Não é apenas no Brasil que a combinação de políticas neoliberais de austeridade com a lawfare contra forças progressistas vem provocando substanciais danos econômicos, sociais e políticos.
No Equador, país que tem boas reservas de petróleo, o presidente Lenín Moreno, que se beneficiou politicamente da absurda perseguição jurídica e política a Rafael Correa, grande liderança progressista, agora resolveu perseguir o povo equatoriano.
Decretou estado de emergência e proibiu reuniões e manifestações em todo o país, bem como o livre trânsito de pessoas, como resposta às revoltas populares que se seguiram ao anúncio das novas medidas econômicas receitadas pelo FMI, entre as quais se destaca a eliminação dos subsídios à gasolina e ao diesel, que tiveram aumentos de 123%.
Na realidade, essas medidas foram impostas pelo FMI, após a aprovação de um empréstimo de US$ 4 bilhões solicitado pelo governo de Lenín Moreno.
Moreno vem dizendo, desde que chegou ao poder, que o Equador está “quebrado” e que tem “carga tributária muito alta”, duas mentiras deslavadas. Seguindo esse falso diagnóstico, as suas medidas econômicas, concebidas pelo FMI, colocaram ênfase na desoneração tributária sobre remessas de lucro ao exterior, que caíram à metade, e nos impostos de importação, inclusive sobre automóveis de luxo.
Para compensar o rombo fiscal aumentado por suas próprias medidas e destinado a beneficiar grandes empresas, especialmente empresas estrangeiras que atuam naquele país, Moreno decidiu, como se faz no Brasil, transferir o rombo para os orçamentos das famílias do Equador, especialmente as de baixa renda. Com isso, opera-se o milagre da transmutação de rombos fiscais em rombos existenciais.
Assim, eliminou os subsídios aos combustíveis, o que levará ao aumento dos preços das mercadorias consumidas por toda a população do Equador, inclusive alimentos. Mas não ficou só nisso. O que causa mais revolta no Equador é a proposta de reforma trabalhista, que imporá, como regra, o contrato por tempo determinado (12 meses), sem segurança e com direitos bastante reduzidos.
No setor público, no qual se usam contratos ocasionais, principalmente nas áreas de Educação e Saúde, foi imposta uma redução de 20% nos salários dos servidores públicos. Obviamente, isso terá um impacto direto no suprimento desses serviços essenciais à população de baixa renda.
Na Argentina, Macri, outro seguidor canino do neoliberalismo e do FMI, conseguiu a proeza histórica de produzir 9 mil novos pobres por dia. Seu governo é uma máquina de fabricar pobres.
Em apenas um ano, a pobreza na Argentina aumentou 8,1%. Ao final do governo Kirchner, a pobreza estava em torno de 25%. Hoje, já ultrapassou 35% e os indigentes já são 7,7% da população. Muitos argentinos dependem agora da caridade para comer, em um país que se destaca mundialmente na produção de alimentos. Entre as crianças menores de 14 anos, a pobreza saltou para 52,6%. Ou seja, mais da metade das crianças argentinas hoje são pobres.
Como no Brasil e no Equador, a ascensão de Macri e de suas políticas austericidas foi facilitada por uma lawfare incessante contra o governo Kirchner, particularmente contra sua ex-titular, Cristina Kirchner.
Já o Peru é um caso singular. Suas instituições democráticas estão em frangalhos e o país está cindido entre fujimoristas e antifujimoristas.
O Congresso unicameral é dominado pelos fujimoristas, que detêm 70 das 130 cadeiras. Já o Executivo é presido por Martín Vizcarra, que era vice-presidente na chapa antifujimorista liderada do Pedro Pablo Kucynski (PPK), que derrotou Keiko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, por uma diferença de apenas 41 mil votos, entre 23 milhões eleitores, em 2016. PPK, frise-se, renunciou devido a denúncias de corrupção.
Vizcarra, com base numa interpretação do artigo 134 da Constituição do Peru, que permite a dissolução do Legislativo caso este negue por duas vezes “questões de confiança” propostas pelo presidente da república, decretou o fechamento do Congresso. Imagina se fosse na Venezuela!
Já o Legislativo peruano alega que não houve votação sobre a questão de confiança proposta pelo Executivo e que levará o caso à OEA e ao Tribunal Constitucional, cuja legitimidade é contestada, pois seus membros são nomeados, com regras pouco transparentes, pelo próprio Congresso. Aliás, a “questão de confiança” proposta por Vizcarra dizia respeito justamente ao modo como os ministros daquele Corte são escolhidos.
Pois bem, tal cisão política e o clima de permanente instabilidade e de falta de legitimidade das instituições são intensificados pela “Lava Jato peruana”, que investiga supostas propinas pagas pela Odebrecht, entre outras empresas, a políticos e partidos do Peru.
Essas investigações já atingiram 4 ex-presidentes do Peru (Alan García, que se suicidou quando ia ser preso preventivamente, Ollanta Humula, preso preventivamente, Alejandro Toledo, preso nos EUA e aguardando extradição e Pedro Pablo Kucynszki, com prisão preventiva decretada). Também foi atingida Keiko Fujimori. O próprio presidente Martín Vizcarra já sofreu denúncias de corrupção.
As investigações foram propiciadas pela delação de Jorge Barata, executivo da Odebrecht, empresa que, em troca, recebeu imunidade em processos contra seu pessoal na justiça peruana. Com base nessa e em outras delações, os procuradores peruanos abusam das prisões preventivas, como denunciou o próprio presidente Vizcarra. Sem dúvida, a Lava Jato peruana copia seus métodos da Lava Jato brasileira. Há uma clara articulação.
Diga-se de passagem, a articualação entre as procuradorias da América do Sul foi formalizada pela “Declaração de Brasília”, arquitetada pelo DoJ norte-americano e assinada, em nome do Brasil, pelo sóbrio e equilibrado Janot. Tal declaração, firmada em 16/02/2017, constituiu-se em acordo de cooperação que congrega nove países da América Latina e Portugal, com o objetivo de investigar desvios cometidos pela empresa Odebrecht e outras empresas de engenharia brasileiras.
Significativamente, essas empresas, que eram extremamente competitivas no mercado latino-americano de serviços de construção e engenharia, agora foram escorraçadas desse lucrativo mercado e estão sendo substituídas por empresas estrangeiras, inclusive pela norte-americana Halliburton, que foi convidada pelo governo Bolsonaro para realizar obras no Brasil.
Tudo indica que tal “cooperação”, por certo desinteressada, será fortalecida. Em março de 2019, passou a funcionar em Miami, grupo especial destinado a investigar casos de corrupção internacional na América do Sul. Essa força-tarefa, é integrada pelo FBI, por procuradores da seção de fraudes e lavagem de dinheiro do Departamento de Justiça (DoJ), por integrantes do escritório local da agência reguladora do mercado de capitais (SEC, na sigla em inglês) e por membros da Procuradoria de Justiça do Distrito Sul da Flórida.
A ideia é investigar e perseguir quaisquer empresas da América do Sul que supostamente tenham cometidos ilícitos, com base da lei norte-americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), que tem nítido caráter extraterritorial. Muito provavelmente, entrarão na mira desse grupo empresas que possam fazer concorrência a empresas norte-americanas.
Tudo indica também que tal “cooperação”, conduzida pelos interesses geopolíticos norte-americanos, se fará, cada vez mais, de modo informal, contrariando as próprias regras do acordo bilateral de cooperação entre Brasil e EUA em matéria penal (MLAT), que exige que a cooperação seja aprovada e monitorada pela “autoridade central” do Brasil nesse campo, o Ministério da Justiça.
Foi com base nesses métodos informais e, portanto, ilegais, de investigação, instruídos pelo DoJ, que a Lava Jato brasileira operou.
O fato concreto é que as lawfares desencadeadas na América do Sul preferencialmente sobre lideranças progressistas levaram à grande instabilidade política, à ruína econômica, ao retorno do neoliberalismo mais vulgar, e ao profundo desgaste das instituições democráticas, o que vem propiciando o surgimento de regimes reacionários e autoritários, em geral comprometidos com os interesses dos EUA na região.
Na década de 70 do século passado, os regimes militares da região montaram a Operação Condor, com a cooperação da CIA, destinada a perseguir as lideranças populares e os grupos e esquerda.
Agora, parece que se montou uma Operação Condor II, realizada não mais pelos militares, mas pelos sistemas judiciais dos países da região, sob articulação dos EUA. O objetivo principal, contudo, seria o mesmo: perseguir preferencialmente lideranças populares e ensejar mudanças de regime condizentes com as diretrizes da nova geoestratégia norte-americana, que voltou a considerar a América Latina como área de influência exclusiva dos EUA e de suas empresas, em detrimento da crescente influência da China, Rússia e outros “rivais”.
Em perspectiva, essa Operação Condor II parece bem mais eficiente que a primeira. Sob o manto supostamente técnico e neutro do combate à corrupção, sempre necessário, vão se instituindo projetos políticos profundamente lesivos aos interesses nacionais e populares de vários países. A pena da justiça é, nesse sentido, bem mais poderosa que as espadas das quarteladas de antanho.
No Brasil, em particular, a Lava Jato, orientada pelo DoJ, destruiu ou fragilizou muito as grandes empresas da construção civil pesada do Brasil, fragilizou a Petrobras, propiciando a venda do Pré-Sal e a privatização de vários ramos da empresa, reduziu o PIB em RS$ 140 bilhões, apenas em 2015, desempregou milhões de trabalhadores e, no campo político, contribuiu para criminalizar todo o sistema de representação, o que levou à eleição daquele que é, provavelmente, o pior Congresso da história da república e, com toda certeza, do pior presidente da história do Brasil.
Algum legado positivo? Nenhum, absolutamente nenhum. O dinheiro recuperado, algo em torno de R$ 13 bilhões, é apenas uma pequena fração do prejuízo econômico causado ao país pela operação. Mesmo o combate à corrupção ficou comprometido pela clara e absurda falta de isenção de Moro e procuradores e pelas agressões vergonhosas ao devido processo legal e aos direitos fundamentais, reveladas não apenas pelo The Intercept, mas também pelas memórias farmacêuticas de Janot.
No futuro, quem quiser combater a corrupção com seriedade e isenção e sem prejudicar os interesses do país, usará a Lava Jato como contraexemplo.
Não se combate a corrupção corrompendo-se o que temos de mais sagrado: a democracia.
Em tal sentido, a Lava Jato, de fato, lembra um condor. É uma ave gigantesca, de aparência nobre e majestosa. Mas, no fundo, não passa de um grande abutre.
– Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado