Por Tiago Angelo / Brasil de Fato
No início de setembro, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram para um intenso aumento no número de queimadas na Amazônia. Segundo o documento, 30.901 focos de incêndio foram registrados em agosto, mês em que ocorreu o chamado “dia do fogo”. Na ocasião, produtores da região Norte do Brasil iniciaram um movimento conjunto para incendiar áreas da maior floresta tropical do mundo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o filósofo e antropólogo Armando Bartra, professor da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), afirmou que o recrudescimento dos ataques aos recursos naturais fazem parte de uma nova dimensão do modelo capitalista, o que ele qualifica como “capitalismo suicida” ou “capitalismo do fim do mundo”.
“Estamos vivendo uma terrível crise em um capitalismo que lucra com a escassez. Pois quanto menos barris de petróleo existem, mais caros são. Quanto menos água doce há, mais cara é. Quanto menos territórios privilegiados existem, mais caros são. Quanto menos comida há, mais cara é […]. Isso é o capitalismo do fim do mundo. Ou acaba o capitalismo ou acaba o mundo”.
O professor, que esteve em visita ao Brasil, comentou ainda a vitória de Andrés Manuel López Obrador nas eleições presidenciais mexicanas de 2018, o que considera “a realização de uma utopia”. “A legitimidade de López Obrador é enorme. Isso impediu uma fraude eleitoral e permitiu, pela primeira vez, que tenhamos um presidente que não representa uma continuidade histórica do sistema político mexicano. Todo o resto ainda precisa ser feito. Mas isso já é uma utopia”.
Confira a entrevista na íntegra:
–Brasil de Fato: O segundo capítulo do seu livro O Princípio, que trata dos primeiros quatro meses do governo de Andrés Manuel López Obrador, começa com uma frase do escritor argentino Julio Cortázar que diz que “o bom das utopias é que elas são realizáveis”. A vitória de López Obrador é uma utopia realizada? O que ela significa para o México e para a América Latina?
–Armando Bartra: O triunfo da proposta político-eleitoral do Movimento Regeneração Nacional (Morena), que triunfou no 1º de julho de 2018, torna concreta uma esperança. Uma esperança que já existe há muito tempo. Porque não é somente a esperança daqueles que formam parte desse partido.
A sigla que derrotamos, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), se funda no final da Revolução Mexicana de 1910. E eles não apenas criaram um novo Estado, um Estado pós-revolucionário, mas também construíram um partido e uma maneira de eleger, ano após ano, candidatos do mesmo partido. Eles foram chamados de “monarcas sexênios”. Era como se fossem reis que só duravam por seis anos. E depois vinha outro, outro e depois outro. Mas todos eram iguais.
Não podíamos mudar nada profundamente em nosso país se não mudássemos de governo. E mudar não era somente derrotar um governo em uma eleição, mas derrotar um sistema político que tinha um século de duração.
Por isso, de algum modo, o 1º de julho do ano passado foi a realização de uma utopia, que significava não somente ganhar a eleição. A legitimidade de López Obrador é enorme. Isso impediu uma fraude eleitoral. E permitiu, pela primeira vez, que tenhamos um presidente que não representa a continuidade histórica do sistema político mexicano. Todo o resto ainda precisa ser feito. Mas isso já é uma utopia.
–Quais os erros e acertos do governo López Obrador nestes 10 meses?
–Em primeiro lugar, é um governo terrivelmente legítimo. Se acreditamos que a soberania popular pode ser transferida para uma pessoa, para um grupo de pessoas, a um presidente da República, a uma série de governadores, deputados e senadores que devem expressar essa vontade popular, López Obrador tem um mandato extraordinário. Um mandato respaldado por 30 milhões de mexicanos e mexicanas. Nenhum presidente na história do México havia conquistado isso.
López Obrador chega como um candidato de ruptura. Claramente um candidato de ruptura, de oposição radical ao sistema. E chega com uma porcentagem de votos extraordinária. Um mandato deste tamanho é muito complicado de se assumir.
Uma das providências que o governo tomou é a de, em todas as manhãs, durante a semana, fazer uma conferência de imprensa. Todos os dias apresenta um informe para que conheçamos o mundo rural, camponês. Ele informa a nação.
Há seis anos, López Obrador teve um ataque cardíaco em um momento de luta pela defesa do petróleo, pois o estavam privatizando – e de fato a extração foi privatizada. Ele sobreviveu e continuou o trabalho intenso.
Isso foi um aviso. Creio que López Obrador sabe que a vida é curta e é melhor fazer as coisas rápido, pois ele sabe que não é eterno. É um ativismo com uma intensidade que nunca vimos.
–Após assumir, López Obrador afirmou que o neoliberalismo havia chegado ao fim no México. Na prática, no entanto, uma mudança estrutural tão radical não parece uma tarefa fácil. É possível uma alteração tão drástica?
O que López Obrador disse é que nós não iremos atuar conforme critérios neoliberais. Mas ele sabe – todos sabemos – que o neoliberalismo não é só um modelo. O neoliberalismo está impresso em nossa Constituição, que foi modificada pelos governos neoliberais; em nossas leis secundárias; está impresso nas instituições públicas; nas secretarias e ministérios. As regras de operação do governo funcionam com critérios neoliberais.
O neoliberalismo está metido até o fundo da nossa realidade. É a primeira vez que um governo decide abandonar um modelo neoliberal e governar de outra maneira. O que acontece é que esse é um processo longo. É preciso exorcizar o demônio do neoliberalismo do país. E isso levará tempo.
A política de López Obrador privilegia os pobres. Sim, primeiros com critérios redistributivos de renda, com critérios de transferências. Mas coloca os pobres na frente.
Tivemos no México um aumento do salário mínimo. Historicamente se aumentava o salário cerca de 1,5%, 2%. Os neoliberais diziam: “se aumentamos o salário, aumenta a inflação; se aumenta a inflação, aumenta o custo de vida e o pobre sai perdendo. Portanto, não aumentamos o salário pelo seu bem”. López Obrador aumentou o salário mínimo em 16% e não há inflação.
Para os neoliberais, temos a sorte de estarmos na fronteira com os Estados Unidos. De acordo com eles, só falta um pouquinho para o México ser um país de primeiro mundo. Cruzamos a fronteira e pronto. Então tudo é feito pensando no Norte, nos Estados Unidos.
López Obrador prioriza o Sul e o Sudeste. Primeiro as zonas rurais, indígenas, que em termos de investimento e serviços são mais atrasadas. É uma heresia para o neoliberalismo.
–Hoje, na América Latina, temos Jair Bolsonaro no Brasil, Mauricio Macri na Argentina, Iván Duque na Colômbia e Lenín Moreno no Equador. É o fim do curso emancipatório que teve lugar na região?
–Estamos falando de uma transformação civilizatória. Não queremos uma mudança qualquer, queremos uma mudança com profundidade, que não apenas termine com a lógica do capitalismo, mas também com a lógica do colonialismo.
Estamos em um refluxo: golpe de Estado contra Dilma no Brasil e depois uma eleição em que Bolsonaro ganhou drasticamente. Temos um governo neoliberal na Argentina, com Macri, e uma traição no Equador – não podemos chamar de outra coisa.
Na Bolívia, Venezuela e Uruguai, a esquerda segue governando. E agora no México. O ciclo histórico de longa duração não é permanentemente um ascenso. Há subidas e descidas. É inevitável. Tivemos ascensos prolongados, depois uma série de golpes e um retrocesso de curtíssimo prazo.
Pensemos no governo de Macri. Ele não vai ganhar essa próxima eleição, não pode ganhar. O neoliberalismo na Argentina não é capaz de se manter no poder com legitimidade eleitoral. No caso do Uruguai, creio que a Frente Ampla vai ganhar. Seria a quarta vez. Na Bolívia, as pessoas com quem falei disseram que não está tão fácil, porque se Evo Morales não ganhar no primeiro turno, todos irão se virar contra ele. Mas eles creem que ele vai ganhar, e eu também.
Então temos México, Venezuela, Bolívia e Uruguai, que seguem, e a Argentina, que se soma. Eu digo que estamos iniciando a segunda onda do ciclo emancipatório.
–Em uma entrevista ao jornal mexicano La Jornada, o senhor afirmou que hoje vivemos uma etapa do capitalismo que definiu como “capitalismo do fim do mundo” ou “capitalismo suicida”. Poderia explicar o que isso significa?
–Na modernidade, tínhamos crises de abundância. Sobrava, não faltava. Hoje temos, outra vez, as velhas crises de escassez. Hoje temos um problema severo com a terra fértil. O Brasil, por exemplo, ainda tem uma fronteira agrícola. Mas se seguirem forçando essa fronteira, veremos, em um prazo curtíssimo, o que é topar contra a parede. Não se pode seguir destruindo a Amazônia, e isso está sendo feito.
Temos um problema sério com o esgotamento da fertilidade natural do solo e sua substituição por química. O que significa que empobrecem o solo e o contaminam. O solo e as águas. Hoje temos uma guerra pela água, uma competição pela água doce. Não é algo que temos em abundância, algo que sobre.
Temos escassez de energia. Somos dependentes do petróleo, do gás e de minerais. As tecnologias para seguir obtendo [esses recursos] são absolutamente suicidas. Utilizam enormes quantidades de água e provocam contaminação. Estamos raspando o fundo do tacho. Já não há mais o que retirar. Não temos alternativas fáceis. A facilidade energética do petróleo não vai se repetir.
Estamos vivendo uma terrível crise de escassez. Uma crise de escassez em um capitalismo que lucra com a escassez. Porque quanto menos barris de petróleo existem, mais caros são. Quanto menos água doce há, mais cara é. Quanto menos territórios privilegiados existem, mais caros são. Quanto menos comida há, mais cara é.
O capital busca o encarecimento, busca a destruição dos recursos naturais, porque isso faz com que sua privatização gere maior lucro. Isso é um capitalismo suicida. O capitalismo produzia pobreza e riqueza. Ele vivia da mais-valia.
[Agora] vive cada vez mais do lucro, da privatização dos recursos naturais. Há uma crise ambiental final, definitiva. Isso é o capitalismo do fim do mundo. Ou acaba o capitalismo ou acaba o mundo.
–Os incêndios recentes na Amazônia são um exemplo desse capitalismo?
–Todo mundo sabe que a Amazônia não é um território que vale somente para o Brasil. O mundo inteiro depende [dela] – em realidade, qualquer ecossistema ultrapassa suas fronteiras. Mas no caso da Amazônia, por sua extensão e importância, não se trata de qualquer coisa.
A destruição, como está ocorrendo, é realmente suicida. Suicida para o Brasil, mas também para o mundo. A solução não é a de que os europeus assumam a administração. Não estou de acordo com o governo do Brasil, mas creio que não se trata de “estrangeirizar” a Amazônia, e sim de que o povo brasileiro se imponha sobre seus governos ecocidas.
A obtenção dos recursos naturais está sendo cada vez mais custosa em termos ambientais. Isso nos deixa próximos não do fim do capitalismo, mas da civilização como a conhecemos.
Há uma diferença substantiva entre os séculos XIX e XXI. Ela tem a ver com a natureza insustentável do capitalismo. Que, hoje sabemos, não só esgota as energias e a criatividade dos seres humanos, mas também destrói o entorno natural na mesma proporção, se não em uma proporção maior.