Por Gisele Barbieri / Terra de direitos
Desrespeitando a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificada pelo Brasil em 2002, a Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (22), por 329 a 86 votos, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos para o uso comercial da Base de Alcântara, instalada no município localizado na região metropolitana de São Luís (MA). Estima-se que mais de 700 famílias, de 31 comunidades, poderão ser deslocadas compulsoriamente da área destinada à expansão da base. A convenção da OIT prevê que povos e comunidades tradicionais devem ser consultados diante de qualquer mudança em seus modos de vida ou territórios. Com discursos que priorizavam interesses econômicos, os parlamentares desprezaram os riscos do acordo para a soberania nacional e a importância de consulta prévia livre informada às comunidades quilombolas. Com a chegada do Centro de Lançamento da Base de Alcântara (CLA), na década de 1980, aproximadamente 300 famílias, de 32 comunidades, foram removidas de uma área de mais de 60 mil hectares designada à Aeronáutica. As comunidades relatam irregularidades e intimidações praticadas por militares, e acompanham dia a dia a redução de seu território para projetos que visam lucro.
“Um acordo que não levou em consideração as comunidades quilombolas que serão atingidas direta ou indiretamente por aquele empreendimento. Vamos sempre ser sacrificados em nome de uma maioria. A área que eles pretendem isolar é a área de pesca das comunidades então, também, fica nossa preocupação com a soberania alimentar dessas pessoas. Os sacrificados sempre somos nós, constantemente atacados por essas propostas que negam nossos direitos como o povo que construiu este país com gotas de sangue e suor”, lamenta Antônio Crioulo, integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), da comunidade quilombola de Conceição das Crioulas em Pernambuco. Antônio acompanhou um grupo de quilombolas de diversos estados que, durante esta terça-feira (22), tentava sensibilizar os deputados sobre os riscos do acordo e o temor das comunidades quilombolas pela utilização comercial da base, além do deslocamento das famílias sem qualquer consulta a elas.
Ele lembra, também, a matéria publicada, neste mês, pela Folha de São Paulo, sobre documentos obtidos pelo jornal que apontam já estar em curso um plano de remoção de, aproximadamente, 350 famílias quilombolas de Alcântara. De acordo com as informações, o plano de remoção teria como objetivo permitir a ampliação do Centro de Lançamentos de Alcântara, além do aluguel de espaços para operações de outros países, o que seria uma das prioridades do governo de Jair Bolsonaro.
MPF e CIDH cobram consulta prévia às comunidades
Duas manifestações questionavam a votação do acordo previsto no Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 523/19, no plenário da Casa, sem a realização de consulta prévia livre e informada com as comunidades quilombolas que serão afetadas pela expansão da Base. Uma delas, uma nota técnica do Ministério Público Federal (MPF). Outra, enviada à Câmara nesta terça-feira (22), da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). A necessidade de atender aos dois questionamentos foi exposta durante a votação por diversos parlamentares do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Partido dos Trabalhadores (PT), únicos partidos totalmente contrários à aprovação do projeto.
“Vemos com bastante preocupação o empenho do governador do Maranhão, Flávio Dino. Quando veio para Brasília veio pressionar toda a bancada de esquerda a ser a favor dessa base”, diz o representante da CONAQ.
Uma das conversas foi com o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas, lançada nesse ano. O parlamentar foi o único dos 18 deputados do estado do Maranhão que ouviu os apelos das comunidades e votou contra o projeto.
“Tudo que nós queremos é que as coisas sejam feitas da maneira certa, e para fazer da maneira certa é preciso haver consulta prévia às comunidades quilombolas de Alcântara que têm direito de serem ouvidas nessa matéria que vai afetar todos eles. Não posso aqui trair minhas convicções, não tenho como votar a favor dessa matéria. Voto contra”, disse ele na tribuna do plenário.
O Projeto agora irá para a apreciação e votação dos senadores, e as comunidades quilombolas prometem continuar a mobilização para que a consulta prévia seja realizada antes da votação no Senado. As comunidades também não descartam a possibilidade de recorrer na justiça contra o acordo e de denúncia em organismos internacionais. Nos termos do acordo, existem ainda várias restrições quanto a circulação de técnicos brasileiros na área americana da base, e quanto ao uso e aquisição de tecnologias pelo Brasil, restringindo-as apenas a especialistas dos EUA.