ou seja, o Brasil também está acima da média do continente.
Contramão do mundo
Contudo, a campanha defendida por Damares segue em direção oposta às orientações estabelecidas pela OMS e pela Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco) para tratar da questão.
O documento da Organização Pan-Americana da Saúde, por exemplo, apoia programas multissetoriais de prevenção dirigidos a grupos em situação de maior vulnerabilidade e o impulsionamento ao acesso a métodos anticoncepcionais e de educação sexual. A abstinência como indicação contraceptiva não é citada em nenhum momento.
O Ministério, por sua vez, afirma que abstinência é a única forma contraceptiva “100% eficaz” e que, portanto, seria o método ideal para evitar “as consequências” da prática sexual.
A nota publicada nesta sexta cita apenas único estudo, realizado no Chile em 2005, como exemplo de eficácia desse tipo de política. Em entrevista ao Brasil de Fato, Karina Calife, médica especialista em saúde mulher, critica a campanha de Damares. Segundo ela, não há evidências científicas que de fato sustentem a posição do governo.
“Existem questões que são naturais. O interesse sexual, querer saber quais diferenças existem, como o nosso corpo funciona fisiologicamente. A abstinência não vai prevenir a gravidez na adolescência, não é uma coisa real. Isso é antifisiológico”, analisa.
Calife atua como professora na faculdade de Medicina da Santa Casa e argumenta que a educação sexual, a orientação e o acesso à informação são a base das políticas adotadas por países com menores taxas de adolescentes grávidas.
Ela destaca o caso da Suíça, que apresenta valores menores que a média mundial. “Eles trabalham com isso desde a infância, logo após a alfabetização, nas primeiras séries, com livros específicos e especialistas para pensar e falar sobre isso do jeito adequado para cada grupo etário, na medida em que a curiosidade se coloca”, explica.
Moralidade em disputa
Segundo a especialista, o novo projeto do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é baseado em preceitos morais setores específicos que não poderiam ser automaticamente aplicados a toda a sociedade.
“A política pública não pode estar baseada na crença de algumas pessoas. Ela é para todos. Não dá para ser uma construção moral. É isso que esses livros, desse jeito, estão orientando. Não é uma perspectiva médica, da saúde coletiva. [A abstinência sexual] deve ser uma escolha pessoal e não uma política pública”, reitera.
Programas baseados em evidências e direcionados especificamente a crianças e jovens de 5 a 18 anos é justamente o que defende a Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade da ONU, atualizada em 2018.
Formulada para auxiliar os responsáveis pela elaboração de políticas educacionais em todos os países, a publicação ressalta a importância da educação em sexualidade em um contexto de direitos humanos e equidade de gênero.
Francisca Pereira da Rocha Seixas, secretária de saúde da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), também acredita que as políticas de prevenção à gravidez indesejada na adolescência demandam diálogos que esclareçam amplamente as questões pertinentes ao assunto e à sexualidade em geral, com participação de toda a sociedade.
“Usar o argumento de abstinência sexual para coibir a gravidez na adolescência é fugir do real debate porque o sexo faz parte da vida e reprimi-lo só acarretará mais problemas. Propor abstinência sexual é tapar o sol com a peneira. Sexo apenas depois do casamento, conforme defendido por algumas religiões, é a proposta do patriarcalismo para a submissão da mulher”, opina.
A representante da CNTE frisa que discussões sobre gênero e sexualidade também podem ajudar crianças a identificar a violência sexual, já que poderão identificar “onde acaba o carinho e onde começa o abuso”.
De acordo com o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018 houve 66.041 notificações de estupro no país. Deste total, 53,8% dos casos tinham como vítimas garotas com até 13 anos. A maioria dos crimes ocorreu dentro de casa e por pessoas conhecidas das vítimas.
O movimento “Eu escolhi esperar” foi criado em 2011, quando afirmava reunir 3 milhões de adeptos. A articulação resultou na fundação de um instituto que leva o mesmo nome, mas que estava paralisada nos últimos anos. Os representantes do movimento creditam à eleição de Bolsonaro a reativação do grupo em 2019.