Na segunda entrevista da série “As facetas do genocídio”, conversamos com Ricardo Amarante Turatti. Ricardo é bacharel, licenciado, mestre e doutor em história pela UNICAMP; no doutorado, realizou período sanduíche na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Desde a iniciação científica é orientado por um dos mais conceituados americanistas brasileiros, mas que acabou ganhando fama por outras razões – o professor Leandro Karnal. Ele tem como temas de pesquisa as políticas indigenistas estadunidenses e identidade latino-americana na literatura. Aqui, falaremos um pouco sobre a identidade diplomática estadunidense, como esta identidade acabou por levar os EUA a avançar suas fronteiras e como este ímpeto acabou por provocar genocídios.
Felipe Honorato: Há pouco tempo, tive contato com o livro “A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira”, de Celso Lafer. Nele, Celso Lafer traça um perfil do “eu diplomático” brasileiro, identificando as “forças profundas” que norteiam o caráter da diplomacia nacional e mostrando a enorme influência que o Barão do Rio Branco tem – ou, ao menos, tinha – dentro do modus operandi do Itamaraty. Você poderia, por favor, traçar o perfil diplomático dos Estados Unidos da América?
Ricardo Amarante Turatti: O perfil diplomático estadunidense possui algumas peculiaridades que o podem diferenciar tanto da tradição brasileira quanto da europeia, peculiaridades estas que se acentuam conforme a importância do país no cenário internacional se acentua. Para traçar de forma sucinta esse perfil, posso dizer que existe uma influência europeia – principalmente inglesa e francesa – sobre figuras de proa do processo de independência, mais notadamente sobre Benjamin Franklin, talvez o mais importante mentor intelectual da separação entre as Treze Colônias da América do Norte e sua metrópole, a Inglaterra. Franklin atuou como diplomata ainda no período colonial, e, posteriormente à independência, foi nomeado como o primeiro embaixador dos recém-nascidos Estados Unidos na França. Outro dos founding fathers, Alexander Hamilton, que depois viria a ser o primeiro Secretário do Tesouro, também possuía experiência internacional, tendo nascido inclusive em Charlestown, na América Central. Dessas influências tradicionais, extrai-se uma perspectiva universalista de relações entre povos de diferentes nacionalidades: as tratativas sempre são guiadas por valores considerados universais, ou seja, absolutos e passíveis de funcionamento e sentido para qualquer tipo de população ou contexto social. Valores como cidadania, democracia e república – de acordo com o aspecto que esses conceitos tomaram nos Estados Unidos – são tratados como medidas definitivas de razão política e de bons rumos sociais. Partindo disso, não é um passo muito longo para que esses valores sejam propagandeados nas relações diplomáticas. Espera-se que, internamente, siga-se um modelo de comportamento, sacramentado no século XIX pela figura romântica do self-made man estadunidense. Culturas e práticas econômicas diferentes deveriam se adequar, enfim, deveriam se assimilar aos padrões WASP (white, anglo-saxon, protestant). Esse modelo, a partir do processo de expansão territorial dos Estados Unidos, passa cada vez mais a ser propagandeado a outras nações e, em diversos casos, acaba por ser imposto por meio de violência simbólica, violência física ou influência político-diplomático-ideológica. A partir de 1815, pós-Congresso de Viena, quando a Europa começa a se organizar diplomaticamente para o que seria o período do imperialismo e da retomada do colonialismo, os Estados Unidos direciona sua política externa no sentido de evitar uma interferência europeia no continente americano, falando claramente contra um retorno de relações coloniais. Isso é o que foi conhecido como Doutrina Monroe, defendida pelo presidente James Monroe e expressa pelo slogan “A América para os americanos”. Porém, não havendo interferência colonial europeia, uma nova potência em construção surge como uma espécie de guia autonomeado para os demais países americanos: os Estados Unidos. O perfil diplomático que se encontra presente até os dias de hoje começa a se consolidar nesse momento, quando os valores considerados universais que mencionei anteriormente começam a ser impostos com pressão política, apagamento cultural, propaganda ilusória ou com a força militar. Em finais do século XIX, momento de expansão imperialista e colonial, a diplomacia estadunidense começou a ser conduzida cada vez mais em conjunto com as forças militares – prática que os nativo-americanos já haviam testemunhado há um pouco mais de tempo – como ocorreu em Cuba e nas Filipinas. Nesse momento já se define o perfil autoritário, crente em tradições universais e mitos românticos que rege a diplomacia e a dinâmica cultural dos Estados Unidos. Quando se invade o Iraque falando em instauração da democracia e em preservação da segurança mundial – todos ainda devem se lembrar das armas de destruição em massa de Saddam Hussein que até hoje não foram encontradas – ainda se ouvem ecos do presidente Theodore Roosevelt recomendando que se negocia com nações estrangeiras de modo sereno, mas sempre com um “big stick” à mão. É a política e a diplomacia do grande porrete. Pode ser atenuada ou ressaltada, dependendo de quem ocupa a Casa Branca, mas não conheço momento algum em que tenha sido totalmente interrompida.
FH: Agora, gostaria que comentasse um pouco sobre o conceito de fronteira de Frederick Turner e sobre o quanto este conceito influenciou a formação do “eu diplomático” estadunidense.
RAT: O “eu diplomático” estadunidense é calcado na figura do homem comum que faz o seu destino, defendido por Turner como a expressão da identidade do indivíduo estadunidense. Essa elaboração do self-made man e do seu papel desbravador na construção dos Estados Unidos aparece na tese da fronteira de Frederick Jackson Tuner. Turner, um historiador do estado do Wisconsin, em 1893 trouxe à tona o seu ensaio The Significance of the Frontier in American History, obra seminal para a historiografia estadunidense. No texto, que assombraria toda a carreira acadêmica de Turner, o autor defende que o final do século XIX viu o fechamento da fronteira nos Estados Unidos: ou seja, o gigante da América do Norte já havia se expandido por toda a extensão territorial entre os Oceanos Atlântico e Pacífico. Seria, então, o final de uma primeira etapa na história do país, essencialmente definida pela fronteira e pela expansão territorial. O caráter específico do homem estadunidense, e a construção social do país, teria sido formado a partir das diversas ondas de esgarçamento da fronteira. Se fizermos um paralelo entre o conceito de uma identidade estadunidense avançando como ondas expansionistas em uma fronteira sempre em marcha e o estabelecimento de relações diplomáticas, pode-se vislumbrar a prática de imposição cultural e política que essa visão romântica sobre a formação nacional proposta por Turner acabou por impulsionar. Nas últimas décadas do século XIX o cientificismo racista estava em alta, juntamente com a contraposição entre civilização e a barbárie. Se a fronteira, construtora do caráter estadunidense, expande-se até o Pacífico, ela leva consiga valores tratados como típicos da civilização, valores ligados à cultura dos Estados Unidos e também com diretrizes políticas e diplomáticas próprias de seu governo. Culturas e práticas que divergem desses valores são enquadradas na categoria de bárbaros, atrasados em relação à marcha fronteiriça do progresso, e devem se adaptar, caso contrário desaparecerão. Pensando em escala internacional, não é um traço cultural tão distinto do demonstrado por negociações e intervenções diplomáticas – seguidas por vezes de intervenções militares – vistas ao longo do século XIX e XX. Ou o “outro” – significando aqui o não-estadunidense – aceita e se adapta ao conceito de civilização, indivíduo e sociedade nos moldes dos Estados Unidos, ou sofre consequências que envolvem hostilidades, para dizer o mínimo.
FH: A Marcha para o Oeste é fruto dessa mentalidade diplomática estadunidense e da influência do pensamento de Turner? conte mais sobre este evento histórico.
RAT: A Marcha é muito mais fruto das dinâmicas culturais e, por consequência, diplomáticas, dos Estados Unidos do que do pensamento de Turner. Como Turner escreve seu ensaio no final do século XIX, ele foi um autor que refletiu e propagou as noções que guiaram a Marcha para o Oeste, mas que formou seu pensamento em um momento que o Oeste já havia sido “conquistado”, ou seja, a fronteira estadunidense já havia chegado ao Oceano Pacífico e os interesses políticos do país já se voltavam para interferências imperialistas em outras nações. A mitificação, impulsionada por Turner, influenciou a cultura dos Estados Unidos até para além da metade do século XX. A figura do cowboy desbravador do território em filmes de faroeste começa a ser questionada apenas em meados do século passado. Para descrever o evento histórico que foi a Marcha para o Oeste, precisamos relembrar que, logo após a independência, o território dos Estados Unidos era restrito às treze colônias originais, ocupando apenas uma faixa de terra à leste. Já no final do século XVIII e, mais rapidamente, no século XIX, o país se expandiu de forma vertiginosa, incorporando territórios por diversos meios: aquisição, tratados diplomáticos ou conquistas por meio de guerras. Alguns exemplos: o território da Lousiana, propriedade francesa, foi adquirida pelos Estados Unidos em 1803; os atuais estados do Texas, do Novo México e da Califórnia foram incorporados pelo Tratado de Guadalupe-Hidalgo, após três anos de guerra com o México, entre 1845 e 1848. Em meados do século XIX, o território estadunidense já não era tão distinto de como o conhecemos hoje, o que significa uma expansão brutal em menos de um século. Porém, havia diversas regiões pouco exploradas, pouco habitadas ou ocupadas por populações nativas ou pertencentes a outros grupos minoritários. A Marcha para o Oeste consiste na exploração e ocupação dessas terras, representando um traço cultural e político, mas também uma necessidade econômica de crescimento nas formas de produção e na exploração da terra. O movimento se torna mais intenso após a descoberta de ouro no vale californiano de Sacramento, em 1848, o que impulsiona pessoas em busca de minérios, territórios para se cultivar e também grupos em busca de novas oportunidades de vida. Esse deslocamento é representado culturalmente pelos filmes e pela literatura de faroeste, termo em português derivado de far west – Velho Oeste. Em inglês se diz western, ou seja, algo relacionado ao Oeste. Com o final da marcha, diz-se que o Oeste está conquistado, e o território, ocupado. Retomando Turner, pensador essencial para que os Estados Unidos formassem uma consciência histórica tão autocentrada e pouco flexível como a que exibe até os dias atuais, declara-se o fechamento da fronteira juntamente com a conquista dos territórios do Oeste. O que essa narrativa mítica e teleológica da expansão territorial deixa em segundo plano são as populações que ocupavam os territórios conquistados. Nativos, ex-escravos, grupos oriundos de outros países, entre outros, não se encaixam nos moldes do frontiersman e do self-made man. É bastante comum, em diversos filmes de faroeste, e em romances como The Pioneers, de James Fenimore Cooper, serem narradas histórias de caravanas de migrantes sendo atacadas por grupos indígenas hostis e violentos. Para além dos episódios reais de conflitos entre colonos – tradução aproximada e um tanto quanto imprecisa do inglês settlers – e nativos, essa representação diz algo muito claro e ríspido: a marcha para o Oeste é a marcha do progresso, do bom cidadão americano comum, aquele que vence pelo próprio esforço; os indígenas que atacam essa expansão são selvagens que logo serão eliminados por esse caminhar civilizatório. Ideias e simbolismos tão medonhos como esse aparecem também em um filme clássico, Stagecoach (No Tempo das Diligências), de 1939, no qual uma diligência, representando um microcosmo da sociedade estadunidense, é atacada pelos apaches de Geronimo. John Wayne, interpretando Ringo Kid, um dos passageiros da diligência, os combate com seu rifle Winchester. O progresso vem com tiros. O Oeste foi conquistado à bala, com uma pilha de corpos semeando as paisagens desérticas do Meio-Oeste e as belas pradarias estadunidenses.
FH: E quais foram as consequências da Marcha para o Oeste para as populações nativo-americanas? Podemos falar de genocídio neste processo?
RAT: As consequências para os nativos foram o deslocamento populacional, uma série de massacres e de violências diversas, um processo de pauperização e uma construção de redes de dependência entre nações nativas e o Estado marcadas pelo paternalismo. Caso pensemos de forma mais complexa e ponderada, podemos mencionar também nativos que acabaram se assimilando forçosamente ou voluntariamente à sociedade estadunidense, adotando práticas que não eram originariamente suas. O conceito de autonomia nativa é minado e cada vez se torna mais impossível de ser posto em prática. Olhando de forma macroscópica, observa-se uma marcha em direção não apenas ao Oeste, mas também em direção ao etnocídio, ao fim de culturas, seja por meio da eliminação física ou da assimilação. No caso da eliminação física, podemos sim falar em genocídio, embora o termo seja polêmico e sua utilização possa causar divergência entre diferentes pesquisadores e analistas do processo. O conceito de genocídio apareceu pela primeira vez no livro de Raphael Lemkin, Axis Rule in Occupied Europe, de 1944, obra clássica sobre a Segunda Guerra e as práticas de destruição populacional levadas a cabo pelo governo nazista. Posteriormente à guerra, em 1948, vem a Declaração Universal de Direitos Humanos, da ONU, que consagra o termo genocídio e estabelece diretrizes para seu combate. Por conta desse contexto de elaboração e propagação do termo, o conceito de genocídio ficou muito ligado ao Holocausto e às violências perpetradas contra os judeus. O fato de o conceito ter sido criado em uma data específica, e, pensando historicamente, uma data recente, traz dúvidas sobre um possível anacronismo em sua utilização. Seria metodologicamente preciso usar um termo do século XX para descrever processos anteriores, como a eliminação de populações nativas nos Estados Unidos do século XIX? Há também um componente político e discursivo quando se menciona a palavra genocídio, representando um fortíssimo argumento na defesa de minorias, principalmente as que passaram por um processo de violência visando seu extermínio. O que não podemos esquecer é que o próprio Lemkin, o elaborador do termo, deixa um campo livre para que ele possa ser aplicado em outros contextos e época, e sua aparição da Declaração Universal de Direitos Humanos reforça essa intencionalidade. Portanto, acho perfeitamente aplicável no caso dos nativo-americanos, principalmente se elaborarmos os elementos característicos de processos genocidas, como a intencionalidade do agente perpetrador da violência e uma sistematização do processo. Genocídio é diferente de massacres, é diferente de baixas de batalha. É um processo sistemático de eliminação de uma cultura e de desaparecimento daqueles que a praticam e que a vivem. No caso dos Estados Unidos, foi um processo intermitente, com momentos mais agressivos e outros com tentativa de conciliação, mas foi uma constante o pensamento de que não havia lugar para as diversas culturas nativas no território estadunidense. Isso levou a deslocamentos forçados, chancelados pelo Estado, expedições militares punitivas e confinamento em reservas. Nos massacres de Bear River, em 1863, e de Wounded Knee, em 1890, o exército disparou sobre pessoas desarmadas; nos deslocamentos que se seguiram ao Indian Removal Act – lei que forçava a remoção de populações nativas – em 1830, grupos nativos tiveram que viajar em pleno inverno, sem regularidade no acesso a víveres. Essas são práticas sistemáticas de etnocídio e genocídio, e são intencionais por parte do Estado. Não podemos ter medo de usar a palavra genocídio e nem de advogar, com respaldo no conhecimento histórico, para que tais horrores não aconteçam novamente.
FH: Houve, antes da expansão para o Oeste, episódios de genocídio contra a população nativo-americana no território estadunidense, cometidos ou pelo Estado estadunidense, ou pelo governo colonial? Dê alguns exemplos, por favor.
RAT: As sementes para o genocídio já começam a aparecer em tempos coloniais, mas não há uma unidade de eliminação sistemática dos nativos. Parte da população originária já havia sido drasticamente reduzida nas décadas iniciais de colonização por causa do contato violento com alguns grupos de colonos e também pela incidência de doenças europeias desconhecidas na América. Houve diversos episódios de conflitos e até guerras em larga escala que afetam de forma extensa as nações indígenas, como a Guerra do Rei Filipe, entre 1675 e 1678 e a Guerra dos Sete Anos – ou Guerra Franco-Indígena, entre 1756 e 1763. Como no período colonial havia diversos impérios com interesses no território dos atuais Estados Unidos, bem como diversas nações indígenas, com culturas, organizações políticas e interesses também distintos, o posicionamento dos atores desses conflitos é bastante múltiplo. Diversos tratados comerciais, territoriais e militares seriam firmados entre esses colonos de diversas origens e os nativos de diversas nações, sendo que muitos desses acordos seriam desrespeitados posteriormente, no período de maior violência unificada contra os povos indígenas. Mas, em tempos independentes, poucos anos antes da Marcha para o Oeste, mas já durante o processo de expansão territorial, houve um episódio fundamental para que possamos classificar como genocídio o que ocorreu com os nativo-americanos, que é a política de remoção forçada levada a cabo pelo presidente Andrew Jackson, após a aprovação do Indian Removal Act. Nações indígenas foram removidas de suas terras originárias e conduzidas para outros territórios, na tentativa de formar o que era conhecido como Território Indígena, correspondente ao atual estado de Oklahoma. Os maiores afetados foram os Cherokee, que, após uma série de resistências e negociações, foram removidos em pleno inverno. A remoção levou à morte milhares de nativos, dando a tônica para o que viria nas próximas décadas. O episódio viria a ser conhecido como Trilha das Lágrimas.
FH: Neste processo de expansão territorial tocado pelos EUA no século XIX, houve uma conquista significativa de territórios que antes pertenciam ao México. Há registros de genocídios perpetrados pelo Estado estadunidense contra populações mexicanas nesta época?
RAT: Não conheço relatos do que poderíamos considerar genocídio. Houve um elevado número de civis mortes e episódios sangrentos típicos dos conflitos armados do século XIX. As perdas mexicanas foram consideravelmente maiores do que as estadunidenses, representando quase o dobro de vítimas. A perda de territórios e os danos causados pela guerra foram brutais para o México, que teve todo um ímpeto nacionalista contido. Nos anos posteriores, a fronteira entre Estados Unidos e México seria um território propício para o cometimento de crimes brutais e para que massacres fossem postos em práticas. Há um romance de Cormac McCarthy, chamado Blood Meridian, que narra as atrocidades cometidas por um grupo de caçadores de recompensa na fronteira. Esses mercenários recebem dinheiro em troca dos escalpos de nativos, mas em determinado momento percebem que os cabelos de mexicanos poderiam ser confundidos com os dos indígenas, passando então a massacrar os habitantes do México. Foi a obra literária mais violenta que já li e, ao concluir a leitura, imaginei se tratar de uma alegoria de McCarthy a respeito da violência formativa nos Estados Unidos, da espécie das que o autor tanto gosta de fazer. Porém, descobri que houve uma extensa pesquisa histórica para a escrita, incluindo a análise de documentos que descreviam esses massacres de nativos e mexicanos, principalmente um diário de um dos participantes dos grupos de mercenários, base para seu protagonista. Então, não é possível falar em um genocídio sistemático por parte do Estado, mas atrocidades foram cometidas.
FH: Quando se fala de imperialismo capitalista colonial – ou neocolonialismo, forma como muitos se referem a este período histórico -, poucos identificam os Estados Unidos como uma potência colonial. Fato é que os EUA ocuparam, de forma duradoura, territórios na Ásia, América Central e no Pacífico, e boa parte deles continuam sendo territórios dos EUA até os dias atuais – Havaí, Porto Rico e Guam são exemplos. Gostaria que você explicasse se há relação entre a Marcha para o Oeste e a obtenção de colônias pelos EUA, e se, nestes territórios coloniais, também há registros de genocídios cometidos contra populações nativas pelos EUA.
RAT: A Marcha para o Oeste se encerra quando todo o território continental dos Estados Unidos encontra-se ocupado. É também o momento de reativação do colonialismo no contexto imperialista. Não havendo mais território para expansão, busca-se exploração econômica em outras paragens, dominando-as ou interferindo militar e economicamente nelas. Pode-se dizer que a expansão para locais além-mar é uma consequência do final da expansão continental e da inserção cada vez maior do país em uma economia global e industrial. Foi o que ocorreu com a invasão do Havaí em 1898, logo após o arquipélago ter substituído sua monarquia por uma república em 1894. O Havaí tornou-se território estadunidense e viria a ser o 50º estado em 1959. Foi também o que ocorreu com o auxílio à independência cubana, no ano de 1898, em um conflito militar com a Espanha, seguido por uma emenda na nova constituição de Cuba, que garantiu a possibilidade de intervenção militar estadunidense na ilha, além de transformar a baía de Guantánamo em terra dos EUA. Logicamente, esses episódios envolveram violência em vários níveis. Agora, em relação a genocídio, discute-se o caso da guerra com as Filipinas, entre 1899 e 1902. Os filipinos lutaram para obter sua independência, após terem passado das mãos dos espanhóis para as dos estadunidenses após o acordo que encerrou a Guerra Hispano-Americana (a mesma que envolveu a independência de Cuba), enquanto os Estados Unidos tentaram manter a posse do território. Há relatos de atrocidades dos dois lados do conflito, porém o número de civis filipinos foi tão alto – por conta de crimes de guerra, doenças e mortes – que discute-se a possibilidade de se classificar o processo como um genocídio filipino perpetrado pelo exército estadunidense.
FH: Agora, para finalizar, gostaria de lhe fazer uma pergunta que será replicada a todos os entrevistados desta série de entrevistas: há grupos que defendem que, hoje, há um genocídio da população negra em curso no Brasil. Você concorda com isso? Se sua resposta for positiva, destaque pontos em que o genocídio da população negra no Brasil se aproxima de outros casos que foram discutidos durante esta entrevista. Muito Obrigado!
RAT: Sim, concordo, e acredito que posso justificar essa resposta com dois argumentos simples e diretos. O primeiro não diz respeito a algo elaborado por mim, mas sim a dados sobre a violência no Brasil. O número anual de homicídios é alarmante, e eles expõem que os maiores atingidos tem um perfil: jovens negros periféricos. Essa é a parte objetiva da minha resposta, não acredito que há possibilidade de discussão com esses dados, a não ser que se entre numa lógica de negação da realidade. A proporção de negros morta, muitas vezes por agentes do Estado, é assustadora. O segundo ponto, e argumento, é a ligação entre esse grande número de mortos e a lógica sistemática de eliminação física de um grupo, o que caracteriza genocídio. No Brasil, por conta de diversos fatores históricos, como a abolição tardia, a falta de inclusão da população negra posteriormente à Lei Áurea, a manutenção de práticas e comportamentos escravistas, a ausência ou pouca presença da população negra em espaços universitários e culturais, definiu-se um perfil daquele que seria o elemento desviante da ordem estabelecida. E esse perfil é negro, jovem e periférico. Já vieram à tona casos de agentes policiais que receberam ordens de abordar preferencialmente pessoas negras ao invés de brancas, de uma juíza que descreveu determinado criminosos como “não tendo cara de bandido”, sendo que esse criminoso era um indivíduo branco. Somado a uma marginalização constante, a uma maior dificuldade de acesso a bons empregos e a melhores oportunidades de educação, essa identificação do indivíduo negro como o elemento perigoso, que não se encaixa no ideal de sociedade brasileiro – talvez se encaixe ocupando uma posição subalterna – leva a uma constante redução populacional. A reação que uma parte conservadora ou reacionária da sociedade demonstra a qualquer tipo de tentativa de inclusão do negro em locais como universidades expõe uma lógica perversa e, em última instância, assassina e genocida. Quando uma pessoa branca, pertencente à elite brasileira – ou à classe média, que reproduz práticas de elite em busca de status e de um sentimento de pertencimento – ache estranho e incômodo que uma criança negra estude na mesma escola de seu filho, essa pessoa está defendendo, talvez de forma inconsciente, a eliminação ou separação radical de um grupo populacional. Isso é a ideologia do genocídio. Pode parecer algo extremo fazer essa comparação, mas os horrores da história são cometidos muitas vezes por pessoas comuns, não por vilões de filmes de super-heróis.