Crise econômica, causada em grande parte pelo bloqueio sofrido pelo país, faz com que população use a criatividade no dia a dia; organização popular foi a forma que muitos encontraram para resolver coletivamente os problemas
FANIA RODRIGUES
São apenas 6h da manhã e os becos, ruelas e escadarias começam a ganhar vida na comunidade Alto de Lídice, na região central de Caracas, capital da Venezuela. Nesse bairro, povoado de casas simples, cada porta que se abre é um trabalhador que se soma à fileira operária que desce o morro todos os dias para suprir a cidade de mão de obra.
Ali, aos pés da imponente Ávila, a cordilheira que corta Caracas de ponta a ponta, é onde mora cozinheiro Wilmer Villarroel, de 38 anos, que batalha para ganhar a vida em tempos de crise. “Aqui não podemos trabalhar em uma só coisa, temos que ter vários empregos para garantir a comida da família”, diz. Isso porque o salário mínimo está defasado devido à alta inflação, a crise fiscal, a queda da produção petroleira e do preço do petróleo, assim como o bloqueio e a instabilidade política. Na Venezuela o salário é pago por quinzena e está em 150 mil bolívares (US$ 5 ou R$ 22,40). Por isso, o salário é combinado com benefícios sociais, para compensar seu baixo valor.
“Acordo às 5h para fazer arepas (comida típica venezuelana à base de milho) e desço o morro às 6h45 para vender. Aqui perto tem uma linha de ônibus e vendo aos motoristas. Às 7h da manhã já vendi tudo, volto e me incorporo ao trabalho comunitário, na Brigada de Manutenção, e varremos as ruas até às 12h”, relata Wilmer.
O trabalho comunitário é remunerado pela própria comunidade através da Comuna Alto de Lídice, uma forma de organização popular. Nesse trabalho recebe o equivalente a seis salários mínimos. No entanto, ainda não é o suficiente e Wilmer precisa complementar tudo isso com uma terceira renda e quarta. “Faço sopa e vendo aos domingos. Também temos um terreno que estava abandonado, onde as pessoas jogavam lixo. Com um tio e um vizinho, limpamos e começamos a plantar. Agora temos abóbora, pimentão, pimenta, aipim (mandioca), milho, banana, tomate, abóbora, inhame, abacate e tomate”, afirma.
Assim como Wilmer, milhares de venezuelanos estão vendo o cultivo como uma saída para resolver o problema da escassez. Desde de outubro de 2018, os supermercados vêm melhorando gradualmente o nível de abastecimento. Atualmente, não falta quase nenhum produto, mas o problema são os preços, pois o salário desvalorizado pela inflação e o valor dos produtos marcados em dólares criam um abismo econômico entre a classe que têm acesso ao dólar e a assalariada, que recebe em bolívares, a moeda local.
“Hoje em dia, vale a pena plantar, porque um quilo de banana, na rua, custa muito dinheiro. Um único plátano (banana-nanica) pode custar 8.000 bolívares (cerca de R$ 1). Três plátanos custam a metade de uma quinzena. Com isso nós economizamos um dinheiro, que às vezes nem temos para gastar. Também contribuímos com as pessoas da comunidade que não tem recursos para comprar. Essa parte é importante”, ressalta Villarroel.
A Venezuela vive um cenário de hiperinflação causado por fatores internos e externos. A crise econômica, que começou em 2013, foi causada pelo déficit fiscal e a diminuição da produção petroleira. Em 2012, a produção de petróleo era de 2,2 milhões de barris diários e foi reduzida ao longo dos últimos anos, chegando a 2019 com um pouco menos de 1 milhão de barris. Ademais o preço do barril teve uma redução de mais de 50% do valor. O impacto foi imediato, já que 90% do orçamento do Estado depende da renda petroleira.
Além disso, a crise foi acelerada por fatores externos, como o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, desde 2014. Segundo o governo venezuelano, os recursos bloqueados no exterior superam os 24 bilhões de dólares, que seriam destinados à compra de bens de primeira necessidade, como alimentos e medicamentos.
Soma-se a isso a chamada “inflação induzida”, termo usado na Venezuela para referir-se à especulação de sites administrados fora do país e que marcam o valor de um dólar paralelo, ilegal, mas que é usado como referência pelo comércio e pela grande imprensa, que são a base do setor da direita venezuelana.
Economia coletiva
A vida em comunidade também é uma forma de superar os problemas econômicos. “A necessidade econômica nos obrigou a estar mais unidos e a retomar a organização comunitária que tinha sido deixada de lado depois da morte do comandante Hugo Chávez. Voltar a organizar a comuna era a única forma de garantir que todas as famílias do bairro tivessem no mínimo a comida”, explica a artesã Rosiris Zapatero, líder comunitária no bairro La Pastora. Os próprios moradores trataram de fazer um censo do bairro e para assim poder monitorar as famílias que têm crianças com desnutrição infantil. A elas é dada uma assistência especial, com acompanhamento médico e direito de ter refeições no Comedor Comunitário, que hoje fornece comida para mais de 200 pessoas.
Além do trabalho comunitário, Rosiris se desdobra para ganhar a vida, trabalhando como decoradora de festas, algo considerado um verdadeiro luxo em uma época em que boa parte das pessoas está trabalhando para conseguir apenas a comida. Em qualquer país do mundo, nessas condições, ela estaria praticamente sem trabalho, mas não na Venezuela, onde as comemorações são quase sagradas, principalmente se tratando de aniversários das crianças.
Fania Rodrigues/Opera Mundi
Wilmer Villarroel: cultivo próprio de alimentos para driblar a escassez
“Os preços que cobro são módicos. As pessoas aqui também não têm condições de comprar muitas coisas, então inventam e usamos a criatividade para poder desfrutar. Continuamos festejando, de uma maneira mais simples, mas não deixamos de fazer nossas festas”, afirma Rosiris “O venezuelano é uma pessoa muito alegre. Isso não puderam tirar de nós. Não perdemos esse espírito da alegria. As pessoas lutam contra esse sentimento de tristeza que deixa uma crise dessa proporção. Estamos resistindo e lutando em todos os aspectos. Não vamos ser pessoas tristes porque existe um problema econômico”.
Para Rosiris, “em tempos de guerra, manter a alegria é uma forma de resistência”. “Não estamos esperando um milagre para poder celebrar a vida. Nós decidimos tornar realidade esses momentos de alegria. Para uma mãe é importante que o seu filho tenha um bolo de aniversário e sim, é possível. Esse dom da alegria nunca puderam tirar de nós. E eu ajudo a que as pessoas possam desfrutar desses momentos e disso vivo”, afirma festeira.
Além das comemorações familiares, nos bairros mais humildes, a distração são os bingos, projeção itinerante de filmes, jogos esportivos, como o campeonato de basquete intercomunal, apresentações de dança e teatro nos espaços comunitários, comemorações e reuniões familiares. Por outro lado, as viagens à praia, as visitas ao shopping e refeições fora de casa foram reduzidas ou simplesmente deixaram de existir para os setores populares.
Até o jeito de namorar mudou, garante o advogado Raúl Escalona, de 28 anos. Ele trabalha em um órgão público e ganha um pouco mais de um salário mínimo. A parte mais difícil é a conquista, segundo Raul, pois tempos de crise exigem mais criatividade.
“Quando conheço alguém que eu gosto de verdade e quero sair com ela, não deixo de convidar, mas trocamos os restaurantes e casas noturnas por um jantar em casa, onde cozinho para ela. Isso também é um problema, porque as vezes a menina não quer ir para casa logo assim no início. Mas aqui todos estamos claros da situação atual do país”, conta o advogado, de uma família de classe média, e que igualmente sente às dificuldades econômicas do país.
Depois que namoro engata, os dois vão buscando juntos as soluções diárias para manter a chama. “O que fazemos além de dividir tudo é fazer coisas mais simples. Às vezes comer um cachorro-quente na rua ou comprar umas cinco cervejas entre os dois. Às vezes gasto tudo o que tenho em saída e ela também, no fim de semana seguinte ficamos em casa. E assim vai”, diz Raúl.