O Departamento de Estado tem contado com a cumplicidade aberta e sem dissimulo em todas as nações ao Sul de sua fronteira
Golpes de Estado, manifestações cidadãs reprimidas com as ferozes técnicas de contra insurgência (algumas aprendidas na Escola das Américas e outras em centros de treinamento plantados ao longo de nosso continente) assim como estouros de violência cada vez mais intensos, conformam a paisagem política atual na América Latina. Não parece ser casual a derrocada de um presidente de tipo social na Bolívia – já aconteceu no Brasil com Dilma – nem a teimosia do mandatário chileno aferrado ao poder apesar do massivo repúdio cidadão. Todos os sintomas levam a pensar que batidas de asas na Casa Branca levantaram uma espécie de tsunami em seu quintal, já que Estados Unidos não acha graça nenhuma no retorno dos governos nacionalistas e está demonstrando isso com a mesma falta de sutileza que o caracterizou ao longo de sua história.
Mas nem tudo é culpa do império. O Departamento de Estado tem contado com a cumplicidade aberta e sem dissimulo em todas as nações ao Sul de sua fronteira. Umas mais e outras menos, dependendo da fortaleza de suas instituições, todas experimentaram um fenômeno similar de intervencionismo. É claro que é preciso reconhecer a habilidade com a qual amarraram os interesses corporativos de seus grandes consórcios com as elites econômicas locais, graças ao patrocínio generoso brindado aos círculos políticos corruptos. Contra essa trama de influências e leis casuísticas – muitas delas desenhadas para blindar espaços de impunidade e concessão de privilégios – não há sociedade capaz de fazer valer seus direitos sem pagar por isso um alto preço em vidas humanas e em retrocesso de suas conquistas sociais.
Mesmo que pareça ser um assunto das capas mais pobres, o fenômeno atinge de maneira transversal toda a sociedade, inclusive aqueles setores mais ou menos acomodados que, ao ter algo que perder com uma mudança de sistema, se aferram ao atual refugiando-se em uma bolha de negação que lhes tem servido de parapeito, utilizando para isso os velhos argumentos da Guerra Fria; criminalização dos manifestantes, assim como a atribuição da rebelião ao ubíquo fantasma do comunismo internacional e a governos estrangeiros, a maioria deles mais ocupados em sobreviver à agressão gringa do que em se meter nos problemas dos outros. No entanto, aqueles que perderam muito conformam uma imensa maioria e isso se faz sentir nas ruas. A brutal repressão dos corpos de segurança do continente não consegue fechar o buraco aberto pela indignação popular e hoje é mais evidente que nunca a participação dos setores de mulheres, infância e juventude, os mais afetados pela desigualdade e pela privação de direitos.
A América Latina tem vivido em um pêndulo constante entre ditaduras – abertas ou solapadas – e primaveras democráticas esmagadas, cedo ou tarde, por pressões externas cuja origem é eminentemente elitista – dinheiro e controle geopolítico; é assim como as grandes corporações e os centros de liderança mundial não duvidam em pôr todo o seu poder em jogo através dos governos imperialistas, entre os quais também se incluem europeus e asiáticos, e cair sobre as riquezas daqueles enfraquecidos por séculos de exploração. Em semelhante cenário, os resultados dos protestos cidadãos, mesmo sendo massivos e legítimos, continuam como uma das provas extremas de resistência humana e social. Aqueles que persistem em negar a dimensão do conflito costumam jogar, como sempre, contra seus próprios interesses e o porvir de seus descendentes.