Por Thaís Tozzini Ribeiro/ProMigra
Aos 71 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem diante de si um contexto global na qual é ignorada – e cujo efeito se traduz em uma série de perigos e dificuldades às sociedades
No Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado nesta terça-feira (10) a maioria das pessoas gosta de lembrar da publicação – nessa mesma data, em 1948 – da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encabeçada pelos esforços da ex-primeira-dama estadunidense Eleanor Roosevelt, que passou a garantir de forma escrita e expressa a todos os seres humanos, independentemente do local a que habitam, os direitos de nacionalidade, asilo, segurança, liberdade de expressão e de associação, dentre outros.
Em uma sociedade global, extremamente interligada e com a participação ativa dos cidadãos via internet, parece que esses direitos sempre existiram e foram respeitados. Contudo, o rumo das políticas nacionais na maioria dos países desenvolvidos e com certo poder aquisitivo vem mostrando uma face cada vez mais obscura, tendo como uma de suas principais bandeiras a diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros, aproveitando-se das crescentes ondas xenofóbicas que surgiram com as crises econômicas mundiais.
Tendo isso em vista, escrevo hoje não sobre a Declaração, que completa seus 71 anos, mas sim sobre o contexto global que tínhamos antes dela e o perigo que corremos ao deixar que nossos governantes a ignorem.
Em sua obra clássica “As Origens do Totalitarismo” , a polêmica autora Hannah Arendt analisa o período entreguerras e da Segunda Guerra Mundial tentando entender de onde surgiram os estados totalitários que dominaram a Alemanha, Itália, Espanha e outros países.
Ela começa falando sobre os Tratados de Minorias firmados dentro da Liga das Nações como uma solução para as questões de divisão territorial feitas no pós-primeira guerra, que passaram a considerar a “minoria como instituição permanente, (…) necessitando de uma garantia adicional dos seus direitos elementares por parte de uma entidade externa, e (…) que os Tratados eram necessários para criar um modus vivendi duradouro.” Ou seja, como a própria autora diz “(…) a nação havia conquistado o Estado, e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de Hitler de que o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”.
Ainda sobre os Tratado de Minorias, Arendt diz que aqueles que o elaboraram não previram a possibilidade de transferências maciças da população, nem o problema das pessoas tornadas “indeportáveis” por falta de país que as quisesse acolher.
Com consequências ainda mais profundas, surge a condição de apátrida, que consiste, conforme a autora, “a existência de um novo grupo humano, em contínuo crescimento, constituído de pessoas sem Estado”, e, assim, vivendo fora do âmbito da lei. De acordo com sua análise da diversidade grupal dos apátridas, Hannah entende que cada evento político desde o fim da Primeira Guerra Mundial trouxe mais pessoas de diferentes minorias para esta condição e que estes, uma vez eram considerados apátridas, jamais poderiam ser “devolvidos à normalidade”.
Naquele contexto, havia uma enorme discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam teimosamente em considerar “inalienáveis” os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum. Conforme descreve Hannah Arendt, esta situação deteriorou-se, até que o campo de internamente — no meu entender, um ancestral dos campos de concentração —tornou-se durante a Segunda Guerra Mundial uma solução de rotina para o problema domiciliar dos “deslocados de guerra”. Até a terminologia aplicada ao apátrida deteriorou-se.
A expressão “povos sem Estado” pelo menos reconhecia o fato de que essas pessoas haviam perdido a proteção do seu governo e tinham necessidade de acordos internacionais que salvaguardassem a sua condição legal. A expressão “displaced persons” [pessoas deslocadas] foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência.
Perante essa situação caótica de mudanças de fronteiras territoriais e consequente crescimento da população apátrida devido a diminuição ou até desaparecimento de nações, Arendt aponta que o primeiro e grave dano causado aos Estados-nações pela chegada de centenas de milhares de apátridas foi a abolição tácita do direito de asilo, antes símbolo dos Direitos do Homem na esfera das relações internacionais e naquele momento entendido como anacrônico. Tanto foi assim que esse direito não foi previsto em nenhuma lei, constituição ou acordo internacional escrito e o Pacto da Liga das Nações nem ao menos o menciona.
Desprovido de importância, aparentemente apenas uma anomalia legal, o apátrida recebeu atenção e consideração tardias quando, após a Segunda Guerra Mundial, sua posição legal foi aplicada também aos refugiados que, expulsos de seus países pela revolução social, eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos.
Entretanto, os refugiados, apesar estarem fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, são considerados nacionais da sua pátria de origem, o que torna a sua situação um pouco mais fácil que a dos apátridas.
E é justamente no período pós-Segunda Guerra Mundial que surge o segundo dano às nações europeias, visto que finalmente se percebeu que era impossível se desfazer dos apátridas e dos refugiados e também era impossível transformá-los em cidadãos do país nos quais eles se encontravam, principalmente porque todos concordavam em que só havia duas maneiras de resolver o problema, ou via repatriação ou naturalização, e aplicação dos 2 (dois) remédios considerados como válidos fracassou.
De acordo com Hannah, as medidas de repatriação falharam porque nenhum país aceitou admitir aquelas pessoas e não porque os apátridas se recusassem a regressar à pátria que rejeitavam ou em virtude de sentimentos humanitários por parte dos países abarrotados de refugiados, mas sim porque nem o país de origem nem qualquer outro concordavam em recebê-los.
Já em relação a naturalização, o mesmo motivo que a levou ao fracasso foi que culminou no abandono o direito de asilo quando este teve de defrontar-se com os povos sem Estado. Ou seja, quando foi preciso atender a pedidos de naturalização em massa, visto que, em lugar de naturalizar pelo menos parte dos recém-chegados, os países começaram a cancelar naturalizações concedidas no passado, em parte devido ao pânico geral, em parte porque a chegada de grandes massas realmente alterava a posição sempre precária dos cidadãos naturalizados da mesma origem.
O cancelamento de naturalizações ou a introdução de novas leis que obviamente abriam o caminho para a desnaturalização em massa destruíram a pouca confiança que os refugiados ainda pudessem ter na possibilidade de se ajustarem a uma vida normal. Tanto eles quantos os apátridas, não conseguiam obter o direito à residência e ao trabalho no local onde estavam, e, assim, tinham, naturalmente, de viver em constante transgressão à lei e estavam sujeitos a ir para a cadeia sem jamais cometer um crime.
A situação assim permaneceu, até que a comunidade global, chocada com o holocausto judeu e com o intuito de construir um mundo sob novos eixos ideológicos, liderada pelos dirigentes das nações que emergiram como potencias no período pós-guerra, criou a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecendo como base das futuras negociações e conflitos internacionais a paz, a democracia e os direitos humanos.
Apesar da referida Declaração prever expressamente Direitos humanos para todas as pessoas nas mais diversas situações, em 1951, surgiu a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados para tratar especificamente dos e garantir os direitos das pessoas que se encontram nessa condição.
Entretanto, ao olharmos para a realidade atual, parece que cada dia mais se minam os esforços empreendidos há 71 anos atrás para proteger as pessoas do terror que a falta de direitos humanos traz. Surgem novamente ideias como a construção de muros para separar fronteiras entre países – como no caso do México e dos Estados Unidos; o fechamento de fronteiras para evitar migrações – como ocorreu por um breve período na fronteira entre o estado brasileiro de Roraima e a Venezuela; criação de campos de refugiados com condições insalubres e inseguras, como na Ilha de Lesbos na Grécia; o fechamento de fronteiras para o recebimento de navios com refugiados, como acontece rotineiramente na Itália; ou a criação de campos para explorar o trabalho de imigrantes ilegais, como se pensou em legalizar e implementar em Israel.
Por isso, o meu apelo nesse Dia Internacional dos Direitos Humanos é: não nos esqueçamos do passado e do horror que trouxe a institucionalização dos direitos humanos nos moldes que temos hoje e continuemos na luta para que eles possam ser muito mais que meras palavras em um pedaço de papel.